129 anos do Massacre de Canudos
Conflito armado com o governo de Prudente de Morais resultou na morte de quase toda a população do povoado localizado em Belo Monte
Há 129 anos, em 7 de novembro de 1896, tinha início a primeira expedição militar enviada para destruir o povoado de Canudos, no Sertão da Bahia.
Fundada pelo beato Antônio Conselheiro em 1893, a comunidade de Belo Monte, em Canudos, se destacou como uma experiência de organização comunal. A terra pertencia a todos, as tarefas eram realizadas em regime de cooperação e os recursos eram divididos de forma igualitária.
Canudos se converteu em um “paraíso dos pobres”, recebendo milhares de camponeses, flagelados da seca, indígenas expulsos de suas terras e ex-escravizados. Tornou-se a segunda maior cidade da Bahia e provocou um verdadeiro êxodo de trabalhadores na região — pessoas que largavam a exploração nas fazendas e iam viver no arraial.
Rotulada como uma ameaça ao sistema vigente, uma comunidade de “fanáticos perigosos”, Canudos foi alvo de uma série de campanhas militares. A comunidade conseguiu resistir às três primeiras expedições, mas foi subjugada na quarta ofensiva, que mobilizou mais de 8.000 soldados. O massacre deixou cerca de 25.000 mortos — quase toda a população do povoado.
O messianismo rústico no Sertão
O fim do século 19 no Brasil foi marcado por uma série de reformas institucionais de grande importância. A assinatura da Lei Áurea em 1888 finalmente aboliu a escravidão, encerrando uma chaga moral que já se prolongava há quase quatro séculos. No ano seguinte, o regime monárquico foi deposto e o Brasil se tornou uma república.
Embora representassem avanços no campo político e social, essas transformações tiveram impacto limitado na vida da população mais pobre. A abolição não foi acompanhada por medidas de inclusão dos ex-escravizados, que foram largados à própria sorte sem quaisquer meios de subsistência. E o regime republicano seguiu excluindo as camadas populares da participação política, concentrando todo o poder decisório nas mãos das oligarquias rurais.
No Sertão nordestino, o cenário era de miséria. A terra estava concentrada nas mãos dos latifundiários. Os trabalhadores rurais sofriam com o flagelo da seca, com a fome e com a exploração dos coronéis. Grupos de ex-escravizados vagavam pelas estradas implorando por emprego nas fazendas da região. O poder público era praticamente inexistente. Os funcionários do governo só apareciam no Sertão para cobrar impostos.
Nesse cenário desolador, muitos sertanejos buscavam na fé e nas promessas religiosas a força para enfrentar o sofrimento cotidiano. Nos grotões e áreas remotas, onde a igreja também era ausente, essa dinâmica fortaleceu o chamado messianismo rústico, fortemente influenciado pelas tradições religiosas populares.
Esses movimentos costumavam ser organizados e liderados por beatos, conselheiros e pregadores místicos, que eram respeitados como profetas, portadores da verdade divina. Lideranças religiosas que levavam esperança, conforto e a promessa de redenção aos sertanejos. O mais célebre desses líderes foi Antônio Vicente Mendes Maciel, vulgo Antônio Conselheiro.
Antônio Conselheiro e a comunidade de Belo Monte
Nascido na vila de Quixeramobim, no Ceará, Antônio cresceu testemunhando a miséria e o sofrimento impostos aos camponeses do Sertão. Filho de um pequeno comerciante, ele teve acesso à educação formal, estudando latim, francês, gramática e aritmética. Já adulto, começou a trabalhar como professor e escrivão.
Na década de 1860, após uma série de problemas familiares, Antônio se tornou um pregador leigo. Ele passou a peregrinar pelo Sertão nordestino, distribuindo sermões e advertências que lhe valeram a alcunha de “Antônio Conselheiro”. Tornou-se conhecido por organizar mutirões em prol de melhorias nos vilarejos do Nordeste, construindo dezenas de igrejas, capelas e cemitérios e realizando obras sociais.
As pregações de Antônio Conselheiro não se limitavam ao mundo espiritual. Ele também criticava os abusos dos poderosos, a ganância dos coronéis, a exploração dos trabalhadores e a negligência do governo. Sua figura carismática e austera, a disposição em ajudar os necessitados e a mensagem messiânica de que os pobres seriam salvos por Deus lhe granjearam milhares de seguidores.
Em 1893, após peregrinar por três décadas no Sertão, Antônio Conselheiro se estabeleceu no vilarejo de Canudos, uma pequena aldeia às margens do Rio Vaza-Barris, no Sertão da Bahia. Foi ali que o beato e seus seguidores decidiram criar seu “paraíso dos pobres na Terra” e fundaram a comunidade de Belo Monte. Trabalhando em comunhão, os fiéis ergueram igrejas, escolas, armazéns, lavouras e reservatórios de água.
O povoado de Belo Monte foi estruturado como uma comunidade autossuficiente e autônoma. Uma experiência de organização comunal que rejeitava por completo o modelo de subordinação dos camponeses nos latifúndios.
Não havia propriedade privada da terra. As lavouras, os animais, as ferramentas pertenciam a todos. O trabalho era executado em regime de cooperação e a divisão de recursos era feita de forma igualitária. Havia teto, comida e água para todos. E ao contrário do que ocorria nos demais vilarejos do Nordeste, em Canudos, os filhos dos pobres podiam estudar.
O que começou como um pequeno povoado logo se converteu em uma verdadeira cidade. Atraídos pela presença de Antônio Conselheiro e pelas notícias sobre um “paraíso dos pobres” no Sertão baiano, milhares de pessoas partiram em busca de Canudos.
Flagelados da seca, trabalhadores sem-terra, ex-escravizados, indígenas expulsos de suas aldeias, todos eram bem-vindos à comunidade de Antônio Conselheiro. Em seu ápice, Canudos chegou a ter 25.000 habitantes. Era o segundo maior núcleo urbano da Bahia, atrás apenas de Salvador.
Uma ameaça ao sistema
O rápido crescimento de Canudos se tornou um incômodo para os latifundiários da região. A comunidade religiosa provocou um êxodo de trabalhadores das grandes fazendas. Todos preferiam a vida comunal à opressão inclemente que sofriam nas mãos dos coronéis. O modelo alternativo de organização da comunidade era visto como uma ameaça à ordem econômica que beneficiava as oligarquias rurais.
As pregações de Antônio Conselheiro provocavam incômodo no governo republicano. O beato instruiu a comunidade não pagar impostos e taxas e dizia que a república era a materialização do “reino do Anticristo na Terra” — um discurso que ressoava entre os sertanejos, já que a única mudança que a república trouxera para a região foi o aumento de impostos e da repressão.
Antônio Conselheiro também era visto com maus olhos pela Igreja Católica. Sua interpretação popular do catolicismo era considerada uma deturpação da doutrina oficial e uma ameaça à estrutura hierárquica do clero. Luís Antônio dos Santos, o arcebispo da Bahia, chegou a proibi-lo de pronunciar sermões nas igrejas.
Porta-voz das classes dominantes, a imprensa passou a atacar vigorosamente a figura de Antônio Conselheiro, rotulando-o como um “monarquista perigoso” que estava se aliando a potências estrangeiras em um plano para “derrubar a república”. Os moradores de Canudos eram retratados como “matutos fanáticos e ignorantes” que planejavam saquear e aterrorizar as cidades da região.

Sobreviventes do Massacre de Canudos fotografados por Flávio de Barros
Wikimedia Commons
As expedições
Foi a histeria criada pela imprensa que motivou o primeiro ataque militar contra Canudos. Em outubro de 1896, Antônio Conselheiro havia encomendado uma remessa de madeira em Juazeiro, a fim de construir uma nova igreja. A encomenda foi paga antecipadamente, mas nunca foi entregue. Difundiu-se então o boato de que os canudenses estavam se preparando para saquear Juazeiro.
Receosas, as autoridades locais pediram ajuda ao governo da Bahia, que enviou um destacamento de 113 soldados para proteger Juazeiro em 7 de novembro de 1896. Duas semanas depois, cansado de esperar o ataque que nunca se concretizava, o tenente Manuel da Silva Pires Ferreira decidiu comandar uma expedição militar contra o povoado.
Antes que pudessem chegar à comunidade, os soldados foram surpreendidos por uma multidão de conselheiristas comandados por Pajeú e João Abade. Os grupos se enfrentaram na sangrenta Batalha de Uauá, que, apesar do alto custo humano, terminou com a vitória dos conselheiristas. Estima-se que 150 camponeses e 16 soldados tenham morrido no embate.
A notícia sobre os militares mortos por “fanáticos” causou indignação na imprensa e provocou reivindicações exaltadas de uma ofensiva retaliatória. Ciente de que o governo faria novos ataques, a comunidade de Canudos se armou e começou a fortificar os acessos ao povoado.
A segunda expedição começou em janeiro de 1897. A incursão foi liderada pelo major Febrônio de Brito e mobilizou mais de 600 soldados. Os militares acreditavam que seria uma missão simples, mas o mero deslocamento no Sertão árido sob o Sol de janeiro já os desgastou. Quando finalmente chegaram a Canudos, os soldados encontraram uma resistência aguerrida.
Os embates mais violentos ocorreram em torno da Lagoa do Cipó, que passaria a ser conhecida como “Lagoa de Sangue”. A batalha se prolongou por dois dias e custou a vida de mais de 300 sertanejos. Novamente, os conselheiristas venceram o embate e forçaram os soldados a recuar.
Diante do segundo fracasso das tropas baianas, o governo federal decidiu assumir o comando da intervenção. O coronel Antônio Moreira César foi incumbido de liderar uma nova campanha. Veterano da Revolução Federalista, Moreira César era conhecido por sua implacável sede de sangue — o que lhe valeu o apelido de “o Corta-Cabeças”.
A terceira expedição teve início em março de 1897, mobilizando mais de 1.300 homens. Canudos também recebeu reforços. A notícia de que tropas federais estavam marchando para destruir o povoado motivou voluntários de várias partes do Nordeste a partirem em defesa da “vila santa” de Antônio Conselheiro. Pajeú, João Abade, Pedrão e Joaquim Macambira comandaram a resistência.
Mais uma vez, a comunidade venceu o embate. Os soldados do Exército, acostumados ao enfrentamento aberto, acabaram sendo surpreendidos pelas emboscadas nos labirintos de Canudos. O tenente Moreira César morreu durante o combate, alvejado por dois tiros. Foi substituído pelo coronel Pedro Tamarindo, que também seria morto no mesmo dia. Os conselheiristas penduraram o corpo do coronel em uma árvore, deixando uma advertência às tropas federais.
A destruição de Canudos
A derrota humilhante sofrida pelo Exército Brasileiro em Canudos foi tratada de forma histérica pela imprensa e fez o governo de Prudente de Morais mergulhar em uma crise política. Protestos exigiam punição rigorosa aos “fanáticos” e organizações monarquistas foram atacadas no Rio de Janeiro. Acusado de ser simpatizante dos conselheiristas, Gentil José de Castro, proprietário da Gazeta da Tarde, foi assassinado.
O presidente removeu Francisco de Paula Argolo do Ministério da Guerra e nomeou Carlos Machado de Bittencourt para a função. Suas instruções eram claras: Canudos deveria ser erradicada de uma vez por todas. A campanha mobilizou mais de 8.000 soldados, equipados com canhões, metralhadoras e 700 toneladas de munição.
A quarta e última expedição foi comandada pelo general Artur Oscar de Andrade Guimarães. Os soldados se agruparam em duas grandes colunas, lideradas pelos generais João da Silva Barbosa e Cláudio do Amaral Savaget. O ministro da Guerra supervisionou pessoalmente as operações, instalando seu quartel general em Monte Santo, de onde coordenava a logística da campanha.
As colunas marcharam em paralelo para evitar emboscadas, convergindo no Alto da Favela (ou Morro Vermelho) em junho de 1897. Os primeiros embates ocorreram em Cocorobó, seguidos por batalhas em Trabubu, Macambira, Angico e Umburana. Os conselheiristas impuseram uma resistência heroica, enfrentando os soldados com táticas de guerrilha e escaramuças.
Mesmo sofrendo pesadas baixas, os camponeses conseguiram neutralizar o avanço da primeira coluna e forçar a segunda ao recuo. Tão impressionante era a resistência dos canudenses que o ministro da Guerra foi forçado a enviar um reforço adicional de 3.000 soldados.
O cerco a Canudos se prolongou por meses. Além das batalhas sangrentas, a população do povoado sofria com a fome e com o alastramento das epidemias. Antônio Conselheiro faleceu no dia 22 de setembro de 1897. Não se sabe a causa exata da sua morte, ora atribuída a condições médicas, ora citada como consequência dos ferimentos causados por uma granada. Ainda em setembro de 1897, o Exército Brasileiro iniciou uma violenta campanha de bombardeios contra a comunidade, matando milhares de pessoas.
No fim de setembro, os soldados ampliaram as incursões no arraial, conduzindo uma série interminável de chacinas. Com a comunidade completamente arrasada, sem munição e sem comida, os conselheiristas tentaram se render. No dia 2 de outubro, Antônio Beatinho recebeu do general Artur Oscar a promessa de que os camponeses teriam suas vidas poupadas caso se rendessem.
Um grupo de 300 pessoas, em grande parte composto por mulheres, crianças e idosos, resolveu se entregar — mas os militares não mantiveram o acordo. Os camponeses foram sumariamente executados. Muitos foram degolados, em um castigo que os soldados apelidaram de “gravata vermelha”.
A campanha chegou ao fim no dia 5 de outubro de 1897, quando os últimos quatro defensores de Canudos tombaram em combate — dois adultos, um idoso e uma criança. Em seguida, os soldados destruíram e incendiaram todas as casas do povoado. O corpo de Antônio Conselheiro foi exumado e sua cabeça foi decepada e enviada para a Faculdade de Medicina de Salvador, a fim de ser estudada pelo eugenista Nina Rodrigues.
Estima-se que 25.000 pessoas foram assassinadas durante o Massacre de Canudos — quase toda a população da cidade. Somente 150 pessoas sobreviveram à matança.
O escritor Euclides da Cunha, correspondente do jornal O Estado de S. Paulo, registrou o conflito em reportagens que dariam origem ao livro Os Sertões, obra que se tornou um marco da literatura brasileira e inspirou trabalhos de escritores do mundo inteiro, incluindo A Guerra do Fim do Mundo, de Mario Vargas Llosa.























