“Yõg Ãtak: Meu Pai, Kaiowá”: o reencontro filmado de uma família indígena separada pela ditadura
Filme vencedor do Festival do Brasília evidencia reflexos duradouros da ditadura na vida dos povos indígenas
Chegou aos cinemas nesta quinta-feira (10/07) o filme Yõg Ãtak: Meu Pai, Kaiowá, que acompanha o reencontro da diretora Sueli Maxakali com seu pai, separados por quatro décadas em decorrência da ditadura civil-militar. Além de Sueli, o filme é dirigido por seu marido Isael Maxakali, Roberto Romero e Luisa Lanna – quarteto que recebeu o prêmio de Melhor Direção no Festival de Brasília no final de 2024.
Através de relatos orais de anciãos Maxakali e Kaiowá, o filme recupera a história de Luíz Kaiowá, que aos dez anos de idade deixou o território de seu povo em Mato Grosso do Sul, ao lado de seu irmão. Depois de passarem por diversos estados, foram levados à força por agentes da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) para trabalhar no território Maxakali, em Minas Gerais. Passados mais de quinze anos, foi reconduzido ao Mato Grosso, deixando duas filhas pequenas, Maiza e Sueli Maxakali, com quem nunca mais teve contato.

Sueli Maxakali apresenta sua família para seu pai Luíz Kaiowá em um retrato filmado.
(Foto: Divulgação/Embaúba Filmes)
Com ajuda de suas primas Kaiowá e uma pesquisadora, Tatiane Klein, Sueli consegue localizar seu pai e decide fazer um filme do reencontro. Em entrevista ao Feito por Elas, a diretora conta que foi graças ao dinheiro do edital financiador do filme, BH nas Telas, que foi possível juntar recursos para a empreitada de percorrer 1.800 km para rever Luíz e conhecer o restante da família. Deste modo, a possibilidade do reencontro é a motivação para a realização da obra e o fio condutor da narrativa, ao mesmo tempo em que o filme é o motor que viabiliza o reencontro.
Inicialmente, contudo, Luíz se nega a ser filmado e diz que no dia da chegada das filhas não estará na aldeia. Tratando sobre o assunto, um jovem Kaiowá comenta que o tempo para os indígenas é outro, “com uma hora não se conversa”; é preciso muito mais para que seja criada confiança e haja a abertura. Nesse sentido, a aproximação da filha mesmo antes da viagem e o estabelecimento dos vínculos de afeto foi fundamental para que mais tarde Luíz topasse não somente aparecer para as câmeras, mas também dar uma entrevista, que, aliás, é o momento de auge do filme.
Ele narra como sofria ao ver os intensos maus tratos dos militares contra os Tikmũ’ũn (Maxakali), fala sobre a instalação de uma prisão na aldeia, sobre a vinda forçada de povos de diversas etnias para trabalhar no território e relembra e reencena a gestualidade dos militares, evidenciando os traumas e as violências inscritas no seu corpo e na sua memória. Ao final do encontro, já com a câmera desligada, o microfone registra a última fala de Luíz com a filha: “Tupã me dividiu em dois”, conclusão do relato de uma vida cindida e marcada pelas cicatrizes deixadas pela ditadura que perduram ainda hoje.
Trata-se do segundo filme do casal sobre o tema. Em GRIN – Guarda Rural Indígena (2016), de Roney Freitas e Isael Maxakali, com participação de Sueli Maxakali, são entrevistados os sobreviventes do cruel experimento promovido por Manoel dos Santos Pinheiro, conhecido como Capitão Pinheiro, sobrinho do governador de Minas à época, Israel Pinheiro. A Guarda Rural Indígena (GRIN) foi um batalhão militar com mais de 80 homens de diversas etnias formado em 1969 e treinado pela Polícia Militar de Minas Gerais para reprimir outros indígenas. Era uma forma de poder e controle que não estava prevista na auto organização das aldeias, mas passou a ser imposta pelos militares. Segundo a Comissão Nacional da Verdade, foram implantados também outros mecanismos de controle, com a internação compulsória de indígenas em Minas Gerais em um presídio chamado de “Reformatório Krenak” e na Fazenda Guarani, que funcionaram como campos de concentração e tortura para o extermínio dos povos indígenas.

Cartaz de “Yõg Ãtak: Meu Pai, Kaiowá”.
(Foto: Divulgação)
Em 2012, foi encontrada uma gravação da formatura de um dos batalhões indígenas em 1970, em Belo Horizonte. Trata-se do único registro público de tortura que se tem notícia no Brasil, com imagens de indígenas fardados levando outro indígena preso ao pau-de-arara à luz do dia, em um espaço aberto, na frente da população. “Coisas da ditadura militar”, afirma Rodrigo Piquet, Chefe do Núcleo de Biblioteca e Arquivo do Museu do Índio/FUNAI, se referindo a esta cena do pau-de-arara na abertura do curta-metragem Arara: um filme sobre um filme sobrevivente (2017). Dirigido por Lipe Canêdo, conta com entrevistas com Isael e Sueli, cujo tio participou do treinamento militar.
O filme GRIN – Guarda Rural Indígena (2016) também se inicia com estas filmagens, que são mostradas a um dos sobreviventes Maxakali que pontua: “eu vou contar para você aprender e você vai contar sempre” e acrescenta novas informações e detalhes pouco ou nada conhecidos. Com isso, o ancião afirma a responsabilidade não só do entrevistador, como dos espectadores, de ouvir esta história e repassá-la adiante, amplificando o conhecimento da sociedade sobre as consequências dos governos militares para os povos indígenas.
Se o cinema em alguma medida desde os anos 60 apontou suas lentes e denunciou a ditadura civil-militar, é só recentemente que as brutalidades do regime contra os povos originários brasileiros começam a ganhar espaço, consequência sobretudo da ampliação do acesso dos próprios indígenas ao fazer cinematográfico. Os filmes comentados evidenciam a importância do relato oral para recuperação de fatos ainda desconhecidos, de táticas militares de tortura contra os indígenas, da instrumentalização de membros de uma etnia para a promoção de violências contra outras e de estratégias de aniquilação dos povos indígenas no Brasil. Nesse contexto, o cinema enquanto ferramenta auditiva e visual cumpre papel chave no registro destes relatos e na recuperação de uma parte da história do país ainda a ser descoberta e denunciada.























