33 anos do atentado contra o Centro de Tradições Nordestinas de São Paulo
Grupo neonazista atacou espaço cultural, atirou contra prédio da Rádio Atual e pichou suásticas pregando assassinato de nordestinos
Há 33 anos, em 24 de setembro de 1992, o Centro de Tradições Nordestinas (CTN), um espaço cultural da cidade São Paulo, era alvo de um ataque perpetrado por um grupo neonazista.
Os criminosos dispararam tiros contra o prédio da Rádio Atual, vandalizaram as instalações e picharam suásticas e frases pregando o assassinato de nordestinos.
O episódio integrou uma onda de ataques motivados pelo ódio às minorias étnicas e culturais, evidenciando uma crescente difusão de ideias supremacistas nas grandes cidades do Sudeste.
As gangues da extrema-direita
No Brasil, os anos 80 foram marcados pela crise econômica, pela agitação social e pela instabilidade política. A chamada “década perdida” agravou enormemente a desigualdade social e levou milhões de famílias à pobreza, acossadas pela hiperinflação e pela política de arrocho salarial imposta pela ditadura.
Ao mesmo tempo, os mecanismos de participação política eram extremamente restritos e as iniciativas populares que visavam reivindicar melhorias eram severamente reprimidas. Esse cenário de dificuldades e de falta de perspectiva contribuiu para o ambiente de desilusão entre jovens da classe operária, sobretudo nas periferias do Sudeste.
Muitos desses jovens acabaram aderindo a grupos organizados em torno das subculturas de extrema-direita, inspiradas em movimentos análogos da Europa e dos Estados Unidos — em especial, a fração neonazista dos “skinheads”, que emergiu no Reino Unido no fim dos anos 70.
Importada para o Brasil, essa tendência foi adaptada às particularidades locais, buscando referências no integralismo e nas organizações anticomunistas nacionais. Esse processo resultou na criação de grupos como os Carecas do Subúrbio (e suas várias dissidências e ramificações, como os Carecas do ABC e os Carecas do Brasil), as gangues “White Power”, as organizações que se reivindicam como continuadoras da AIB histórica, etc.
Essas gangues também buscaram adaptar a retórica herdada das matrizes europeias ao contexto nacional. Enquanto os skinheads europeus buscavam culpar os imigrantes do “Terceiro Mundo” pelas mazelas da sociedade, os grupos de extrema-direita brasileiros repetiam essa mesma dinâmica, mas escolhendo os migrantes nordestinos como alvo. Criou-se então uma narrativa xenofóbica sustentada na ideia de que os nordestinos eram “invasores”, que “roubavam empregos” e “degradavam as cidades”.
Embora as ações violentas ficassem a cargo das gangues de extrema-direita, o discurso desumanizante contra os nordestinos ecoava nos meios institucionais. A mídia e a indústria do entretenimento, centralizadas no Eixo Rio-São Paulo, frequentemente reforçavam estereótipos negativos e ridicularizavam a cultura nordestina. Não faltavam também lideranças políticas propensas a utilizar os nordestinos como bodes expiatórios para ocultar a própria inércia, incompetência ou negligência na resolução de problemas.

Festa junina organizada pelo CTN em 2023
Wikimedia Commons
A organização da comunidade nordestina e a Rádio Atual
Em São Paulo, o crescimento dos ataques xenofóbicos também representavam uma reação ao processo de organização e afirmação política da comunidade nordestina da cidade. Em meados dos anos 80, surgiram as primeiras associações locais de migrantes nordestinos, articulando a ação política em prol da inclusão social.
Em 1988, a paraibana Luiza Erundina, então filiada ao Partidos dos Trabalhadores, tornou-se a primeira mulher eleita para governar a cidade de São Paulo. A vitória de Erundina foi em grande parte derivada do forte apoio recebido das comunidades nordestinas na periferia da capital. Tanto a prefeita quanto seus eleitores tornam-se alvos de ataques xenofóbicos dos setores conservadores.
Outro marco importante para a comunidade nordestina de São Paulo ocorreu em novembro de 1990, quando o radialista e empresário José de Abreu fundou a Rádio Atual. Em um período em que as músicas estrangeiras dominavam a programação das rádios, a emissora se destacou por difundir exclusivamente músicas brasileiras, tendo como foco a valorização dos ritmos regionais.
Expressões musicais que eram completamente ignoradas na programação cultural da cidade, tais como o forró, o baião, o xaxado, o xote e o repente, ganharam amplo destaque na rádio, que passou a ostentar com orgulho o título de “a primeira emissora nordestina de São Paulo”.
Programas como o “Resenha do Nordeste” traziam depoimentos e crônicas que rememoravam a trajetória de retirantes forçados a deixar sua terra em busca da sobrevivência em outros locais. Outros programas como “Raízes do Maranhão” enfocavam a história e as tradições regionais.
A estratégia de afirmação da identidade cultural nordestina deu resultados impressionantes. Em apenas três meses, a Rádio Atual saltou para o terceiro lugar no ranking da audiência, tendo como público primordial os mais de dois milhões de migrantes nordestinos que residiam na cidade de São Paulo. Pouco tempo após a criação, a emissora recebeu o prêmio de melhor programação radiofônica, concedido pela Associação Brasileira dos Colunistas de Marketing e Propaganda (Abracomp).
O sucesso da Rádio Atual resultou em um fenômeno curioso. Todos os dias, os ouvintes se dirigiam até a sede da emissora, localizada no bairro do Limão, na tentativa de conhecer pessoalmente os artistas e personalidades que se apresentavam nos programas ao vivo.
Surgiu assim a ideia de transformar a rádio no embrião de um projeto mais abrangente. Em 15 de dezembro de 1991, com apoio da gestão Luiza Erundina, foi inaugurado, no terreno anexo à emissora, o Centro de Tradições Nordestinas (CTN), um complexo voltado à valorização das manifestações culturais do Nordeste.
O CTN logo se consolidou em um ponto de encontro dos migrantes nordestinos de São Paulo, reunindo shows, atividades de lazer, restaurantes especializados, lojas de produtos regionais e quiosques com artes plásticas e artesanato. O espaço também se tornaria um polo de articulação política da comunidade, além de ofertar cursos e serviços gratuitos.
O ataque
Antes mesmo de completar seu primeiro aniversário de fundação, o Centro de Tradições Nordestinas seria alvo de um violento ataque de neonazistas, incomodados com o sucesso da iniciativa.
Na madrugada de 24 de setembro de 1992, o espaço foi invadido por um grupo de seis neonazistas. Eles dispararam tiros contra o prédio da Rádio Atual e depredaram várias instalações. No saguão principal, os criminosos picharam suásticas nazistas e frases pregando o assassinato de nordestinos.
Três integrantes de um grupo chamado “White Power” assumiram a autoria do atentado: os skinheads “MacBaker”, “Puga” e “Alemão”. “MacBaker” era a alcunha usada pelo líder do bando, o office-boy Nelson Ferreira. Ele havia sido entrevistado poucos dias antes pelo programa “Documento Especial“, do SBT, que veiculou uma matéria de 30 minutos sobre os grupos neonazistas de São Paulo.
Dissidência dos Carecas do Subúrbio, os “White Power” notabilizaram-se como um dos mais violentos grupos neonazistas dos anos 90. Os nordestinos eram os alvos preferenciais da gangue, sendo rotulados como “raça mestiça inferior” e apontados como bodes expiatórios para todos os problemas da cidade.
O grupo adotava quase integralmente as bandeiras hitleristas e mantinha estreita colaboração com organizações supremacistas da Itália, da França e da Alemanha, além da Ku Klux Klan e do Partido Nacionalista Revolucionário Brasileiro (PNRB), criado por Armando Zanine Teixeira Júnior.
Dias depois do atentado, mais uma manifestação de ódio foi dirigida contra o espaço. Durante uma festa no CTN, o locutor Jorge Mauro recebeu uma caixa contendo um objeto metálico (possivelmente um simulacro de granada) e um bilhete com ameaças explícitas de morte. O incidente forçou o aumento de segurança no local e paralisou temporariamente as atividades.
O CTN
As tentativas de intimidação tiveram efeito contrário, unindo a comunidade nordestina de São Paulo na defesa do espaço. Manifestações e protestos foram convocados e uma grande campanha resultou na criação da primeira Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância da capital paulista. Sob pressão, a Polícia Federal lançou uma investigação e conseguiu identificar e prender os responsáveis pelo ataque.
O CTN se consagraria cada vez mais como um polo aglutinador da ação política da comunidade nordestina em São Paulo. Em 1993, a instituição conduziu o projeto “SOS Nordeste”, arrecadando mais de 700 toneladas de alimentos para enviar aos municípios nordestinos flagelados pela seca.
Em 1994, o CTN recebeu a visita de Frei Damião, beato que tinha o status de “santo popular” no Nordeste. Uma enorme multidão compareceu ao espaço para assistir à missa e comemorar o aniversário de 96 anos do frade, celebrado com um bolo de 96 metros.
Em 1998, a Capela de Nossa Senhora da Conceição foi inaugurada dentro do complexo do CTN. O espaço guarda os acervos históricos de Frei Damião e Padre Cícero e organiza anualmente a Festa de Padre Cícero, com shows e ações sociais.
O espaço segue até hoje como um dos principais redutos da cultura nordestina em São Paulo, recebendo centenas de milhares de visitantes. Além da agenda cultural, o CTN mantém importantes serviços sociais, incluindo cursos profissionalizantes, assistência médica e odontológica gratuita e a Vila Social, que oferece reforço escolar, atividades esportivas e alimentação para crianças da Zona Norte.























