Sábado, 6 de dezembro de 2025
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Há 128 anos, nascia Virgulino Ferreira da Silva, alcunhado Lampião, o “Rei do Cangaço”.

Oriundo de uma família de lavradores do Sertão pernambucano, Lampião trabalhou como vaqueiro, tropeiro e artesão. O assassinato do pai em uma disputa por terras o motivou a jurar vingança e a seguir a trajetória de cangaceiro.

Assumindo o comando do bando de Sinhô Pereira, Lampião se converteria uma figura lendária, encapsulando as contradições inerentes a um contexto de enorme violência, opressão e desigualdade social.

Sob o comando de Lampião, os cangaceiros percorreram todo o Nordeste praticando saques e assaltos. Ao mesmo tempo em que eram temidos pela crueldade e pela conduta violenta, os cangaceiros também angariavam a simpatia de muitos sertanejos explorados, sendo vistos como justiceiros que lutavam contra coronéis e fazendeiros poderosos.

Assassinado no Massacre de Angicos, ele exerceu enorme influência na arte popular e no folclore nordestino, inspirando a música, o artesanato, a literatura de cordel e o cinema e convertendo-se em uma espécie de símbolo da resistência sertaneja.

A juventude de Lampião

Virgulino Ferreira da Silva nasceu em Vila Bela, atual município de Serra Talhada, no Sertão de Pernambuco. Seu aniversário exato é uma incógnita. A certidão de nascimento registra que ele teria nascido em 7 de julho de 1897. A certidão de batismo diz que a data correta é 4 de junho de 1898. Já o cordelista Antonio Américo de Medeiros afirma que Lampião teria nascido em 12 de fevereiro de 1900.

Seus pais eram José Ferreira da Silva e Maria Lopes de Oliveira. A família era humilde e numerosa. Virgulino era o terceiro dos nove filhos do casal. Ele sabia ler e escrever — algo que era bastante raro entre os lavradores do Sertão. Em sua juventude, Virgulino foi um habilidoso vaqueiro e destacou-se pelos dotes artísticos. Ele se dedicava à fabricação de utensílios de couro, produzindo móveis, arreios, selas e chicotes, que eram vendidos nas feiras da região.

Seu pai era dono de um pequeno lote de terra, de onde a família tirava seu sustento. Eles também possuíam um pequeno rebanho de gado e alguns cavalos, utilizados para o transporte de carga. A exemplo dos pais, Virgulino era um jovem muito religioso e devoto de Padre Cícero — o célebre sacerdote de Juazeiro do Norte, cujas obras sociais e influência política se estendiam por todo o Nordeste.

Vizinha ao terreno, estava a propriedade dos Alves de Barros. As duas famílias a princípio tinham relações amistosas, mas acabaram se tornando inimigas em função das disputas sobre os limites das propriedades e as acusações mútuas sobre roubos de animais.

As brigas se tornaram cada vez violentas, levando os Ferreira da Silva a venderem seu sítio e se mudarem — primeiramente para a vila de Nazaré, nos arredores de Floresta, e depois para Mata Grande, em Alagoas, onde viveram sob proteção do coronel Ulisses Luna.

Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, retratado por Benjamin Abrahão Botto em 1927
Wikimedia Commons

O fenômeno do cangaço

Em 1919, José Ferreira, o pai de Virgulino, foi assassinado em um confronto com a polícia, ocorrido em virtude das disputas travadas com as famílias da região. A mãe, Maria Lopes, adoeceu e faleceu pouco tempo depois. Virgulino e seus irmãos Antônio, Livino e Ezequiel juraram vingança e se juntaram ao bando do cangaceiro Sinhô Pereira.

Os cangaceiros eram um misto de bandoleiros e insurgentes, tipicamente enquadrados no fenômeno que Eric Hobsbawn definiu como “banditismo social” — caracterizado pela formação de grupos marginalizados que recorrem à violência e ao crime como resultado de um contexto de graves problemas sociais, exclusão, anomia política e ausência do Estado.

Embora fossem temidos por seus atos brutais, como assassinatos, saques e sequestros, muitas vezes contra pessoas inocentes, os cangaceiros também eram reconhecidos por sua ação contra coronéis, fazendeiros e líderes políticos que submetiam os sertanejos à exploração e a vários tipos de desmandos e brutalidades.

Alguns cangaceiros também costumavam distribuir parte dos bens roubados ou oferecer proteção a comunidades que sofriam abusos. Assim, ao mesmo tempo em que eram vistos como bandidos e criminosos, eles também se tornavam símbolos de resistência e de vingança, angariando enorme prestígio junto a uma parcela da população do Sertão.

Assumindo o bando de Sinhô Pereira

Não tardou para que Virgulino se destacasse entre os cangaceiros. A própria alcunha de “Lampião” é uma referência à sua habilidade com o rifle. Diziam que durante os ataques noturnos, Virgulino disparava com tanta rapidez que sua arma iluminava permanentemente o caminho, daí sendo chamado de “Lampião”.

Em 1922, Sinhô Pereira abandonou o cangaço, atendendo a um pedido feito pelo Padre Cícero. Lampião assumiu então o posto de líder do bando. Nos anos seguintes, ele realizaria uma série de ataques a fazendas, saques a vilarejos e sequestros de coronéis.

A primeira grande ação conduzida por Lampião foi a invasão à cidade de Belmonte, em Pernambuco, onde ele assassinou o coronel Luiz Gonzaga Gomes Ferraz. Ainda em 1922, Virgulino matou o informante que havia entregado o seu pai à polícia.

Em seguida, Lampião realizou o maior assalto da história do cangaço até então, invadindo e saqueando a fazenda da Baronesa de Água Branca em Alagoas. Depois partiu para Pernambuco, onde sitiou e pilhou as cidades de Belém do São Francisco e Salgueiro.

Em 1926, Lampião se encontrou com Padre Cícero. Na ocasião, o sacerdote tentou convencê-lo a ajudar no combate à Coluna Prestes — o gigantesco movimento guerrilheiro liderado por Luiz Carlos Prestes e pelos tenentistas contra o governo oligárquico da Primeira República. Em troca, o religioso lhe prometeu a patente de capitão. Lampião aceitou a oferta, a fim de receber armas e munições para o seu bando, mas não atuou nos combates contra os guerrilheiros.

Maria Bonita

A fama de invencibilidade de Lampião cresceu rapidamente, atraindo cada vez mais cangaceiros para o grupo. No ápice, o bando chegou a abranger mais de 100 combatentes. Lampião criou então subgrupos paralelos, designando outros cangaceiros para dirigi-los, a exemplo de Corisco e Antonio de Engracia.

Em 1929, Lampião conheceu Maria Bonita — uma mulher de Santo Antônio da Glória, que vivia em um relacionamento abusivo com o sapateiro Zé de Neném. Cansada das agressões do marido, ela o abandonou e fugiu com Lampião, tornando-se sua companheira pelo resto da vida.

Maria Bonita foi a primeira mulher a integrar o cangaço. Ela era tratada com respeito e reverência pelos membros do grupo e tinha direito a algumas regalias por ser mulher do capitão — joias, perfumes, vestidos de seda etc. Não obstante, participava ativamente das ações do grupo. Era bem treinada no uso de armas e carregava sempre seu Colt calibre 38 e um punhal estilizado feito de prata e marfim.

Em 1932, Lampião e Maria Bonita tiveram uma filha, batizada Expedita Ferreira Nunes. Ainda pequena, a criança foi entregue à tutoria de um tio paterno, João Ferreira, para que crescesse em segurança, fora do cangaço.

Lampião, Rei do Cangaço

A fama gerada pelos assaltos espetaculares às propriedades de fazendeiros e coronéis ultrapassou as fronteiras nacionais e Lampião virou destaque até no jornal The New York Times. Em 1936, já transformado em uma celebridade, ele permitiria que o fotógrafo Benjamin Abrahão Botto se juntasse ao grupo para registrar a rotina dos cangaceiros.

Durante quase duas décadas, Lampião comandaria o que se tornou o maior e mais temido grupo de cangaceiros do Nordeste, ganhando o incontestável título de “Rei do Cangaço”.

Os cangaceiros viajavam a cavalo e usavam trajes de couro como proteção contra os arbustos da caatinga. As armas costumavam ser roubadas da própria polícia e de unidades paramilitares. Atacaram fazendas e cidades de sete dos nove estados do Nordeste, passando por Pernambuco, Alagoas, Bahia, Sergipe, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará.

O bando de Lampião roubava gado, saqueava latifúndios e cometia atos generalizados de violência. Sempre venciam os confrontos contra as volantes, — os destacamentos policiais enviados para capturar o grupo — a ponto de alguns sertanejos passarem a acreditar que os cangaceiros eram dotados de poderes extraordinários ou que tinham algum tipo de proteção sobrenatural.

A receptividade a Lampião e seu bando era ambígua. Ao mesmo tempo em que o cangaceiro causava terror e indignação nos moradores das cidades atacadas, ele também podia ser leal e generoso com os que conquistavam sua confiança.

Muitos sertanejos explorados se sentiam “vingados” pelas ações do bando contra os fazendeiros e coronéis e por esse motivo os apoiavam, fornecendo comida, água e abrigo. Lampião também era ocasionalmente auxiliado por coiteiros e pequenos sitiantes que objetivavam uma aliança contra um inimigo em comum.

A morte de Lampião

A trajetória de façanhas de Lampião terminou em 28 de julho de 1938, em Angicos, no sertão de Sergipe, justamente no esconderijo que ele acreditava ser o mais seguro. O bando foi traído por Joca Bernardes, um coiteiro de Corisco, que delatou o paradeiro do grupo à polícia de Alagoas.

Os cangaceiros repousavam quando foram surpreendidos pela volante comandada pelo tenente João Bezerra. Dos 34 membros do grupo que estavam presentes, 11 morreram no próprio local, incluindo Lampião, Maria Bonita, Luís Pedro, Quinta-Feira e Mergulhão.

Após o massacre, as cabeças de Lampião, Maria Bonita e outros cangaceiros foram cortadas e enviadas para Salvador, onde ficaram expostas durante quase 30 anos no Museu Nina Rodrigues, em Salvador. A exposição era uma maneira de exaltar a vitória do Estado, desmentir o mito da invencibilidade de Lampião e desencorajar a ação dos bandos.

A morte de Lampião marcou o declínio do cangaço. Embora alguns bandos tenham continuado atuando até meados do século 20, o aumento da repressão, a perda das principais lideranças e as mudanças sociais e econômicas no país resultaram no enfraquecimento do movimento a partir dos anos 40.

O legado

As façanhas de Lampião tiveram profundo impacto sobre a cultura popular do Nordeste, influenciando a criação de ditados, canções, peças de teatro e todo um ciclo da literatura de cordel. Nessas manifestações culturais, sua figura segue ambivalente — ora heroicizada como um defensor dos oprimidos, uma espécie de “Robin Hood” do Sertão, ora demonizada como um sociopata sanguinário que oprimia inocentes.

A categorização mais precisa das ações de Lampião provavelmente continua se perfilando ao conceito do “banditismo social”, consolidando-o como um personagem que extrapola os estereótipos clássicos de “heróis” e “vilões”.

Como explicado por Hobsbawn, “o ponto básico a respeito dos bandidos sociais é que são proscritos rurais, encarados como criminosos pelo senhor e pelo Estado, mas que continuam a fazer parte da sociedade camponesa, e são considerados por sua gente como heróis, como campeões, vingadores, paladinos da Justiça, talvez até mesmo como líderes da libertação e, sempre, como homens a serem admirados, ajudados e apoiados. É essa ligação entre o camponês comum e o rebelde, o proscrito e o ladrão que torna o banditismo social interessante e significativo.”

Lampião era um revoltoso, mas não era um revolucionário. Embora tenha combatido os opressores, ele não possuía a consciência de classe necessária para canalizar a revolta em prol de uma revolução social. Seu espólio não era dividido com os mais humildes, mas utilizado em benefício de seu próprio grupo.

Ele era violento, cruel e vingativo, mas também podia ser leal e generoso. Não buscou ser um herói do povo, mas ao mesmo tempo, ainda que inconscientemente, encarnou o espírito de revolta e subversão dos oprimidos, o que lhe granjeou a admiração de muitos.

Além de seu status de “herói folclórico” e sua influência na arte popular, Lampião deixou um legado artístico próprio. Ele foi artesão, poeta, compositor e até mesmo estilista. Foi Lampião quem inventou um dos maiores símbolos da cultura nordestina — o chapéu meia-lua de couro, popularmente denominado “chapéu de cangaceiro”. Ele ajudou a criar parte substancial da indumentária cangaceira.

Lampião também teve enorme influência sobre a música popular nordestina. O xaxado é uma criação direta dos cangaceiros do seu bando e a canção “Mulher Rendeira”, a obra mais célebre do gênero, é uma composição atribuída ao próprio Rei do Cangaço.