Sábado, 6 de dezembro de 2025
APOIE
Menu

Há 117 anos, em 5 de setembro de 1908, nascia o médico, geógrafo e sociólogo pernambucano Josué de Castro. Considerado um dos mais influentes pensadores brasileiros do século 20, ele se destacou por seus trabalhos pioneiros sobre a fome.

Rompendo com a visão tradicional da academia, Josué de Castro demonstrou que a fome era um problema social e político, uma criação humana deliberada, derivada da imposição de um modelo econômico concentrador e excludente — e não um fenômeno ingênito e imutável ou uma consequência da escassez de alimentos.

Autor de “Geografia da Fome”, Josué se tornou uma referência internacional para a análise das mazelas do subdesenvolvimento. Ele foi eleito presidente do Conselho Executivo da FAO e impulsionou a criação de programas de proteção social e de combate à fome em todo mundo.

No Brasil, Josué liderou a campanha pela criação do salário-mínimo, abriu redes de restaurantes populares, defendeu a reforma agrária e ajudou a instituir a distribuição de merenda nas escolas. Ele é uma das personalidades brasileiras mais laureadas e recebeu três indicações ao Prêmio Nobel

Juventude e formação

Josué Apolônio de Castro nasceu em Recife, Pernambuco, filho de Josefa Carneiro e Manoel Apolônio de Castro. Seu pai era um retirante paraibano, sobrevivente da Grande Seca de 1877 — a mais devastadora estiagem do Período Imperial, marcada pela morte de 500.000 pessoas. A mãe era filha adotiva de fazendeiros da Zona da Mata pernambucana e trabalhava como professora.

Manoel e Josefa se separaram quando o filho tinha quatro anos de idade. Josué teve uma infância difícil, com sérias privações. Cresceu testemunhando a fome e a miséria nos bairros pobres do Recife e a dura rotina das famílias que apanhavam caranguejos nos manguezais lamacentos do Capibaribe.

Josué aprendeu a ler e a escrever com sua mãe, professora de vários dos meninos pobres da vizinhança. Apesar das dificuldades, a família se esforçou para garantir que o menino tivesse uma educação de qualidade. Aos 8 anos, Josué foi morar com o pai, que o matriculou no curso primário do prestigioso Instituto Carneiro Leão. Depois, cursou o ensino secundário na Ginásio Pernambucano.

Aos 15 anos, Josué foi aprovado no exame admissional da Faculdade de Medicina da Bahia. Cursou os dois primeiros anos em Salvador, mas solicitou transferência posteriormente para a Universidade do Rio de Janeiro. Por influência de Arthur Ramos, seu colega de graduação, Josué pretendia especializar-se em psiquiatria, mas acabou optando por nutrição.

Durante sua formação, Josué se dedicou a ler e pesquisar sobre diversos assuntos, incluindo arte, antropologia e geografia humana. Ele publicou vários artigos em jornais e revistas, abarcando temas que iam da psiquiatria ao cinema, passando pela literatura. Essa curiosidade interdisciplinar seria uma das bases da sua produção intelectual ulterior.

Josué se graduou em 1929. No mesmo ano, fez uma breve viagem ao México e realizou um estágio sobre fisiologia e nutrição nos Estados Unidos. Em 1930, retornou ao Recife, onde abriu seu consultório médico.

A carreira acadêmica e as pesquisas sobre a fome

No início dos anos 30, a clínica de Josué foi contratada para realizar uma análise sobre as causas da baixa produtividade e a alta incidência de trabalhadores doentes em uma fábrica no Recife. Josué logo constatou que a baixa produtividade não tinha relação com “preguiça” ou com o “perfil racial” dos trabalhadores, como acreditavam os patrões. Os operários estavam fracos e subnutridos. O problema era a fome.

O diagnóstico não agradou os proprietários da fábrica e Josué foi demitido. A quantidade de trabalhadores doentes, no entanto, intrigou o médico. Ele resolveu pesquisar mais sobre o assunto.
Após um prolífico intercâmbio cultural com o médico argentino Pedro Escudero, Josué publicou a tese “O problema da alimentação no Brasil” — trabalho com o qual conquistou a cátedra de Fisiologia na Faculdade de Medicina do Recife.

Josué continuou realizando sua pesquisa sobre a fome. Em 1934, o médico iniciou um estudo abrangente, conduzido com a colaboração do Departamento de Saúde Pública de Pernambuco. O objetivo era estudar os hábitos alimentares e as condições de vida da população periférica da capital do estado.

A pesquisa daria origem ao inquérito “As condições de vida das classes operárias do Recife”, publicado em 1935. Tratava-se de uma obra pioneira: além de ser o primeiro levantamento oficial com base empírica sobre as condições socioeconômicas da população, o inquérito também atestava a existência de um vínculo direto entre a fome e a exclusão social.

A pesquisa de Josué contrariava a tendência então predominante nos meios acadêmicos de atribuir a fome a fatores circunstanciais ou naturais — uma “fatalidade” decorrente das secas, das condições naturais e climáticas, das dificuldades logísticas. A fome começava a ser compreendida como um fenômeno político, resultante de um modelo de organização econômica que excluía amplas parcelas da sociedade.

O estudo de Josué também ajudou a combater as concepções racistas e eugênicas do período, demonstrando que a “baixa vitalidade” não era derivada de uma suposta inferioridade racial. Eram as dietas inadequadas e os estômagos vazios que estavam adoecendo os indivíduos e afetando sua capacidade produtiva.

Mudança para o Rio de Janeiro e elaboração de políticas públicas

Em 1935, Josué se mudou para o Rio de Janeiro, então capital federal e epicentro dos grandes debates intelectuais e políticos do país. Por indicação de Roquette-Pinto, ele assumiu o cargo de professor de Antropologia da Universidade do Distrito Federal, sendo posteriormente incorporado ao corpo docente da Universidade do Brasil (atual UFRJ).

No Rio de Janeiro, Josué prosseguiu com as pesquisas sobre as condições de alimentação dos brasileiros. Ele coletou dados de mais de 60.000 moradores da cidade entre 1936 e 1937, organizando o mais completo estudo sobre as condições de vida na capital até então.

Josué também publicou diversos artigos, ensaios e livros sobre as questões alimentares, caracterizados por uma abordagem progressivamente mais crítica e embasada por uma perspectiva sociológica (“Documentário do Nordeste”, “Alimentação e Raça”, “A Alimentação Brasileira à Luz da Geografia Humana”, etc.).

Josué de Castro. Via Brasil de Fato

Josué de Castro
Via Brasil de Fato

O trabalho de Josué foi essencial para difundir o conhecimento sobre o flagelo da fome no Brasil e para pressionar o poder público a assumir a sua responsabilidade na questão. Ele defendia que o combate à fome deveria ser entendido como uma obrigação do Estado — e não mais como um problema do indivíduo.

O médico pernambucano teve papel central na ampliação da rede de proteção social e na formulação das primeiras políticas públicas voltadas a garantir a segurança alimentar.

Foi Josué que liderou a principal campanha em prol da instituição do salário-mínimo, defendido como uma medida de “salvação nacional”. Ele também assumiu o cargo de diretor do Serviço Central de Alimentação (SCA), embrião do Serviço de Alimentação da Previdência Social (SAPS).

Vinculado ao Ministério do Trabalho, o SAPS promovia a instalação de refeitórios nas grandes companhias e a distribuição de refeições nas empresas de pequeno e médio porte, além de manter programas de subsídio de alimentos para famílias em situação de vulnerabilidade.

Josué dirigiu a Comissão Nacional de Alimentação e fundou o Instituto de Tecnologia Alimentar — incorporado à Universidade do Brasil em 1946 com o nome de Instituto de Nutrição. Ele também foi o fundador dos Arquivos Brasileiros de Nutrologia, um periódico de referência nos debates sobre o combate à fome.

O trabalho promovido por Josué de Castro ultrapassou as fronteiras nacionais. Em 1939, ele foi convidado pelo governo italiano para realizar uma série de conferências sobre os problemas alimentares nas nações periféricas. Também foi chamado a colaborar com projetos governamentais da Argentina (1942), dos Estados Unidos (1943), da República Dominicana (1945), do México (1945) e da França (1947).

Geografia da Fome

Em 1946, Josué de Castro publicou “Geografia da Fome”, livro que se consagrou como referência basilar para a compreensão das causas socioeconômicas da fome e das mazelas do subdesenvolvimento. Na obra, o médico argumenta que a fome é fruto direto da ação humana e da escolha deliberada por um modelo econômico excludente e concentrador. Em suas palavras, “a fome é a expressão biológica dos males sociais”.

O livro desmonta a ideia de que a fome seria decorrente da “escassez de alimentos” e refuta as explicações deterministas baseadas em argumentos como clima ou raça. O autor explica detalhadamente como a concentração de terras e recursos, o monocultivo exportador e a exploração colonial transformaram o Brasil em um “país de famélicos”.

O livro também introduz uma perspectiva geográfica para o estudo da fome, identificando suas causas e características em diferentes regiões do país. Essa análise, apresentada sob a forma de um Mapa da Fome do Brasil, foi fundamental para difundir a compreensão sobre as dinâmicas que alimentam as desigualdades regionais.

“Geografia da Fome” teve impacto imediato e foi republicado em dezenas de países. A obra recebeu o Prêmio José Veríssimo da Academia Brasileira de Letras e influenciou a criação e expansão de políticas públicas de combate à fome no Brasil e em outras nações do mundo.

Em 1951, Josué de Castro expandiu sua análise para o escopo global, lançando a obra “Geopolítica da Fome”. O livro relaciona o flagelo das nações periféricas à exploração colonial e às dinâmicas opressivas do capitalismo global, apresentando a fome como uma consequência perversa da divisão internacional do trabalho e como uma arma geopolítica de dominação. O livro foi traduzido para 26 idiomas e recebeu diversos prêmios.

Atuação internacional e carreira parlamentar

Em 1952, já consagrado como um dos maiores especialistas mundiais na temática da alimentação e da fome, Josué de Castro foi eleito como presidente do Conselho Executivo da FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura).

O brasileiro permaneceu à frente do órgão por quatro anos e fez uma gestão voltada aos países periféricos. Ele instituiu programas de combate à fome na África, na Ásia e na América Latina e propôs a criação de um fundo internacional financiado por contribuições dos países ricos. Também defendeu a adoção da reforma agrária e iniciativas de combate à concentração fundiária.

A postura combativa de Josué e seu enfoque no “Terceiro Mundo” incomodou as potências desenvolvidas, que fizeram forte oposição à sua gestão. Em 1957, o pernambucano fundou a Associação Mundial de Luta Contra a Fome (Ascofam) e convidou nomes como René Dumont e Louis-Joseph Lebret para auxiliá-lo a tocar os projetos internacionais.

Em paralelo à atuação na FAO, Josué de Castro também participou das disputas políticas internas. Filiado ao Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), ele foi eleito deputado federal por Pernambuco em 1954 e se reelegeu em 1958, tornando-se o deputado federal mais votado do Nordeste.

Havia motivos de sobra para justificar o apoio popular ao parlamentar. Josué foi o criador da Campanha Nacional de Merenda Escolar (CNME), que estendeu o direito às refeições gratuitas para todos os estudantes de escolas públicas. Ele também propôs a regulamentação da profissão de nutricionista, defendeu as Ligas Camponesas e criou um dos projetos de reforma agrária mais abrangentes da história do Brasil.

Na tribuna da Câmara dos Deputados, Josué defendeu a criação de estoques reguladores de alimentos, apoiou a criação da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) e denunciou o desvio de verbas do Serviço de Alimentação da Previdência Social.

O médico também prosseguiu com sua produção intelectual. Dentre as obras lançadas nos anos 50, destaca-se “O Livro Negro da Fome”, uma denúncia contundente da fome global, enfatizando o papel das potências econômicas na perpetuação da desigualdade.

Os últimos anos

Em 1962, durante o governo de João Goulart, Josué renunciou ao seu mandato parlamentar para exercer o cargo de representante do Brasil junto à ONU. Ele conciliou as funções diplomáticas em Genebra com o trabalho na Campanha Mundial de Luta Contra a Fome, onde atuou ao lado de Binay Ranjan Sen e Hernán Santa Cruz.

A carreira de embaixador de Josué de Castro foi abruptamente encerrada após o golpe militar de 1964. O nome do intelectual pernambucano constava na lista de alvos prioritários da ditadura. Ele foi destituído do cargo e teve seus direitos políticos cassados logo após a promulgação do primeiro Ato Institucional.

Impedido de retornar ao Brasil, Josué partiu para o exílio na França. Ele permaneceu politicamente ativo, denunciando os crimes da ditadura e contribuindo para a causa do combate à desigualdade e à fome.

O brasileiro trabalhou como professor na Universidade Paris 8 e fundou o Centro Internacional para o Desenvolvimento. Também publicou vários artigos e livros, incluindo “Sete Palmos de Terra e um Caixão” (um ensaio sobre conflitos fundiários no Nordeste) e “Homens e Caranguejos” (um romance autobiográfico, retratando a luta pela sobrevivência nos manguezais do Recife).

Josué Apolônio de Castro faleceu em Paris, em 24 de setembro de 1973, vitimado por um infarto. Ele tinha 65 anos. Seu corpo foi repatriado e sepultado no Cemitério de São João Batista, no Rio de Janeiro.

O médico pernambucano é uma das personalidades brasileiras mais premiadas e admiradas internacionalmente. Ele recebeu três indicações ao Prêmio Nobel (o de Medicina em 1954 e o da Paz em 1963 e 1970) e foi laureado com o Prêmio Internacional da Paz (1954) e com a Legião de Honra da França (1955).