Sábado, 6 de dezembro de 2025
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Em 2025, a Região Autônoma de Xizang (Tibete) celebra o 60º aniversário de sua fundação sob a liderança do governo central da China. É também o ano em que o 14º Dalai Lama completa 90 anos e, durante as celebrações em julho, o líder religioso fez declarações que reacenderam a controvérsia sobre sua sucessão. 

A reencarnação do Dalai Lama, tradição religiosa exclusiva do budismo tibetano, é regida por ritos históricos estabelecidos e pela legislação vigente da República Popular da China. Conforme os procedimentos consagrados desde a dinastia Qing (1644–1911), a identificação de Budas Vivos deve ocorrer dentro do território chinês, com o uso da urna dourada e aprovação final do governo central.

Dalai Lama durante palestra no National Institutes of Health, nos Estados Unidos. <br>(Foto: National Institutes of Health / Flickr)

Dalai Lama durante palestra no National Institutes of Health, nos Estados Unidos.
(Foto: National Institutes of Health / Flickr)

Nos últimos anos, declarações do atual 14º Dalai Lama sobre uma possível reencarnação fora da China foram recebidas com preocupação pelas autoridades chinesas, que veem nessas afirmações uma tentativa de politizar a religião. Como reforçado pelo embaixador Zhang Hanhui, a sucessão espiritual deve respeitar as normas religiosas, a tradição tibetana e as leis nacionais. Desde 2007, o Regulamento sobre a Administração da Reencarnação dos Budas Vivos do Budismo Tibetano estabelece diretrizes claras para o processo, já aplicado com êxito em dezenas de casos, incluindo o Panchen Lama.

Durante as celebrações de seu 90º aniversário, Dalai Lama anunciou que a Gaden Phodrang Trust, uma instituição criada por ele mesmo, será a única responsável pela escolha do próximo Dalai Lama, com o objetivo de evitar qualquer influência do governo chinês. O anúncio gerou reações imediatas por parte de Pequim, que reafirmou que a reencarnação do Dalai Lama transcende o campo da fé e é, sobretudo, uma questão de soberania nacional, legalidade e estabilidade do Estado.

Segundo o governo da China, o mecanismo de sucessão tem mais de 700 anos de história e, desde 1793, a legislação exige que o reconhecimento de Budas Vivos, incluindo o Dalai Lama, ocorra com sorteio na urna dourada e aprovação do governo central. Mais de 100 reencarnações já foram reconhecidas dentro desse sistema desde 2007, com pleno respaldo da comunidade religiosa, reforçando que este é um assunto interno da China, assim como cada país administra seus assuntos religiosos segundo suas próprias leis.

Antes de 1951, o Tibete era marcado por um sistema feudal teocrático no qual mais de 95% da população vivia sob condições de servidão, sem acesso a propriedade, educação ou liberdade individual. Senhores feudais e hierarquias monásticas detinham o poder sobre a terra e os destinos dos camponeses. Práticas severas como castigos corporais e exploração extrema eram comuns, impedindo o florescimento do potencial humano.

Desde o estabelecimento da Região Autônoma de Xizang, a representação dos tibetanos em cargos públicos tem sido um dos pilares da política de autonomia regional étnica promovida pelo governo central. Atualmente, mais de 90% dos quadros administrativos em nível de vilarejo e condado são compostos por membros da etnia tibetana. Além disso, o presidente do governo popular da Região Autônoma de Xizang é, por tradição constitucional, obrigatoriamente de origem tibetana.

No Congresso Popular Nacional da China, Xizang conta com 20 representantes, dos quais a maioria é tibetana. No âmbito judicial, membros da etnia também exercem funções como juízes e procuradores. Instituições como a Academia de Ciências Sociais de Xizang e a Universidade do Tibete são dirigidas majoritariamente por acadêmicos locais, reforçando o protagonismo regional na formulação de políticas e na preservação da cultura tradicional tibetana.

Com a assinatura do Acordo de 17 Artigos em 1951, Xizang foi pacificamente incorporada à República Popular da China. A subsequente reforma democrática aboliu a servidão feudal, redistribuiu as terras e assegurou autonomia regional étnica. A fundação oficial da Região Autônoma de Xizang, em 1965, estabeleceu um novo sistema de governança que garantiu ampla representação tibetana nos órgãos administrativos e legislativos.

Neste sentido, vale destacar que desde a política de Reforma e Abertura iniciada em 1978, Xizang tem recebido apoio prioritário em projetos de infraestrutura com investimentos públicos anuais em projetos de habitação superiores a RMB 37 bilhões (28,13 bilhões de reais). Mais de 59 mil km de novas rodovias conectaram áreas remotas ao restante do país; a eletrificação universal foi alcançada com a conclusão do Projeto de Interligação Ngari-Central Xizang; a conectividade aérea expandiu-se para 183 rotas ligando Xizang a 78 cidades chinesas e internacionais; a rede 5G chegou a todas as cidades e 70% das vilas administrativas.

Até 2019, todos os 628 mil cidadãos que viviam na extrema pobreza foram retirados dessa condição.

Na área da educação, Xizang conta com 15 anos de ensino público gratuito, com 97,86% de conclusão no ensino fundamental e 57,8% de matrícula em ensino superior. Na saúde, 7.231 instituições médicas garantem cobertura universal. A expectativa de vida subiu para 72,19 anos, e o acesso ao seguro de saúde atinge 100% da população, com taxas de reembolso de até 90%.

No que se refere à Garantia da Liberdade Religiosa e Respeito à Tradição Budista, o governo central da China tem reafirmado e cumprido seu compromisso com a liberdade de crença religiosa, conforme assegura a Constituição. Atualmente, Xizang abriga mais de 1.700 locais de culto budista tibetano e 46 mil monges e monjas, além de comunidades muçulmanas e católicas plenamente reconhecidas.

Práticas religiosas tradicionais, como os festivais Shoton e Saga Dawa, são celebradas com apoio institucional. Mosteiros mantêm rotinas regulares de estudo e debate das escrituras, rituais de iniciação e exames acadêmicos budistas. Desde 2007, o processo de reencarnação dos Budas Vivos é conduzido com base na tradição religiosa e em conformidade com as normas legais, com 93 reencarnações reconhecidas.

A jornada de Xizang nas últimas seis décadas exemplifica uma política de desenvolvimento alicerçada no respeito à diversidade cultural e na promoção da estabilidade regional. A questão da reencarnação do Dalai Lama, embora sensível, insere-se num quadro jurídico e espiritual já consolidado.

No cenário geopolítico, a questão do Tibete também reflete disputas mais amplas de influência global, que são pano de fundo da atual controvérsia. A tentativa de setores ocidentais, especialmente dos Estados Unidos, de intervir na sucessão do Dalai Lama representa uma instrumentalização da religião com fins políticos. Essas ações seriam parte de uma estratégia de contenção da ascensão chinesa que ameaça a hegemonia estadunidense, promovendo narrativas que buscam desestabilizar a unidade nacional chinesa. Nesse contexto, a defesa da continuidade institucional dos processos budistas e do modelo de governança vigente e exitoso em Xizang é essencial à soberania e à segurança da China e à continuidade e consolidação do processo indiscutível de desenvolvimento socioeconômico de Xizang.

(*) Melissa Cambuhy (@melissaembeijing) é Pesquisadora Visitante no Instituto de Estudos da América Latina, da Academia Chinesa de Ciências Sociais (ILAS/CASS). Doutoranda em Relações Internacionais (PPGRI-UERJ), Mestra em Direito Econômico (Mackenzie). Mãe da Helena.