100 anos de Globo: um império midiático a serviço da burguesia
Com apoio impulsionado pela ditadura militar e ao golpe que depôs Rousseff, a emissora teve papel fundamental na ascensão do bolsonarismo
Em julho de 2025, o Grupo Globo completa 100 anos. A efeméride está sendo efusivamente celebrada pela empresa. Programas especiais, campanhas publicitárias, ações culturais e até missas estão sendo organizadas para exaltar o centenário do maior conglomerado de mídia e comunicação da América Latina.
Entre os destaques da comemoração está a série documental “O Século do Globo”, dirigida por Pedro Bial, contando a história do diário matutino que deu origem ao grupo. O segundo capítulo da série, dedicado à ditadura militar, é particularmente interessante — uma aula de contorcionismo argumentativo que sintetiza o espírito do jornalismo da Globo: a determinação de torcer cinicamente os fatos até que eles caibam em uma narrativa pré-concebida.
É necessário reconhecer que a tarefa de Bial nesse episódio não era nada fácil. O jornalista precisava encontrar virtudes corporativas e elementos positivos para justificar um panegírico em meio à maior mancha no centenário da empresa — o apoio firme e entusiasmado que o Grupo Globo deu à ditadura militar brasileira.
O império dos Marinho
A colaboração irrestrita de Roberto Marinho com a ditadura rendeu muitos frutos ao magnata, recompensado com apadrinhamento e múltiplas concessões. Foi o apoio do regime militar que impulsionou a transformação do Grupo Globo em um dos maiores impérios midiáticos do mundo — e que permitiu que os Marinho arrecadassem uma gigantesca fortuna.
Os Marinho são uma das famílias mais ricas do Brasil, com um patrimônio calculado em mais de 50 bilhões de reais. Esse montante é ampliado de forma contínua graças ao lucro anual gerado pelo conglomerado da família, hoje pertencente a João Roberto, José Roberto e Roberto Irineu, os herdeiros de Roberto Marinho. Em 2024, o lucro da empresa foi de aproximadamente dois bilhões de reais.
O conglomerado compreende a Rede Globo, segunda maior rede de televisão comercial do mundo, e um vasto conjunto de empresas de mídia que inclui editoras, jornais, rádios, serviço de streaming, canais de TV por assinatura, gravadoras, companhias cinematográficas, portais de internet, etc.
Mais do que fortuna, esse poderoso conglomerado garante à família Marinho a primazia do controle sobre os produtos culturais e sobre as informações fornecidas ao público, granjeando-lhe enorme influência sobre o imaginário, o pensamento e a percepção da realidade do povo brasileiro.
Como é tradição entre os bilionários que recorrem à mitologia meritocrática para justificar fortunas questionáveis, a biografia de Roberto Marinho também foi adaptada para o roteiro do “self-made man” — o empreendedor genial e esforçado que construiu sua fortuna a partir Da sua genialidade e esforço.
Em uma famosa carta endereçada ao presidente Lula, Roberto Marinho se gabou da “origem modesta” de sua família, falou sobre sua “formação atribulada” na adolescência e assegurou que poderia ter sido um operário comum.
É, mais uma vez, uma versão floreada da realidade. A família Marinho sempre foi abastada — e repleta de ancestrais poderosos. O tetravô de Roberto Marinho era Antonio Bueno Freire, um fidalgo da coroa portuguesa, responsável pela fiscalização dos tributos de ouro em Minas Gerais. Originária da nobreza sevilhana, a família Bueno integrava a elite já nos primórdios da era colonial.
O Globo e a UDN contra Vargas
Seguindo outra tradição comum aos bilionários, Roberto Marinho é um herdeiro. Seu pai, Irineu Marinho, fundador do famoso vespertino “A Noite”, legou ao filho a propriedade do jornal “O Globo”, lançado em 1925.
Assumindo a a direção do periódico após a morte do pai, Roberto adotou uma política editorial favorável às demandas pela modernização do sistema político do país, ecoando parte das reivindicações da oposição dos anos 20. Ele apoiou a Revolução de 1930, mas não abandonou a defesa dos interesses das oligarquias agrárias do Sudeste — chegando a advogar em prol da legitimidade do movimento constitucionalista de 1932.
Com a vitória das forças legalistas, Marinho seguiu apoiando timidamente o governo de Getúlio Vargas. Ao longo dos anos 30, o jornal consolidaria uma linha editorial claramente conservadora, intensificando o combate às bandeiras da esquerda. Após o fracassado levante da Aliança Nacional Libertadora em 1935, o jornal adotou um discurso veementemente anticomunista. Os regimes fascistas que estavam em ascensão no mesmo período, por outro lado, foram tratados de forma bem mais condescendente.
O Estado Novo mostrou-se um período frutífero para os negócios de Roberto Marinho, que iniciou a construção de seu conglomerado inaugurando a Rádio Globo. Apesar disso, na eleição presidencial de 1945, vencida por Eurico Gaspar Dutra, Marinho deu apoio ao brigadeiro Eduardo Gomes, candidato da União Democrática Nacional (UDN), agremiação conservadora que se opunha enfaticamente ao que chamava de “populismo getulista”.
Na eleição de 1950, Marinho voltou a apoiar Eduardo Gomes, dessa vez derrotado por Getúlio Vargas. As Organizações Globo iniciaram então uma oposição encarniçada não apenas contra o governo eleito, mas contra todo o projeto nacional desenvolvimentista.
“O Globo” atacou todas as iniciativas modernizantes propostas por Vargas, ao mesmo tempo em que favorecia a defesa de um programa econômico liberal, baseado no modelo agroexportador e na submissão ao capital estrangeiro.
O jornal coordenou a campanha contra a criação da Petrobrás, ao passo que a Rádio Globo se tornou porta-voz dos principais opositores do governo — em especial o estridente Carlos Lacerda, que fez reiterado uso de retórica abertamente golpista.
A pressão midiática contribuiria para gerar uma grave crise política, que culminaria no suicídio de Getúlio Vargas. Indignada, a população saiu às ruas atacando e incendiando os veículos do “Globo”. Populares também tentaram invadir a redação do jornal.
O apoio à ditadura
Marinho seguiu fazendo oposição firme ao governo de Juscelino Kubitschek, visto como herdeiro da tradição desenvolvimentista. Nos embates entre JK e o Fundo Monetário Internacional, “O Globo” assumiu prontamente a defesa do FMI, respaldando a cobrança pela política de austeridade e pela restrição de crédito e responsabilizando o presidente pela crise inflacionária.
A renúncia do conservador Jânio Quadros, a quem “O Globo” havia apoiado no pleito de 1960, conduziu novamente o jornal à sanha golpista. A presidência estava agora nas mãos de João Goulart, defensor do desenvolvimentismo, apoiado pela esquerda nacionalista e por lideranças sindicais.
Roberto Marinho passou a conspirar abertamente pela derrubada de Goulart, oferecendo seus veículos para a campanha de desestabilização promovida pela oposição. Também participou da articulação do movimento antidemocrático que resultou no golpe de 1964, em conluio com parlamentares opositores, militares, empresários e representantes do governo norte-americano.
Após anos conduzindo severos ataques a Goulart, os jornais das Organizações Globo retrataram a quartelada de 1964 como uma “restauração da ordem democrática”. Marinho passou em seguida à colaboração servil com a ditadura militar, que perduraria por mais de duas décadas.
A subserviência aos golpistas foi generosamente gratificada. Em 1965, apenas um ano após o golpe, Roberto Marinho começava a operar a TV Globo, criada a partir da concessão do canal 4 do Rio de Janeiro.
No ano seguinte, o empresário obteve a concessão do canal 5 de São Paulo. Em 1968, ganhou a concessão do canal 12 de Belo Horizonte. Novas concessões seriam ofertadas para operar canais em Brasília e Recife. Surgia assim, embalada nos braços da ditadura, a Rede Globo de Televisão.
Time-Life e um incêndio providencial
Como não possuía capital para financiar a compra de equipamentos e investir na operação simultânea de tantos canais de televisão, Marinho firmou um acordo de joint venture com o grupo norte-americano Time-Life.
O acordo previa que a Time Life financiaria os investimentos em troca de uma participação de 49% nos negócios da Globo. A legislação brasileira, entretanto, proibia expressamente a participação estrangeira em veículos da mídia nacional.
Uma Comissão Parlamentar de Inquérito chegou a ser instalada para analisar a constitucionalidade do acordo entre a Globo e a Time-Life e deu parecer desfavorável à joint venture. O governo militar, entretanto, interveio para proteger o empreendimento de Roberto Marinho. A legislação seria alterada em 1967 para se adequar ao modelo de negócios da Globo.

Manifestação contra o impeachment de Dilma Rousseff na Avenida Paulista, em 2016.
Rovena Rosa / Agência Brasil, Via Wikimedia Commons
Um outro episódio serviria para que a Rede Globo ganhasse projeção nacional a partir de julho de 1969. Em um intervalo de apenas três dias, as instalações das redes de televisão Globo, Record e Bandeirantes em São Paulo foram destruídas por incêndios criminosos.
A ditadura militar e a Globo imediatamente culparam os movimentos de esquerda pelos incêndios, mas tal acusação jamais foi comprovada. Os incêndios enfraqueceram as principais concorrentes da Globo — sobretudo a Record, com quem a emissora disputava a liderança da audiência.
A Globo, por outro lado, acabou se beneficiando, uma vez que o incêndio destruiu apenas equipamentos antigos que já estavam assegurados. As indenizações permitiram que a empresa fizesse fartos investimentos na modernização de suas operações. Não por acaso, diretores da empresa como Boni e Walter Clark definiram o incêndio como “a melhor coisa que poderia acontecer”.
Resistência à redemocratização
Com o declínio das concorrentes e a falência das TVs Tupi e Excelsior, a Globo se firmaria com maior emissora do país. As verbas publicitárias e o apoio institucional da ditadura militar ajudariam a empresa a ganhar projeção nacional e a dominar o mercado publicitário, ao mesmo tempo em que Marinho diversificava suas atividades, adquirindo vastas fazendas e iniciando a criação de gado.
O apoio incondicional à ditadura militar prosseguiria ao longo da década de 1970, com a emissora encobrindo a perseguição política, as torturas, os desaparecimentos e os assassinatos nos porões do regime. O general Médici chegou a afirmar que se sentia feliz todas as noites “porque, no noticiário da TV Globo, o mundo está um caos, mas o Brasil está em paz”. Mesmo após o fim da censura prévia em 1976, a Globo optou por manter sua linha editorial totalmente alinhada ao discurso institucional dos militares.
Por determinação de Roberto Marinho, as Organizações Globo foram o conglomerado de mídia que mais resistiu às pressões pela redemocratização. Nas eleições para o governo fluminense de 1982, a Rede Globo ajudou a validar uma tentativa de fraude eleitoral que visava impedir a vitória de Leonel Brizola, candidato do Partido Democrático Trabalhista (PDT), em favor do candidato do regime, Moreira Franco.
A fraude consistia na manipulação contábil dos votos pela Proconsult, empresa mantida por ex-colaboradores do regime militar, contratada para organizar o pleito, cujos resultados foram anunciados como legítimos pelo noticiário da Globo. O PDT descobriu a fraude ao realizar uma apuração paralela e denunciou o caso à imprensa doméstica e internacional, conseguindo garantir a posse de Brizola como governador do Rio de Janeiro.
Outra manipulação exemplar da contrariedade da emissora em relação à abertura política ocorreu em janeiro de 1984, durante o comício das Diretas Já que reuniu quase meio milhão de pessoas na Praça da Sé, em São Paulo, protestando contra o regime.
Até então, a Globo tinha ignorado todos os comícios em prol da redemocratização, mas não poderia deixar de registrar uma aglomeração tão grande na maior cidade do país. Ao cobrir o evento ao vivo, informou aos seus telespectadores que a multidão estaria reunida nas ruas para celebrar o aniversário de 430 anos de São Paulo.
“Muito Além do Cidadão Kane”
Em 1989, durante a primeira eleição direta para a Presidência da República desde o fim do regime militar, a Rede Globo manipulou os trechos do último debate presidencial, visando favorecer o candidato conservador Fernando Collor de Mello (dono de uma afiliada da Rede Globo em Alagoas) e prejudicar Luiz Inácio Lula da Silva, candidato do Partido dos Trabalhadores.
A manipulação do debate foi admitida pelo próprio diretor da Globo, Boni, e reconhecida por Fernando Collor em 2009. O episódio seria um dos marcos da virulenta cobertura antipetista da emissora, que se intensificaria enormemente nas três décadas seguintes, à medida em que o PT logrou angariar crescente apoio popular e obteve sucessivas vitórias eleitorais.
Em 1993, a rede de televisão britânica Channel Four lançou o documentário “Muito Além do Cidadão Kane”. Dirigido por Simon Hartog, o documentário se dedica a analisar polêmicas e controvérsias envolvendo Roberto Marinho e a Rede Globo, enfocando nas ilegalidades, crimes e manipulação do noticiário conduzidos pela emissora.
O documentário traça um paralelo entre as ações da Globo e as do personagem Charles Foster Kane, criado por Orson Welles em 1941 para o filme “Cidadão Kane” — por sua vez uma crítica ao magnata norte-americano William Randolph Hearst, um entusiasmado apoiador do regime nazista, considerado o pai da “imprensa marrom”.
Roberto Marinho pressionou a justiça e conseguiu proibir a exibição do documentário no Brasil. A Rede Globo também tentou comprar os direitos de exibição do documentário, visando impedir legalmente sua exibição, mas Hartog se negou a vender.
Outros escândalos
Além das controvérsias políticas, o Grupo Globo também se envolveu em diversos escândalos comerciais e tributários. Ainda nos anos 80, a emissora foi acusada de se aliar ao então ministro das comunicações, Antônio Carlos Magalhães (ACM), para manipular os preços das ações da subsidiária brasileira da empresa japonesa NEC, então a principal fornecedora de equipamentos de telecomunicações para o governo federal.
ACM interrompeu os contratos do governo com a empresa, derrubando as ações da multinacional japonesa, que foram adquiridas pela Globo. Assim que a Globo obteve o controle acionário da subsidiária brasileira da NEC, o ministro restabeleceu os contratos, multiplicando o preço das ações, que saltaram de um milhão para 350 milhões. ACM teria sido recompensado ganhando o direito de afiliar sua emissora de televisão na Bahia à Rede Globo.
No início dos anos 90, a Globo estabeleceu uma parceria de marketing com o banqueiro Artur Falk para promover um título de capitalização chamado “Papa-Tudo”, que prometia a possibilidade de resgatar metade dos valores pagos após um ano. O título de capitalização deu um calote de 218 milhões de reais nos consumidores, nunca indenizados. Artur Falk foi preso por estelionato, mas a Globo não foi punida.
Entre os anos de 2010 e 2012, o Grupo Globo foi notificado 776 vezes por sonegação fiscal. A emissora foi acusada de enviar 1,6 bilhão de reais ao exterior por meio de contas CC5 do Banestado e condenada a pagar multa de 730 milhões de reais, em função de uma alegada fraude contábil de 158 milhões de reais em dívidas com o banco JP Morgan.
O conglomerado também foi acusado de sonegar impostos, utilizando-se de um paraíso fiscal para comprar os direitos de transmissão da Copa do Mundo de 2002. A Receita Federal chegou a preparar uma ação para cobrar multa de 615 milhões de reais da emissora, mas o processo desapareceu de sua sede no Rio de Janeiro.
Por fim, em 2016, a Globo foi implicada no escândalo “Panama Papers”. A imprensa holandesa acusou a emissora de “prática reiterada de lavagem de dinheiro” por intermédio do banco Nederlandsche e de se utilizar de paraísos fiscais para ocultar a origem ilícita de recursos utilizados na compra dos direitos de transmissão da Copa Libertadores.
A guerra contra a esquerda
Roberto Marinho morreu em 2003, alguns meses depois de Lula assumir a presidência do Brasil. O noticiário enviesado e as tentativas de manipulação política, entretanto, se mantiveram como tradições de seu conglomerado.
Em 2006, a emissora foi acusada de cooptar um delegado da Polícia Federal para produzir imagens de dinheiro apreendido no âmbito do “escândalo do dossiê” — uma suposta fraude que teria sido arquitetada por petistas para conspurcar a reputação de José Serra.
A exibição do dinheiro às vésperas do pleito de 2006 visava impedir a reeleição de Lula. Nesse mesmo ano, dois jornalistas da Globo, Rodrigo Vianna e Franklin Martins, foram afastados da emissora, após denunciarem a existência de ordens para barrar matérias negativas sobre o PSDB.
Em 2013, após a eclosão das Jornadas de Junho, a emissora foi alvo de gritos de protesto relembrando seu apoio à ditadura militar. Em resposta, publicou um editorial em que afirmava reconhecer como um erro o apoio editorial ao golpe de 1964.
Demonstrando que a postura era meramente protocolar, a Globo deu apoio irrestrito ao golpe parlamentar que depôs Dilma Rousseff em 2016, utilizando-se de seus veículos para defender a suposta legalidade do processo de impeachment e incitando a população a comparecer às manifestações antigovernamentais.
A parcialidade na cobertura dos escândalos envolvendo o ex-presidente Lula, o apoio incondicional e acrítico dado à Lava Jato e a heroicização do juiz Sérgio Moro também ajudaram a erodir as garantias legais constitucionais, fomentando a guerra jurídica, a politização do judiciário e, sobretudo, a radicalização da direita.
A Globo teve papel fundamental na ascensão do bolsonarismo. O forte sentimento antipetista incentivado pela emissora em seus noticiários, a demonização constante da esquerda e dos movimentos sociais, alimentou a insatisfação popular, referendou os argumentos dos ideólogos de extrema-direita e criou terreno fértil para a emergência de uma figura que capitalizasse o discurso antissistema.
Já sob Bolsonaro, a Globo deu apoio tácito à agenda ultraliberal tocada por Paulo Guedes, usando uma estratégia discursiva de dividir o governo em “alas técnicas” (apoiadas por sua agenda econômica e pelo discurso “anticorrupção) e “alas ideológicas” (criticadas por suas posturas obscurantistas).
Essa abordagem permitiu à Globo manter uma fachada de imparcialidade, criticando os excessos do bolsonarismo na superfície, ao mesmo tempo em que blindava o governo no que ele possuía de mais nefasto — a agenda econômica neoliberal, os ataques contra a classe trabalhadora e o desmonte do Estado e das políticas públicas.























