11 de Setembro: o legado interrompido de Salvador Allende
Presidente chileno tirou sua própria vida durante invasão de militares no Palácio de La Moneda, no contexto do golpe liderado por Augusto Pinochet com apoio norte-americano
Há 52 anos, em 11 de setembro de 1973, falecia o presidente chileno Salvador Allende. Ele se suicidou durante a invasão ao Palácio de La Moneda, em meio ao golpe militar liderado pelo general Augusto Pinochet, com apoio do governo dos Estados Unidos.
Médico de formação, Allende foi um dos pioneiros da promoção da saúde como direito social. Ele ocupou o cargo de Ministro da Saúde do Chile durante o governo de Pedro Aguirre Cerda e teve papel fundamental na ampliação da rede assistencial.
Allende foi o criador do Serviço Nacional de Saúde, o primeiro sistema de saúde universal a ser fundado no continente americano. Senador por 25 anos, ele também criou o Serviço de Seguridade Social e expandiu os direitos sindicais e os programas de auxílio à classe trabalhadora.
Fundador do Partido Socialista, Salvador Allende foi o primeiro marxista a ser eleito para a presidência de uma democracia liberal. Ele instituiu uma série de reformas avançadas, incluindo a nacionalização do cobre e dos setores estratégicos da economia, e promoveu uma abrangente reforma agrária.
Juventude e formação
Salvador Guillermo Allende Gossens nasceu em Valparaíso, em 26 de junho de 1908. Era o quinto filho da dona de casa Laura Gossens Uribe e do advogado Salvador Allende Castro. A família Allende tinha uma longa tradição de engajamento político. O avô de Salvador, Ramón Allende Padín, era um proeminente maçom e dirigente do Partido Radical. Já o pai lutou ao lado dos congressistas na Revolução de 1891 e ocupou diversos postos no serviço público.
Devido aos compromissos profissionais do pai, Salvador Allende teve uma infância itinerante. Em 1909, a família se mudou para Tacna, uma cidade peruana que estava sob administração do Chile desde a Guerra do Pacífico. Em seguida, se fixaram em Iquique e depois em Santiago, onde Allende frequentou brevemente o Instituto Nacional José Miguel Carrera. Morou ainda em Valdivia e em 1921 retornou a Valparaíso, dando continuidade aos estudos no Liceu Eduardo de la Barra.
No retorno à sua cidade natal, Allende conheceu Juan De Marchi, um anarquista italiano que teve forte influência sobre sua visão de mundo, inspirando-o a se interessar pelo debate político e pela luta operária. Em 1924, após concluir o ensino secundário, Allende se alistou no exército, servindo por um ano no Regimento de Lanceiros de Tacna. Dedicou-se também ao esporte, frequentando o Clube Everton, em Viña del Mar, onde praticou atletismo.
Em 1926, Salvador Allende ingressou na Faculdade de Medicina da Universidade do Chile (UCh), em Santiago. Começou sua atuação no movimento estudantil nesse mesmo período, obtendo uma rápida ascensão. Foi eleito presidente do Centro de Estudantes em 1927 e vice-presidente da Federação de Estudantes da UCh em 1930. Em 1929, filiou-se ao Grupo Avance, uma organização marxista.
Allende ajudou a organizar vários protestos, atos e ocupações contra a ditadura do coronel Carlos Ibáñez del Campo, deposto em 1931. No ano seguinte, em junho de 1932, ele apoiou a criação da República Socialista do Chile — um efêmero governo revolucionário proclamado por Marmaduke Grove. A participação nos protestos custaria a Allende duas prisões e um julgamento na corte marcial.
Carreira política
Formado em 1932, Allende enfrentou muitas dificuldades para encontrar emprego devido ao seu histórico de militância. Trabalhou como assistente de patologia em Valparaíso, realizando autópsia em indigentes — uma experiência que reforçou sua indignação com a injustiça social. Posteriormente, ele abriu uma clínica voltada ao atendimento de pessoas de baixa renda.
Allende foi um dos fundadores do Partido Socialista do Chile (PS), ao lado de Marmaduke Grove, Eugenio Matte e outros líderes políticos. Criada em abril de 1933, a agremiação defendia a adaptação das ideias marxistas à realidade chilena e uma atuação conformada pela institucionalidade democrática. O médico assumiu o posto de secretário do partido em Valparaíso e logo se tornou um dos seus principais dirigentes.
Em 1936, Allende ajudou a articular a Frente Popular, uma coalização de forças de esquerda que incluía, além do PS, os partidos Comunista, Radical, Democrático e Radical Socialista, bem como a Confederação dos Trabalhadores do Chile, a Frente Única Araucana e o Movimento Pró-Emancipação das Mulheres.
Allende candidatou-se a deputado nas eleições parlamentares de 1937, sendo eleito como representante do 6º agrupamento departamental de Quillota e Valparaíso. Em seu mandato, defendeu a ampliação das leis trabalhistas, propôs a criação programas sociais e exerceu o cargo de suplente na Comissão Permanente de Relações Exteriores.
Em 1940, Allende se casou com a bibliotecária Hortensia Bussi, sua companheira até o fim da vida. O casal teve três filhas: Beatriz (médica e partícipe da resistência chilena), María Isabel (militante do Partido Socialista e primeira mulher a ocupar a presidência do Senado do Chile) e Carmen Paz (educadora).

Salvador Allende. Biblioteca do Congresso do Chile
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Ministério da Saúde e Senado
Candidato do Partido Radical, Pedro Aguirre Cerda foi eleito Presidente do Chile na eleição de 1938, com apoio da Frente Popular. Em 1939, Allende aceitou o convite de Cerda para assumir o cargo de ministro da Saúde.
Nesse mesmo ano, Allende publicou “A Realidade Médico-Social Chilena”, uma obra de referência da medicina social. No livro, o autor examina as condições de saúde no país, atribuindo problemas como a tuberculose e as altas taxas de mortalidade materna e infantil às desigualdades sociais, propondo soluções como programas de redistribuição de renda e investimentos em habitação e saneamento.
À frente do Ministério da Saúde, Allende foi pioneiro na promoção da assistência médica como direito social. Ele investiu na produção e distribuição de medicamentos, conduziu campanhas de prevenção e criou as frentes de combate às epidemias. Também expandiu os centros médicos e serviços odontológicos e instituiu um programa de combate à desnutrição, que fornecia alimentos para estudantes de escolas públicas.
Em 1942, após deixar o cargo de ministro, Allende assumiu a Secretaria-Geral do PS. Ele criticou o apoio da agremiação ao governo de Juan Antonio Ríos e buscou formar uma aliança com o Partido Comunista. Três anos depois, nas eleições parlamentares de 1945, Allende foi eleito senador, representando o 9º agrupamento provincial.
O líder socialista exerceria quatro mandatos no Senado, sendo sucessivamente reeleito em 1953, 1961 e 1969. Nos 25 anos em que atuou como senador, Allende se consagrou como uma das maiores lideranças da esquerda chilena e teve papel fundamental na criação das reformas sociais e das medidas de apoio à classe trabalhadora, sobretudo na área da saúde.
Allende foi responsável pela legislação que criou o Serviço Nacional de Saúde (SNS), o primeiro programa de assistência médica universal das Américas. O serviço garantiu o acesso gratuito da população a cuidados médicos, tendo um impacto extremamente positivo nos indicadores da saúde pública. O projeto foi fortemente combatido por associações de classe, que temiam que o SNS prejudicasse os lucros da rede privada.
O senador também criou o Serviço de Seguridade Social (SSS), que garantia o pagamento de aposentadorias, pensões e auxílios para trabalhadores aposentados, doentes ou acidentados. Apresentou projetos voltados à melhoria das condições de vida e à ampliação dos direitos sindicais e criou benefícios e programas sociais para trabalhadores do campo e da cidade.
Exercendo o cargo de presidente do Senado entre 1966 e 1969, Allende promoveu debates sobre reformas econômicas e sociais e defendeu a nacionalização de setores estratégicas da economia e a regulamentação das grandes empresas estrangeiras. Ele também buscou ampliar os laços diplomáticos entre o Chile e as nações socialistas, realizando visitas à União Soviética, Cuba, Vietnã e Coreia do Norte e participando da fundação da Organização Latino-Americana de Solidariedade (OLAS).
A presidência
Allende concorreu à Presidência do Chile três vezes antes de sua vitória. Em 1952, com sua candidatura prejudicada por divisões internas no campo progressista, ele obteve apenas 5,4% dos votos. No pleito de 1958, ele voltou a dividir os votos do campo popular com a candidatura de Antonio Zamorano, conquistando 28,8% da preferência do eleitorado.
Na eleição de 1964, Allende alcançou 38,9% dos votos, sendo derrotado por Eduardo Frei Montalva — o candidato do Partido Democrata Cristão, que recebeu apoio decisivo do governo dos Estados Unidos. Temendo a eleição de um líder socialista, a Casa Branca repassou US$ 2,6 milhões para a campanha de Montalva e gastou US$ 3 milhões em propaganda anti-Allende.
Apesar das derrotas, as campanhas de Allende ajudaram a solidificar sua base entre os trabalhadores, estudantes e intelectuais. No pleito de 1970, ele conseguiu unificar a esquerda chilena em torno da Unidade Popular, uma coalizão de seis legendas. A estratégia deu certo e, em 4 de setembro, Allende terminou a disputa em primeiro lugar, obtendo 36,6% dos votos, contra 34,9% de Jorge Alessandri.
Como nenhum candidato alcançou maioria absoluta no voto popular, a eleição avançou para o segundo turno, realizado através de uma votação indireta do Congresso. Em 24 de outubro de 1970, a eleição de Allende foi confirmada pelos parlamentares.
Tratava-se de uma vitória histórica. Pela primeira vez, um candidato marxista chegava à presidência de uma democracia liberal. Allende assumiu o governo em 3 de novembro de 1970, se comprometendo com a “via chilena para o socialismo”, uma transição pacífica e democrática, sem rupturas ou imposições autoritárias.
O governo de Allende iniciou uma série de reformas abrangentes. Em 1971, o Chile decretou a nacionalização de suas reservas de cobre, que estavam quase todas sob controle de empresas estrangeiras. Setores estratégicos como o metalúrgico, o siderúrgico e a produção de energia também foram nacionalizados. O sistema bancário passou progressivamente ao controle do Estado através da compra sistemática de ações.
A reforma agrária foi uma das prioridades de Allende. O presidente determinou a expropriação de latifúndios em larga escala, destinando cerca de 59% das terras agricultáveis do Chile para a redistribuição entre camponeses e pequenos agricultores. Mais de 100.000 trabalhadores rurais foram organizados em cooperativas e auxiliados por programas de apoio à agricultura familiar.
O governo de Allende também reajustou os salários, congelou os preços, expandiu as redes de ensino e criou programas de distribuição leite e alimentos para famílias carentes. Na área da saúde, a cobertura do SNS foi ampliada, elevando em 37% a quantidade de consultas ambulatoriais anuais. O governo inaugurou clínicas especializadas e instituiu campanhas de vacinação em massa.
O golpe
As reformas promovidas por Allende provocaram forte incômodo junto aos setores conservadores do Chile, que sentiam que seus privilégios políticos, sociais e econômicos estavam ameaçados. As medidas também geraram o descontentamento dos Estados Unidos, que enxergavam a experiência socialista chilena com uma ameaça à sua esfera de influência na América Latina.
Antes mesmo da eleição de Allende, o governo norte-americano já havia posto em prática o Projeto FUBELT, promovendo assassinatos e atentados para impedir a posse do líder socialista. O projeto falhou, mas a Casa Branca intensificou as ações de desestabilização e iniciou a articulação de uma grande ofensiva golpista.
Em um despacho enviado ao Departamento de Defesa em 1970, Richard Nixon instruiu seus estrategistas a “fazerem a economia chilena gritar”. A nação sul-americana foi submetida a um bloqueio econômico informal, com terríveis efeitos sobre o setor produtivo. Cooptados pelo esforço golpista, empresários e caminhoneiros organizaram greves, lockouts e sabotagens, enquanto a imprensa atacava furiosamente o presidente, responsabilizando-o pelo “caos político”.
Em paralelo à campanha de desestabilização, o governo norte-americano oferecia apoio e financiamento aos setores oposicionistas e às organizações de extrema-direita. Muitos parlamentares foram cooptados e subornados, prejudicando a base de sustentação de Allende no Congresso. Protestos de opositores foram insuflados e grupos terroristas como o “Patria y Libertad” receberam a orientação de realizar atentados, visando justificar uma intervenção militar.
Em junho de 1973, militares e milicianos lançaram uma primeira tentativa de golpe. A ação falhou, mas aumentou a tensão e a pressão sobre o governo. O Congresso chileno, já dominado pela oposição, aprovou resoluções condenando o presidente e recomendando sua renúncia. Oficiais legalistas como o general Carlos Prats foram forçados a deixar seus postos.
O golpe foi concretizado na manhã de 11 de setembro de 1973, quando os militares chilenos, liderados pelo general Augusto Pinochet, tomaram os prédios públicos em Santiago e iniciaram o bombardeio contra o Palácio de La Moneda, a sede da presidência. A operação contou com apoio das Forças Armadas dos Estados Unidos, que despacharam uma esquadra de caças e aviões de observação para auxiliar os golpistas.
Isolado no Palácio de La Moneda, Salvador Allende fez seu último discurso pelo rádio, reafirmando sua lealdade ao povo e recusando-se a renunciar: “Não renunciarei. Colocado em uma encruzilhada histórica, pagarei com minha vida a lealdade do povo. E digo-lhes que tenho a certeza de que a semente que entregamos à consciência digna de milhares e milhares de chilenos, não poderá ser ceifada definitivamente. Eles têm a força, poderão subjugar-nos, mas não se pode deter os processos sociais nem com o crime nem com a força. A história é nossa e fazem-na os povos. (…) Viva o Chile! Viva o povo! Viva os trabalhadores”.
O presidente ordenou que todos os funcionários do governo evacuassem o prédio, mas permaneceu em seu gabinete. Quando os golpistas invadiram o palácio em chamas, Salvador Allende se suicidou, usando um fuzil AK-47 que lhe fora presenteado por Fidel Castro. Ele tinha 65 anos.
O corpo de Allende foi originalmente enterrado em uma cova comum, sem identificação. Após o término da ditadura de Pinochet, ele foi sepultado com honras militares, no Cemitério Geral de Santiago. As análises forenses realizadas após a exumação confirmaram a causa da morte, que por muito tempo foi objeto de debate.























