Sábado, 6 de dezembro de 2025
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Há 50 anos, em 30 de julho de 1975, a cidade de San Salvador servia de palco a um dos massacres mais brutais ocorridos durante a ditadura militar salvadorenha. Estudantes da Universidade de El Salvador organizavam uma manifestação pacífica, exigindo respeito à autonomia universitária e o fim da repressão governamental, quando foram brutalmente atacados pelas forças policiais.

Os agentes abriram fogo contra a multidão e avançaram com tanques sobre os manifestantes, causando um banho de sangue. Estima-se que mais de 100 pessoas foram assassinadas no ataque. A matança intensificou o sentimento de revolta da comunidade universitária, impulsionando o apoio dos jovens às organizações revolucionárias ativas durante a Guerra Civil de El Salvador.

Os assassinos não foram responsabilizados graças à Lei da Anistia promulgada em 1993. O massacre permanece impune até hoje.

A ditadura militar em El Salvador

Emancipada do domínio da Espanha em 1821, a República de El Salvador manteve intacto o modelo econômico excludente herdado da era colonial. O país permaneceu sob o comando de uma diminuta elite oligárquica, as chamadas “14 famílias”, que controlavam a maior parte das terras e da produção de café. A grande maioria da população vivia na miséria, completamente excluída de participação nos processos decisórios.

A Crise de 1929 acentuou a pobreza, gerando graves tensões sociais e protestos da classe trabalhadora. Em 1931, o general Maximiliano Hernández Martínez, líder do partido fascista Legião Nacional Pró-Pátria, assumiu o poder por meio de um golpe militar.

Martínez seria responsável por reprimir violentamente uma grande revolta camponesa liderada pelo comunista Farabundo Martí, desencadeando um processo genocida que resultou no extermínio de 40.000 pessoas, sobretudo indígenas.

O ditador governou El Salvador até 1944, suprimindo as liberdades políticas e perseguindo as organizações de esquerda. Após sua queda, El Salvador seria governada por uma sucessão de juntas militares que se prolongaram no poder até 1979 — completando 48 anos sob ditadura militar.

A repressão aos movimentos trabalhistas, camponeses e estudantis se acentuou durante o Período da Juntas Militares, marcado por uma profusão de atrocidades e violações de direitos humanos. Dezenas de esquadrões da morte e milícias de extrema-direita operavam sob a proteção do governo, assassinando militantes de esquerda, opositores, sindicalistas e até mesmo lideranças religiosas progressistas.

A ditadura era cada vez mais impopular entre os trabalhadores salvadorenhos, empobrecidos pelas políticas de arrocho salarial e sistematicamente atacados por medidas de apoio ao patronato. Não obstante, os militares seguiam no poder, respaldados tanto pela aliança com a elite econômica quanto pelo apoio do governo dos Estados Unidos, que viam no regime um aliado útil para impedir a ascensão da esquerda.

O governo de Arturo Armando Molina

O coronel Arturo Armando Molina assumiu a Presidência de El Salvador em julho de 1972, em um contexto marcado pela intensificação da agitação política e pela rearticulação das forças de oposição. A Crise do Petróleo havia resultado no aumento generalizado dos preços dos alimentos e itens básicos, agravando a desigualdade econômica e o descontentamento popular.

As organizações estudantis estavam entre os principais núcleos de oposição à ditadura militar e participavam ativamente dos esforços de mobilização e agitação popular. Destacava-se, em especial, a comunidade acadêmica da Universidade de El Salvador (UES), a maior e mais importante instituição universitária do país.

Desde a década de 1950, a UES havia se convertido em um epicentro do ativismo político progressista. Estudantes da organização convocaram inúmeros atos e protestos contra a coerção política e as violações de direitos humanos. Alguns dos mais eminentes líderes oposicionistas eram egressos da universidade.

Em julho de 1972, poucas semanas após assumir a presidência, Armando Molina ordenou que as Forças Armadas ocupassem a UES, sob a alegação de que a universidade era um “antro de subversão marxista”. A intervenção se estendeu até meados de 1973, resultando na prisão, tortura e assassinato de professores, alunos e funcionários.

A ação de Molina foi seguida pelo recrudescimento da repressão ao movimento estudantil. O governo salvadorenho atacaria a autonomia universitária e implementaria uma série de medidas visando criminalizar as atividades políticas das organizações estudantis.

Em paralelo ao ataque às universidades, Molina também intensificou as operações militares e policiais, fazendo uso de prisões em massa e execuções extrajudiciais contra opositores. Ele ampliou a censura sobre a imprensa, as ações contra os sindicatos e reprimiu brutalmente as organizações da esquerda revolucionária como as Forças Populares de Libertação (FPL) e o Exército Revolucionário Popular (ERP).

monumento estudantes el salvador

Monumento aos Mártires de 30 de Julho em San Salvador
Fotografia de Salvador Henriquez / Wikimedia Commons

A intervenção em Santa Ana

A perseguição do regime salvadorenho contra as universidades prosseguiu nos anos seguintes. Em 25 julho de 1975, o governo ordenou a ocupação militar do Centro Universitário de Ocidente, um campus da UES localizado na cidade de Santa Ana.

Conhecido por sua vibrante e combativa comunidade estudantil, o campus de Santa Ana organizava anualmente o “Desfile Bufo” — uma manifestação satírica onde os estudantes se fantasiavam e parodiavam figuras públicas e instituições da sociedade. O alvo daquele ano, evidentemente, era o regime de Arturo Molina.

A intervenção militar ocorreu na véspera do evento, impedindo que o desfile fosse realizado. A exemplo do que já ocorrera na ocupação da UES em San Salvador, a ação foi executada com enorme truculência, com vários estudantes sendo espancados e presos.

A invasão das Forças Armadas ao campus de Santa Anta indignou a comunidade universitária. Em resposta, os estudantes da UES em San Salvador e alunos do ensino secundário decidiram organizar um protesto contra a contra a intervenção militar e em favor da restauração da autonomia universitária.

A marcha serviria igualmente para denunciar a repressão generalizada no país, a censura à imprensa, a perseguição aos líderes sindicais e a violência contra camponeses.

Por fim, os estudantes aproveitaram a oportunidade para criticar os gastos públicos com o concurso de Miss Universo de 1975. Visando promover uma imagem positiva do país na mídia internacional, o governo havia empenhado mais de um milhão de dólares na organização e promoção do evento — uma decisão que foi bastante impopular entre os salvadorenhos.

O massacre

A manifestação foi organizada pela Associação Geral de Estudantes Universitários Salvadorenhos (AGEUS) e marcada para 30 de julho de 1975. O governo tentou proibir a marcha, alegando que ela representava uma ameaça à segurança nacional. Apesar disso, centenas de pessoas responderam às convocatórias do movimento estudantil e se concentraram na entrada da Faculdade de Ciências e Humanidades da UES, no campus de San Salvador.

O ato teve início por volta das 14 horas. Os estudantes partiram em marcha pela Avenida 25 Norte rumo ao Parque Libertad, um espaço no centro da cidade tradicionalmente utilizado para manifestações políticas e culturais. Os manifestantes entoavam palavras de ordem contra o regime e carregavam faixas e cartazes demandando respeito à autonomia universitária e exigindo o fim das ocupações militares.

Conforme a marcha avançava, a presença militar se intensificou. Aeronaves da Força Aérea começaram a sobrevoar a área, monitorando os manifestantes, enquanto veículos blindados e tropas do Exército, da Guarda Nacional e da Polícia do Tesouro se posicionaram ao longo do trajeto.

Quando os manifestantes chegaram ao viaduto próximo ao Instituto Salvadorenho de Previdência Social, as forças de segurança bloquearam a passagem, usando tanques e soldados armados. Sem qualquer aviso ou tentativa de diálogo, os agentes atacaram a multidão com bombas de efeito moral e gás lacrimogêneo, causando pânico e dispersão.

Uma segunda barreira policial foi montada no lado oposto do viaduto, impedindo o recuo os estudantes. Em seguida, os soldados abriram fogo com armas automáticas, disparando diretamente contra a multidão encurralada. Após o fuzilamento, os militares ainda avançaram sobre o viaduto com tanques, atropelando vários manifestantes e forçando outros a pularem do viaduto. As ruas ficaram cobertas de sangue e corpos caídos.

Vários estudantes que sobreviveram ao ataque foram detidos. Nos dias seguintes, o governo lançou novas operações militares, invadindo outros campi e instalações da UES, prendendo membros da comunidade universitária e destruindo materiais do movimento estudantil.

Reações

O número exato de vítimas permanece uma incógnita, devido à censura e à falta de investigações oficiais. O regime salvadorenho afirmou que apenas uma pessoa morreu durante a repressão à marcha. A AGEUS estima que mais de 100 estudantes foram assassinados durante o massacre.

O relato oficial foi referendado e repetido à exaustação pela imprensa conservadora, mesmo diante de evidências gritantes de que a versão do governo era absurda. Os jornais alinhados ao regime minimizaram a chacina, retratando os manifestantes como subversivos e a coerção como uma ação necessária para garantir a ordem.

Os estudantes detidos na ocasião foram levados a centro de detenção clandestinos, onde sofreram torturas e abusos. Muitos seriam executados e posteriormente classificados como “desaparecidos”. O massacre galvanizou o apoio dos estudantes e de setores da esquerda aos movimentos revolucionários e fortaleceu a percepção de que a luta armada era a única solução para derrubar o regime militar.

Agremiações como o Bloco Revolucionário Popular (BRP) e a Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN) contaram com apoio e adesão de muitos estudantes da UES que testemunharam a matança de 1975. Essas organizações teriam papel central durante a Guerra Civil de El Salvador, que eclodiria em 1980.

Os assassinos que atuaram no massacre jamais foram punidos. Em 1993, logo após o término da Guerra Civil, o governo salvadorenho promulgou uma Lei da Anistia, impedindo a investigação e julgamento dos responsáveis por crimes e atrocidades durante a ditadura. A reconstituição dos eventos também foi bastante prejudicada pela destruição sistemática de provas e evidências conduzida pelo regime.

A revogação parcial da Lei de Anistia pela Corte Suprema de El Salvador em 2016 abriu espaço para novas investigações, mas o progresso tem sido lento devido à resistência política das Forças Armadas, dos setores conservadores e do governo de Nayib Bukele.

A Universidade de El Salvador segue pressionando o governo salvadorenho a autorizar o acesso aos arquivos militares sobre o massacre. Entre 2016 e 2017, a instituição apresentou uma série de pedidos de informação ao Ministério da Defesa, mas nunca obteve resposta, mesmo estando respaldada por decisões judiciais favoráveis à divulgação. Um memorial dedicado aos mártires de 30 de julho foi construído no campus principal da instituição.