25 anos sem David Capistrano Filho, um dos arquitetos do SUS
Médico, sanitarista e militante comunista foi um dos principais articuladores da Reforma Sanitária Brasileira e da luta antimanicomial
Há 25 anos, em 10 de novembro de 2000, falecia o médico sanitarista e militante comunista David Capistrano Filho, reconhecido por sua atuação pioneira na área da saúde pública.
Filho de um herói da resistência antifascista assassinado pela ditadura, David militou desde a juventude no Partido Comunista Brasileiro (PCB), tornando-se um dos mais destacados dirigentes dessa organização.
A partir dos anos 70, ele se consagrou como um dos principais articuladores da reforma sanitária, o movimento social e político que resultou na criação do Sistema Único de Saúde (SUS). Foi também um dos autores do texto que serviu de base para os artigos sobre o direito à saúde na Constituição de 1988.
Já filiado ao Partido dos Trabalhadores (PT), David se notabilizou pela gestão excepcional que exerceu em Santos, onde criou diversos programas de referência. Destacou-se ainda como um dos grandes expoentes da reforma psiquiátrica, impulsionando a luta pelo fim dos manicômios.
Médico e militante comunista foi um dos principais articuladores da reforma sanitária, transformando seu movimento no Sistema Único de Saúde
Juventude, militância e formação
David Capistrano da Costa Filho nasceu em Recife, Pernambuco, em 7 de julho de 1948. Ele era o primogênito de Maria Augusta Capistrano e David Capistrano da Costa. Seus pais eram militantes históricos da esquerda, ambos filiados ao Partido Comunista (PCB).
Sua mãe foi uma das organizadoras do movimento comunista na Paraíba. O pai participou do Levante Comunista de 1935, lutou nas Brigadas Internacionais durante a Guerra Civil Espanhola, integrou a Resistência Francesa ao nazismo e foi eleito deputado estadual pelo PCB nas eleições de 1946.
A infância de David transcorreu em um contexto bastante atribulado. Com o término da Segunda Guerra Mundial e a ascensão da Guerra Fria, o governo brasileiro aderiu ao corolário da doutrina Truman, intensificando a repressão aos comunistas. O PCB perdeu seu registro eleitoral e seus parlamentares tiveram os mandatos cassados em 1948.
Jogado na clandestinidade pelo governo Dutra, o pai de David se refugiaria por um tempo na União Soviética. David e suas irmãs — Maria Cristina e Maria Carolina — acompanharam a mãe em suas várias mudanças, primeiro para São Paulo, depois para o Rio Grande do Sul e por fim para o Rio de Janeiro. Foi somente na década seguinte, após a eleição de Juscelino Kubitschek, que as coisas se acalmaram e a família conseguiu desfrutar de alguma tranquilidade.
De volta à sua cidade natal, David deu continuidade aos estudos no Colégio Estadual de Pernambuco. Seguindo os passos dos pais, ele se dedicou à militância no movimento estudantil e ingressou na União da Juventude Comunista (UJC), a ala juvenil do PCB. Conciliou a luta política com a atuação cultural, ajudando a fundar o Clube Literário Monteiro Lobato, a Associação Literária Machado de Assis e o jornal O Secundarista.
O interregno de tranquilidade chegaria ao fim em 1964, após o golpe de Estado que derrubou o governo de João Goulart. Respondendo às convocatórias legalistas, David se uniu aos protestos contra a quartelada. Durante um desses atos, testemunhou o assassinato de um de seus melhores amigos, Jonas José de Albuquerque Barros, fuzilado por agentes do regime.
A mãe de David foi presa e seu pai foi novamente forçado a fugir. David, então com 15 anos, foi detido no Quartel General do IV Exército e depois encaminhado ao Juizado de Menores, ficando recluso por três meses.
Em 1965, fugindo da perseguição do regime, David e sua família se mudaram para o Rio de Janeiro. Ele concluiu o ensino secundário em uma escola noturna do Méier e logo foi aprovado no vestibular para o curso de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Formou-se em 1974, especializando-se como pediatra.
Após a graduação, David ingressou no programa de residência em Medicina Preventiva da Unicamp, onde foi aluno de Sérgio Arouca, um dos mais célebres sanitaristas do Brasil. Aproximou-se de nomes como José Ruben de Alcântara Bonfim e José Augusto Cabral de Barros, interessando-se pelo debate sobre a dimensão política da saúde pública.
O PCB e a Reforma Sanitária
David deu continuidade à sua militância durante a graduação, dedicando-se a reorganizar o setor universitário do PCB. O partido vivia um momento de crise e de fragmentação de sua base, marcado pela saída de dirigentes que criticavam a recusa da agremiação em aderir à luta armada contra a ditadura. David enxergava a priorização da guerrilha como um erro estratégico, mas também condenava a inércia do partido, argumentando em favor de um projeto de mobilização das massas.
Mesmo não tendo atuado diretamente na resistência armada, o PCB também se tornou alvo da ditadura. Em 1973, o Centro de Inteligência do Exército (CIE) lançou a Operação Radar, que tinha o objetivo de desarticular o partido. Entre 1973 e 1976, dezenas de membros do PCB foram assassinados pelo regime, incluindo um terço do Comitê Central.
O pai de David foi uma das vítimas da operação. Ele foi capturado e assassinado em março de 1974 na infame Casa da Morte, o centro de tortura do DOI-CODI em Petrópolis. Seu corpo jamais foi recuperado. Na busca pelo pai, David se uniu ao advogado Modesto da Silveira, que o ajudou a fundar o Grupo de Familiares de Presos Políticos, uma das primeiras organizações voltadas às denúncias sobre os desaparecidos do regime.
David também entrou na mira dos militares e foi preso no final de 1975. Na cadeia, aproximou-se de outros militantes que o ajudariam na tentativa de reorganizar o PCB, completamente desmantelado pela repressão. Em 1976, ele assumiu o cargo de secretário político do comitê do partido em São Paulo, função que exerceria até 1983.
Consagrando-se como principal dirigente do PCB paulista, David se destacou pela combatividade e pela dedicação em reposicionar o partido como uma organização de massas, buscando reconstruir os vínculos com o movimento operário. A iniciativa, no entanto, esbarrava na postura da direção nacional, cada vez mais distante das ideias socialistas e subserviente às estratégias políticas dos setores liberais.
O dirigente comunista também se notabilizou como um dos maiores expoentes da reforma sanitária — o movimento em prol da reorganização da saúde pública no Brasil, pedra angular da futura criação do SUS. David foi cofundador do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES), dando enorme contribuição à luta pela universalização da assistência médica gratuita. Ele também criou a revista “Saúde em Debate”, órgão oficial do CEBES que se tornaria um dos principais veículos dedicados à discussão sobre políticas públicas na área assistencial.
Atuando na Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo, David foi enviado para desenvolver projetos assistenciais na região do Vale do Ribeira. Foi nessa ocasião que conheceu a enfermeira Haidê Benetti de Paula, sua futura esposa. O casal teve três filhos — David, Adélia e Augusto. A esses, somava-se Marta, sua filha primogênita de um relacionamento anterior.

David Capistrano Filho
Departamento de Arquivo e Documentação da Casa de Oswaldo Cruz / Fiocruz
Greves, Diretas Já e ingresso no PT
O projeto de David de refundar o PCB como uma organização de massas encontrava um outro obstáculo além da resistência dos burocratas da agremiação. Após a emergência do Novo Sindicalismo, o movimento operário se reestruturou em torno do Partido dos Trabalhadores (PT), que se consolidaria como o principal núcleo de oposição à ditadura nos anos 80.
Contrariando a cúpula do PCB, que apostava na construção de uma transição tutelada para a democracia, David apoiou as grandes mobilizações populares contra o regime, incluindo a histórica greve geral de 1983 e os primeiros atos do movimento das Diretas Já.
Esses seriam os atritos derradeiros com o partido. Incomodada com a postura indômita de David, a direção nacional interveio no comitê estadual de São Paulo e afastou o dirigente e outros 10 militantes de seu grupo. Os comunistas expulsos se agrupariam em torno da revista A Esquerda, fundada em janeiro de 1984.
Para além dos conflitos partidários, David também enfrentou sérios problemas de saúde nesse período. Diagnosticado com leucemia mieloide aguda em 1982, ele passou um longo período internado e teve de fazer várias sessões de quimioterapia. A doença entrou em remissão, mas reapareceu dois anos depois, forçando o médico a se submeter a um transplante autólogo de medula nos Estados Unidos.
Entre 1984 e 1986, David exerceu o cargo de secretário municipal de Saúde nas gestões de Edison Gasparini e Tuga Angerami na prefeitura de Bauru. Nessa função, criou o Programa de Saúde dos Trabalhadores, atuando em colaboração com os sindicatos na implementação de campanhas preventivas e na ampliação da rede assistencial. Também criou programas de atendimento odontológico, conseguindo zerar a incidência de cáries em crianças de até cinco anos.
Em 1986, David se filiou ao Partido dos Trabalhadores. Concorreu nesse mesmo ano a um assento como deputado federal na Assembleia Constituinte, mas não obteve sucesso. No ano seguinte, foi eleito como membro dos diretórios nacional e estadual do PT e ajudou a elaborar a estratégia política adotada pelo partido no 5º Encontro Nacional. Ele também foi um dos fundadores do oJrnal do PT, uma experiência comunicacional inovadora, inspirada no Rinascita, periódico do Partido Comunista Italiano.
David teve papel central na criação do SUS e no reconhecimento do acesso à saúde como um direito fundamental. Além das contribuições no âmbito do CEBES, ele integrou o Comitê Assessor da 8ª Conferência Nacional de Saúde e ajudou a redigir o relatório que serviu de base aos artigos sobre saúde na Constituição de 1988.
O pernambucano também foi uma das grandes lideranças da luta antimanicomial. Em 1987, ele foi um dos organizadores do chamado “Encontro de Bauru”, a primeira grande mobilização pública em favor da extinção dos manicômios.
Atuação em Santos
Em 1988, David foi incumbido de coordenar a bem sucedida campanha eleitoral de Telma de Souza à prefeitura de Santos. O pleito refletiu o fortalecimento do PT como força eleitoral. O partido conquistou 36 prefeituras em todo o país, incluindo três capitais (São Paulo, Porto Alegre e Vitória) e várias cidades de grande porte (Campinas, São Bernardo do Campo, Santo André, etc.).
Nomeado secretário municipal de Saúde de Santos, David fez uma gestão histórica, marcada por programas que se tornaram referências para a criação de políticas públicas.
Ele foi responsável por conduzir a intervenção na Casa de Saúde Anchieta, um manicômio privado conhecido como “Casa dos Horrores”, onde os internos eram submetidos a torturas e maus-tratos brutais. A intervenção é considerada um marco da reforma psiquiátrica no Brasil, impulsionando o movimento pela desinstitucionalização e o fechamento dos manicômios.
David também conduziu um dos primeiros programas bem sucedidos de prevenção ao HIV, distribuindo seringas descartáveis para dependentes químicos. O programa foi severamente atacado pela imprensa, pelos setores conservadores e até por membros do Ministério Público, que acusaram o petista de estar “incentivando o uso de drogas”. A medida foi fundamental para conter a epidemia na cidade, que chegou a ser conhecida como “a capital da AIDS” nos anos 80.
A excelente gestão na Secretaria de Saúde garantiu a David uma premiação da ONU. O médico assumiu a chefia de gabinete de Telma de Souza e se transformou em favorito para sucedê-la na eleição de 1992. David foi eleito com 56% dos votos no segundo turno, derrotando Vicente Cascione, o pleiteante do PDS.
À frente da prefeitura, David aprofundou as reformas no sistema de saúde. Ele inaugurou Centros de Atenção Psicossocial abertos 24 horas por dia e instituiu as redes de atenção básica e de atendimento ambulatorial no município. Fundou as primeiras policlínicas do Brasil, ajudou a criar as “casas de parto” e lançou projetos pioneiros no âmbito da Estratégia Saúde da Família. Foi também responsável por construir a Maternidade Silvério Fontes e o Complexo Hospitalar da Zona Noroeste (“Hospital Che Guevara”).
David iniciou a urbanização da Favela Dique da Vila Gilda, abandonada pelas gestões posteriores. Criou programas de locação social e fez investimentos sem precedentes na construção de moradias populares. Na área da educação, implementou o projeto “Toda Criança na Escola”, plano de combate à evasão que seria adotado nacionalmente. Também criou um Programa de Renda Mínima (PAF) e inaugurou casas de acolhimento para pessoas em situação de rua.
A despeito da sequência de boas gestões, o PT perderia o controle sobre a prefeitura santista na eleição seguinte. As disputas sucessórias evoluíram para uma série de divergências públicas entre David e Telma de Souza, dividindo o eleitorado e enfraquecendo a campanha do partido. Em 1996, Beto Mansur, candidato do PPB, venceria a disputa pela prefeitura.
Os últimos anos
Desanimado com os rumos do partido, no qual se observava o crescimento das tendências centristas e do discurso em prol da moderação, David se afastou do diretório nacional. Ele voltou a se dedicar aos temas da saúde pública, prestando consultoria ao Ministério da Saúde e auxiliando governos municipais na criação de projetos. Em 1997, David ajudou a implementar o programa de Saúde da Família na cidade de São Paulo.
O sanitarista escreveu alguns livros no campo da saúde, incluindo “Saúde para Todos – Desafio ao Município” e “Da Saúde e das Cidades”. No campo da análise política, escreveu “Há O Que Fazer – A Esquerda na Nova República”, em parceria com Breno Altman e Ubiratan de Paula Santos.
David Capistrano Filho faleceu em São Paulo, em 10 de novembro de 2000, após ser diagnosticado com cirrose hepática — possivelmente uma consequência das quimioterapias a que se submetera no passado. Ele chegou a fazer um transplante, mas seu corpo rejeitou o novo órgão. Milhares de pessoas acompanharam o cortejo fúnebre até o Cemitério Memorial, em Santos.
O militante comunista foi postumamente homenageado emprestando seu nome a diversos equipamentos públicos e ao Prêmio David Capistrano, entregue pelo Conselho de Secretários Municipais de Saúde de São Paulo. Um amplo acervo de documentos, fotografias, livros e objetos pessoais de David foi doado à Fiocruz pela sua família e encontra-se preservado na Casa de Oswaldo Cruz desde 2020.























