200 anos para construir, 6 horas para destruir: a história do Museu Nacional
Incêndio de grandes proporções tomou o Palácio de São Cristóvão, destruindo mais de 90% de seu acervo museológico
Há sete anos, em 2 de setembro de 2018, o Brasil servia de palco a uma das maiores tragédias que se abateram sobre o patrimônio cultural da humanidade. Um incêndio de grandes proporções tomou o Palácio de São Cristóvão, a sede do Museu Nacional, destruindo mais de 90% de seu acervo museológico.
Considerada a mais antiga instituição científica do Brasil, o museu abrigava a maior coleção de história natural e antropologia da América Latina, com mais de 20 milhões de peças, divididas em núcleos de geologia, paleontologia, botânica, zoologia, antropologia biológica, arqueologia e etnologia.
Em menos de seis horas, quase toda a coleção foi incinerada — de fósseis de dinossauros brasileiros até o esqueleto humano mais antigo das Américas, passando por cerâmicas do povo marajoara, sarcófagos egípcios, afrescos romanos, objetos do Império Inca e máscaras rituais africanas.
A “Casa dos Pássaros” e a fundação do museu
O Museu Nacional é o sucessor das coleções amealhadas pela Casa de História Natural, a chamada “Casa dos Pássaros” — um gabinete de ciências naturais fundado no Rio de Janeiro em 1784 pelo Vice-Rei Dom Luís de Vasconcelos e Sousa, seguindo ordens da rainha de Portugal, Dona Maria I.
A instituição abrigava amostras das “riquezas da terra” e fora fundada em um contexto de valorização do estudo das ciências e da história natural, refletindo a consolidação dos ideais iluministas. A “Casa dos Pássaros” funcionava como um entreposto de produtos naturais, onde eram selecionados e armazenados itens representativos da flora e fauna brasileira, que seriam posteriormente remetidos a Portugal e incorporados ao acervo do Museu Real de Lisboa.
Em 1808, fugindo das invasões napoleônicas na Europa, a corte portuguesa se transferiu para o Brasil. Com isso, a Casa de História Natural perdeu sua função de entreposto e foi extinta por decreto do príncipe regente Dom João VI.
A transformação do Rio de Janeiro em sede do governo português gerou a necessidade de modernização das antigas instituições coloniais e de criação de novas organizações aptas a atender as demandas de uma potência ultramarina — instituições que viabilizassem a estadia da família real no Brasil e que fornecessem os elementos necessários ao projeto político do império português.
Assim, Dom João VI ordenou a criação de uma série de órgãos públicos: o Banco do Brasil, a Imprensa Régia, a Academia Militar, a Real Biblioteca, a Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios, o Horto Florestal e, por fim, o Museu Nacional.
Criado por decreto em 6 de junho de 1818, sob a denominação original de “Museu Real”, a nova instituição teve como primeira sede um edifício no Campo de Santana (atual Praça da República). O decreto definia como objetivo do museu “propagar os conhecimentos e estudos das ciências naturais no Reino do Brasil, que encerra em si milhares de objetos dignos de observações e exame”.
Brasil Império
A instituição foi criada seguindo um partido museológico generalista, típico dos “gabinetes de curiosidades” europeus. O museu herdou as coleções zoológicas e botânicas da Casa de História Natural, mas também incorporou artefatos que chegaram ao Brasil junto com a família real.
Já em sua inauguração, o museu contava com itens arqueológicos e etnográficos, manuscritos, mobiliário histórico, obras de arte e a preciosa Coleção Werner — o primeiro acervo mineralógico moderno do mundo, reunido por Abraham Gottlob Werner e adquirido pela coroa portuguesa ainda no século 18.
Rebatizado como “Museu Imperial” após a independência do Brasil em 1822, o museu teve seu acervo ampliado por iniciativa de Dom Pedro I, que repassou à instituição um conjunto de itens de valor antropológico — nomeadamente o valioso acervo egípcio adquirido em 1826 junto ao negociante italiano Nicolau Fiengo.
A política de depósito de itens científicos coletados por missões estrangeiras, instituída pelo ministro José Bonifácio, também ajudou a enriquecer a coleção. O museu criou laboratórios de química e física e iniciou atividades de permuta com instituições estrangeiras.
Na década de 1830, o Museu Imperial já figurava entre os principais museus de história natural do mundo. A instituição inaugurou um herbário e uma biblioteca e organizou diversas expedições científicas, coletando artefatos arqueológicos, etnográficos e itens naturais nos biomas setentrionais do Brasil.
Durante o reinado de Dom Pedro II, o museu, sob gestão de Ladislau Netto, conheceu um de seus períodos mais fecundos, iniciando sua “era de ouro”. Instituiu uma política museológica consistente, com exposições e atividades educativas, implementou os cursos públicos e lançou a primeira publicação científica especializada em ciências naturais do Brasil — os Arquivos do Museu Nacional, que contaram com a colaboração de nomes como Charles Darwin, Armand de Quatrefages e Claude-Henri Gorceix.
O museu também se tornou o depositário oficial do acervo coletado pela Comissão Geológica do Império, dirigida por Charles Frederick Hartt. Em 1882, a instituição inaugurou a Exposição de Antropologia, reunindo um dos maiores acervos de artefatos pré-colombianos da América do Sul.
Brasil República
Com a proclamação da República, o museu agregou ao seu acervo as coleções de Pedro II e Teresa Cristina, desapropriadas pelo novo governo. As coleções abrangiam vasto material científico e histórico, incluindo desde exsicatas de espécimes raras até importantes artefatos egípcios e peças greco-romanas. Renomeado “Museu Nacional”, a instituição foi transferida para o Palácio de São Cristóvão, antiga residência da família imperial localizada na Quinta da Boa Vista.
O diretor João Baptista Lacerda conduziu as obras de adaptação do palácio, criando novas salas e galerias e instalando laboratórios científicos, mas preservando a ambientação de alguns cômodos — as chamadas “Salas Históricas”.
O museu consolidou seu papel como instituição de ensino e pesquisa nas primeiras décadas do século 20, amealhou novos acervos relevantes (nomeadamente a coleção da Comissão Rondon) e lançou importantes periódicos científicos (com destaque para o “Boletim do Museu Nacional”).
A década de vinte foi marcada por uma série de visitas ilustres. Em 1925, o museu foi visitado pelo físico alemão Albert Einstein. No ano seguinte, recepcionou a pesquisadora polonesa Marie Curie e sua filha, Irène Joliot-Curie. Em 1928, foi a vez de Santos Dumont, que testou a decolagem de um modelo de autopropulsão no pátio do palácio.
Nas décadas seguintes, o Museu Nacional experimentou um período prolífico, reunindo parte substancial dos grandes nomes da ciência brasileira em seus quadros. Trabalharam na instituição personalidades como Bertha Lutz, Roquette-Pinto, Alberto Betim Paes Leme, Heloísa Alberto Torres, Augusto Ruschi, Luís de Castro Faria, Raimundo Lopes e Edison Carneiro, entre muitos outros.
Em 1937, foi fundada a Sociedade dos Amigos do Museu Nacional (SAMN), integrada por membros afluentes como Guilherme Guinle, Mariano Procópio e Eduardo May. Com recursos doados pela SAMN, o museu adquiriu uma área de 129 hectares de Mata Atlântica no município de Santa Teresa, no Espírito Santo, posteriormente convertida na Estação Biológica Santa Lúcia.
Obtendo crescente visibilidade internacional, a instituição agregou ao seu corpo de funcionários diversos pesquisadores estrangeiros renomados, incluindo Claude Lévi-Strauss, Ruth Landes e Charles Wagley, entre outros.

Incêndio no Museu Nacional
Felipe Milanez/Wikimedia Commons
Sob a guarda da UFRJ
Em 1946, o museu foi vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A filiação permitiu ao museu intensificar os trabalhos de pesquisa e facilitou os vínculos com a comunidade acadêmica, mas também resultou em restrição significativa de sua autonomia gerencial e orçamentária.
A partir da década de 60, o museu atravessou um prolongado período de crise financeira e dificuldades institucionais. A mudança da capital federal para Brasília impactou negativamente na visibilidade da instituição. Paralelamente a isso, o golpe de 1964 e a subsequente ditadura militar instauraram novos protocolos de gestão da ciência, marcados pela descentralização e especialização em setores tidos como “prioritários”.
O museu sofreu sucessivos cortes em seu orçamento, ao passo que a comunidade acadêmica ligada ao órgão sofreu uma severa campanha persecutória. Em consequência, o museu foi sucateado e sofreu sensíveis limitações à sua atuação como instituição científica. O último presidente a visitá-lo antes do incêndio havia sido Juscelino Kubitschek.
Ao término do regime militar, o Museu Nacional estava com seu prédio totalmente deteriorado e seu funcionamento era precário. Algumas de suas salas estavam fechadas há 16 anos e praticamente todos seus laboratórios estavam inativos.
Os governos dos anos 90 pouco fizeram para reerguer o museu, que seguiu enfrentando severas dificuldades financeiras. O congelamento do orçamento das universidades federais imposto por Fernando Henrique Cardoso teve impacto extremamente negativo sobre a instituição, afetada por repasses cada vez menores da UFRJ.
Durante o governo Lula, os repasses orçamentários para as universidades aumentaram, o que possibilitou ao museu conduzir alguns projetos de melhorias. Em 2006, Fernando Haddad, então Ministro da Educação, incluiu o museu no Projeto de Preservação das Coleções Científicas, liberando verbas para restauração do acervo e higienização da coleção bibliográfica.
Com apoio da Petrobras, o Museu Nacional construiu um anexo e reformulou as exposições permanentes de arqueologia e etnologia. Os repasses, no entanto, continuaram muito aquém das necessidades da instituição.
O edifício, sofrendo com problemas acumulados por décadas de negligência, não passou por restauração, mesmo apresentando sinais visíveis de má conservação, com paredes descascadas e fios elétricos expostos.
Crise e incêndio
A partir de 2014, o museu enfrentou restrições cada vez mais graves em seu orçamento. Em 2015, chegou a fechar as portas por alguns dias em função dos atrasos nos repasses.
De 2016 em diante, as verbas do museu sofreram cortes abruptos, sobretudo após a aprovação da Emenda Constitucional do Teto dos Gastos Públicos — a PEC da Morte, que estabeleceu o “novo regime fiscal”, congelando os investimentos públicos por 20 anos.
Entre 2013 e 2018, o museu teve uma redução de 90% do orçamento anual, que despencou de 520 mil reais para absurdos 54 mil reais. Sem verbas para sustentar suas atividades básicas, o museu praticamente zerou os investimentos na manutenção do edifício, levando a uma deterioração acelerada das suas instalações.
Um documento elaborado pela UFRJ em 2016 alertava para o risco do desabamento do teto do museu. O edifício estava tomado por goteiras e infiltrações. Nos dias chuvosos, os funcionários chegavam a cobrir estantes e prateleiras com sacos de lixo e a espalhar baldes pelo espaço expositivo.
No ano seguinte, um ataque de cupins forçou a interdição da sala onde era exibida a réplica do esqueleto do Maxakalisaurus — o primeiro dinossauro de grande porte a ser montado no Brasil. Sem verbas, o museu teve de organizar uma vaquinha virtual para combater a praga e reabrir o espaço expositivo.
Não faltaram avisos sobre os riscos a que o museu estava exposto. Ainda em 2004, Wagner Victer, então Secretário de Energia, Indústria Naval e Petróleo do governo do Rio de Janeiro, fez um alerta sobre a precariedade das instalações elétricas, a existência de fiações expostas e a ausência de um sistema de combate a incêndios.
Esses alertas foram repetidos inúmeras vezes, inclusive por funcionários e pesquisadores da UFRJ. Em 2015, o museu chegou a firmar um contrato com o BNDES para a instalação de um sistema integrado de sprinkler — um dispositivo automático de combate a incêndios. A verba, no entanto, somente seria liberada após a eleição presidencial marcada para outubro de 2018.
Era tarde demais. Na noite de 2 de setembro de 2018, a tragédia anunciada se concretizou. O incêndio foi causado pelo curto-circuito de uma instalação improvisada, que provocou o sobreaquecimento do sistema de ar-condicionado do edifício. Às 19h30, o prédio já estava tomado por labaredas altas e o incêndio estava fora de controle.
Os bombeiros tiveram dificuldade em combater as chamas, pois os hidrantes mais próximos não tinham água, obrigando-os a solicitar o auxílio de caminhões-pipa. O fogo ardeu por seis horas, destruindo completamente o palácio e tudo que estava abrigado em suas salas.
O que perdemos
O incêndio causou uma perda inestimável para o patrimônio museológico nacional. Mais de 92% do acervo científico da instituição se perdeu, incluindo as maiores coleções mundiais de arqueologia pré-cabralina e de etnologia dos povos indígenas sul-americanos.
O Museu Nacional conservava mais de 90.000 artefatos produzidos pelos povos que habitavam o território brasileiro antes da chegada dos europeus. Havia uma vasta coleção de cerâmicas produzidas pelas culturas Marajoara e Tapajônica, incluindo urnas funerárias de grande porte e os preciosos “vasos de cariátides”.
Também havia peças das culturas Konduri, Maracá, Miracanguera e Tupi-Guarani e raros exemplares de múmias indígenas encontradas em Minas Gerais. No núcleo de artefatos pré-colombianos, destacavam-se centenas de cerâmicas provenientes das civilizações andinas (Nazca, Moche, Huari, Chancay e Inca) bem como múmias do Chile e da Bolívia.
A coleção de etnologia africana e afro-brasileira contava com preciosidades como o trono do Reino do Daomé, ofertado ao Dom João VI pelo Rei Adandozan, assim como exemplares de máscaras rituais do povo Yorubá, artefatos de Angola e Madagascar, e a coleção antropológica doada por Heloísa Alberto Torres, com objetos de uso cotidiano e ritualístico.
O acervo de arqueologia egípcia era o maior da América Latina, com mais de 700 peças. O incêndio destruiu quatro sarcófagos de sacerdotes egípcios — incluindo o caixão lacrado de Sha-Amun-en-su, uma cantora do Templo de Karnak. Seis das sete múmias egípcias que existiam no Brasil também foram perdidas, além de estelas, estatuetas, vasos canópicos, joias e amuletos.
A coleção de artefatos greco-romanos da imperatriz Teresa Cristina também foi quase inteiramente dizimada. Ela abarcava vários objetos que foram recuperados do sítio arqueológico de Veios e das ruínas das cidades de Herculano e Pompeia, incluindo um conjunto de afrescos destacados das paredes do Templo de Ísis. A coleção de cerâmicas clássicas era uma das maiores do continente.
No acervo de antropologia biológica, destacavam-se os remanescentes do esqueleto de Luzia — o mais antigo fóssil humano já encontrado nas Américas. Havia também exemplares de restos humanos de mais de oitenta indivíduos pré-históricos provenientes da região de Lagoa Santa, em Minas Gerais.
No núcleo de paleontologia, o museu conservava quase 60.000 exemplares fósseis de plantas e animais, reconstituições, réplicas, modelos e moldes. Destacavam-se os registros fósseis de pterossauros e dinossauros da Chapada do Araripe, da Formação Diamantina e da Formação Santa Maria, bem como esqueletos da megafauna extinta do Brasil.
A reconstrução
Passados sete anos da tragédia, o Museu Nacional ainda não conseguiu concluir as obras de restauração de sua sede. O custo estimado das obras é de mais de R$ 516 milhões e a previsão para a reabertura é entre 2027 e 2028.
As contribuições do setor privado e dos bilionários brasileiros até o momento são pífias. Quase um ano após a abertura da campanha de doações para o restauro do Museu Nacional, o valor arrecadado era de apenas R$ 1,1 milhão. A bilionária brasileira Lily Safra, que no mesmo período doou 20 milhões de euros para a reforma da Catedral de Notre-Dame em Paris, não contribuiu com um centavo para o museu brasileiro, por exemplo.
As raras contribuições particulares foram concedidas por intermédio de incentivos fiscais via Lei Rouanet. Poucos parlamentares se voluntariaram a destinar emendas para a instituição.
O grosso dos recursos destinados ao museu tem origem no governo federal: R$ 100 milhões do BNDES, R$ 44,3 milhões do Ministério da Educação e R$ 20 milhões do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações.























