Em nome da total transparência, sou um dos muitos financiadores
voluntários do Wikileaks. Baixei todo o seu “Diário da Guerra Afegã” e
muitos outros documentos no passado e os compartilhei. Também sou um
dos críticos de alguns aspectos do processo de revisão do Wikileaks.
Alguns podem se apressar em concluir que isso deixa indivíduos como eu
em uma posição difícil. Não de nosso ponto de vista. As posições
difíceis, na verdade, pertencem ao Departamento de Estado dos EUA e ao
Pentágono, cujos pronunciamentos são repletos de afirmações absurdas e
de uma lógica distorcida, na tentativa de nos seduzir com o charme de
um delinquente prestes a estuprar a companheira: primeiro, o apelo a
nosso lado bom (a ética); depois, a ameaça da destruição (a ação
judicial).
A última semana foi marcada por uma enxurrada de ameaças judiciais
contra o Wikileaks, lançadas primeiro pela grande mídia – que, ao lado
de seu Estado protetor, ressente-se claramente do acesso repentino e
descontrolado à informação. Um funcionário do Pentágono teria
exclamado, com evidente satisfação: “É impressionante como [o fundador do Wikileaks, Julian]
Assange superestimou sua posição. Agora, ele está afastando as pessoas
que normalmente seriam consideradas suas maiores simpatizantes”.
De uma só vez, três falácias: que essa questão envolve apenas
Julian Assange, reduzindo assim o complexo ao pessoal; que os
apoiadores do Wikileaks se voltaram contra um movimento que na verdade
é transnacional e amorfo, sem fronteiras claras de filiação ou
localização; e que o apoio se transferiu para o Pentágono, como se o
órgão agora tivesse algum tipo de carta branca de legitimidade para
cometer qualquer ato que desejar contra o Wikileaks. É só nesses
grandes momentos históricos, com tantas coisas em jogo, com tudo
aparentemente no ar, que vemos tantas pessoas tão erradas sobre tantos
assuntos.
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Observemos a estratégia da intimidação planejada. O primeiro passo
envolveu militares ameaçando seus colegas – o que tem sua lógica, uma
vez que os vazamentos vêm de suas próprias fileiras. No entanto, os
militares ameaçaram os colegas para evitar enxergar o que agora é
público. O Departamento da Marinha, em mensagem intitulada “Orientação
sobre o website Wikileak”, fez o seguinte pronunciamento, noticiado em
15 de agosto:
“O pessoal não deve acessar o website Wikileaks para ver ou baixar
as informações confidenciais divulgadas. Fazer isso significaria
introduzir informações potencialmente confidenciais em redes não
confidenciais. Circulam rumores de que as informações não são mais
confidenciais, pois se encontram no domínio público. Isto NÃO é
verdade. A capacidade de tecnologia da informação do governo deveria
ser usada para capacitar nossos combatentes de guerra, promover o
compartilhamento de informações na defesa de nossa pátria e maximizar a
eficiência de operações. Ela não deveria ser usada como um meio de
prejudicar a segurança nacional por meio da divulgação não autorizada
de nossas informações em websites ou salas de bate-papo de acesso
público”.
Ameaças
Uma mensagem semelhante foi emitida pelo Escritório de Segurança
Especial do Departamento de Inteligência do Corpo de Fuzileiros Navais,
endereçada a ALCON (código para “all concerned“, ou “a todos os envolvidos”) e ameaçando os indisciplinados:
“Ao acessar intencionalmente o website Wikileaks com o propósito de
ver o material classificado publicado – estas ações constituem o
processamento, divulgação, observação e download não autorizados de
informações classificadas em um sistema de computação não-autorizado a
armazenar informações confidenciais, significando que eles cometeram
intencionalmente uma violação de segurança. Estas ações não apenas são
ilegais, como também fornecem a justificativa para que agentes de
segurança locais imediatamente removam, suspendam 'por justa causa'
todas as permissões e acessos de segurança. Os comandantes podem impor
acusações conforme os Artigos 15 ou 32 e o pessoal do USMC [Corpo de Fuzileiros Navais]
pode enfrentar dificuldades financeiras, pois o pessoal civil e
contratado será posto em 'licença administrativa' à espera da conclusão
da investigação” criminal.
Uma coisa é a ameaça ao pessoal militar; outra é o modo como ela
foi feita, ameaçando uma vasta série de atores que, teoricamente, pode
incluir blogueiros independentes, jornalistas, bibliotecários de
universidades e acadêmicos. Sumit Argawal, o ex-gerente do Google que –
notem o complexo militares-imprensa em funcionamento – é hoje o rei da
mídia social do Departamento de Defesa, afirmou ao blog Danger Room da revista Wired que muitos de nós podem ser culpados de tráfico ilegal de informação (como eu disse em meu último artigo, agora somos todos hackers):
“Vejo isso como algo análogo ao MP3 ou a um romance com direitos
autorais reservados disponibilizado online – a publicação generalizada
não invalida as leis que governam seu uso. Se o filme Avatar fosse
disponibilizado online de repente, seria legal baixá-lo? Por uma
questão prática, muitas pessoas o fariam, mas também por uma questão
prática, James Cameron provavelmente iria atrás das pessoas
identificadas como facilitadoras da distribuição. Ainda seria ilegal as
pessoas disponibilizarem Avatar, mesmo se ele fosse publicado em um
site de torrent ou similar. Com mudanças mínimas no que é legal ou
ilegal no que diz respeito ao material classificado contra um filme com
direitos autorais protegidos, a analogia não vale? O fato de uma pessoa
disponibilizá-lo não muda as leis sobre o material confidencial. Nossa
posição é simplesmente que os servidores não devem usar computadores do
governo para fazer algo que ainda é completamente ilegal (tráfico de
material confidencial)”.
Além disso, em 5 de agosto, o Pentágono fez uma exigência bizarra,
tão grotesca que só poderia ser recebida com escárnio. O porta-voz do
Pentágono Geoff Morrell ordenou que o Wikileaks “devolvesse” todos os
documentos (que não são documentos em papel, e sim versões digitais,
com inúmeras cópias hoje em circulação):
“Estes documentos são propriedade do governo dos EUA e contêm
informações classificadas e sensíveis. O Departamento de Defesa exige
que o Wikileaks devolva imediatamente toda versão <sic> dos
documentos obtidos. (…) A divulgação pública pelo Wikileaks, na
semana passada, de um grande número de nossos documentos já ameaça a
segurança de nossos soldados, nossos aliados e dos cidadãos afegãos.
(…) A única atitude aceitável é que o Wikileaks devolva todas as
versões destes documentos ao governo dos EUA e apague-os
permanentemente de seu website, computadores e registros”.
Contradições
Ao mesmo tempo, isso indica uma das principais linhas de
argumentação que os EUA começariam a usar a sério contra o Wikileaks. E
o argumento é, de longe, o mais fraco: que os registros vazados ameaçam
a segurança de seus soldados e aliados.
A Fox News apressou-se em
dedicar seu tempo e sua energia a procurar regras legais para
comprometer o Wikileaks. A emissora não demonstrou a mesma preocupação
com os pontos mais delicados da lei internacional, e muito menos com as
leis domésticas de outro país, quando se tratava das invasões
norte-americanas do Afeganistão e do Iraque. No entanto, eis a Fox no rastro do Wikileaks na Suécia. No dia 6 de agosto, a Fox ficou feliz por divulgar esta notícia: “Mas a lei [que protege a liberdade de expressão e o anonimato das fontes]
só se aplica a websites e publicações que possuam uma licença especial
de publicação que garanta a eles proteção constitucional, e o Wikileaks
não obteve o registro necessário”. A manchete da Fox foi:
“Website do Wikileaks não é protegido pela lei sueca, dizem juristas” –
nenhum analista foi identificado ou citado no artigo. O único motivo
pelo qual a Fox divulgou esta
nota é integrar um esforço que combina a velha mídia, a mídia social e
o Estado de segurança nacional para apertar a corda em volta do pescoço
coletivo do Wikileaks. Num momento em que muitos “norte-americanos
patriotas” pedem publicamente que o pessoal do Wikileak seja caçado e
morto, é interessante notar que a Fox ficou
mais do que feliz por revelar o nome, a localização e a fotografia da
pessoa que hospeda o servidor do Wikileaks na Suécia.
Aliados
Em 9 de agosto, o Wall Street Journaldisse ter obtido uma carta de cinco organizações pró-direitos humanos
criticando a atitude do Wikileaks de não editar os nomes dos
informantes civis afegãos nos registros divulgados publicamente. Jeanne
Whalen, numa linguagem admiravelmente parecida com a do funcionário
anônimo do Pentágono citado acima, escreveu: “A comunicação mostra como
o Wikileaks e Assange correm o risco de se isolar de alguns de seus
aliados mais naturais no rastro da publicação dos documentos”. Isso
poderia ser um problema para o Wikileaks, de modo que Julian Assange
efetivamente ofereceu o argumento em uma entrevista com, entre outros,
o jornal inglês The Guardian:
“Se há afegãos inocentes sendo identificados – o que era nossa
preocupação, e nos levou a reter 15 mil arquivos -, é claro que levamos
isso a sério”. O problema é que muitas dessas identidades são reveladas
nos arquivos já divulgados. Assange argumenta que os militares dos EUA,
no fim das contas, é que devem ser culpados por terem posto civis
afegãos em perigo e registrado identidades que poderiam ser reveladas.
Ele não está errado nesse ponto. E os EUA confiaram que sua base de
dados estava além de qualquer perigo de vazamento, o que está
obviamente errado. Talvez por querer evitar uma amarga ironia, Assange
optou por não devolver ao Estado as palavras que este costuma nos
oferecer: “Erros foram cometidos. Lamentamos todas as perdas de vidas
civis inocentes. Infelizmente, o inimigo escolheu misturar-se à
população civil”. O Wikileaks estava certo ao observar, via Twitter,
que, desde a disseminação pública dos recentes vazamentos, o Pentágono
não disse uma única vez que lamentava por todos os civis afegãos que
matou, ou que pararia de fazer isso.
Agora, no dia 10, informam-nos que os EUA estão conclamando todos
os aliados, especialmente os membros da OTAN com tropas no Afeganistão,
a reprimir o Wikileaks. Um diplomata norte-americano não identificado
declarou:
“Não são apenas nossos soldados que são postos em perigo por este
vazamento. São os soldados do Reino Unido, são os soldados alemães, são
os soldados australianos – todas as tropas da OTAN e forças
estrangeiras que trabalham juntas no Afeganistão. [Seus governos deveriam] analisar se as ações do Wikileaks constituem crimes sob suas leis de segurança nacional.”
Alguns aliados dos EUA, como o Canadá, provavelmente correrão para
ser os primeiros a fazê-lo. Um dia depois da divulgação dos documentos,
o ministro canadense do Exterior, Lawrence Cannon, insistiu, de início,
que não comentaria diretamente os documentos vazados, afirmando que
eles não tinham “nada a ver com o Canadá”. No entanto, como se de
repente recebesse uma declaração automática transmitida a um implante
secreto dentro de sua cabeça, ele disse: “Nosso governo teme,
obviamente, que vazamentos operacionais ponham em perigo as vidas de
nossos homens e mulheres no Afeganistão”. De novo, três elementos
absurdamente contraditórios são somados: 1) não comentaremos os
documentos; 2) os documentos não têm nada a ver com o Canadá; e 3) os
documentos podem pôr nossos soldados em perigo.
Sem sentido
A última questão provavelmente será determinar como os EUA
convencerão os aliados da necessidade de colaborar na ação legal contra
o Wikileaks. Colocar civis afegãos em perigo certamente não pode ser
argumento para abrir um processo contra o Wikileaks, pois a ironia
seria grande demais até mesmo para os EUA suportarem. A segurança das
tropas não é muito menos irônica – afinal, foi o Estado que colocou
essas tropas na linha de fogo, e não o Wikileaks -, mas tem mais apelo
perante uma população doméstica suficientemente condicionada a ansiar
pelo sangue de “traidores” imaginários. Os líderes do principal Estado
de segurança nacional do Ocidente soam cada vez mais como blogueiros
furiosos e desesperados, prometendo a ira de Deus e a vingança total –
e a explicação pode ser que 1) o Estado tem cada vez menos poder para
lidar com fenômenos transnacionais, descentralizados e não-estatais que
podem reagir no ciberespaço (e vencer) e 2) essa multidão de patriotas
furiosos e honrados é o público que o Estado procura agradar.
Seria estupendo se os EUA ou um aliado viessem a tentar processar o
Wikileaks com o argumento de que as vidas de seus soldados foram postas
em risco. Seria um grande fiasco. O Estado precisaria mostrar – e não
apenas afirmar, como faz agora – exatamente como qualquer soldado de
fato correu risco. Qual rajada de tiros de armas de pequeno porte no
Afeganistão é uma rajada “insurgente” regular e qual é inspirada no
Wikileaks? Em uma zona de guerra, como calibrar os níveis de segurança
para que se possa dizer quando, com o Wikileaks, o alerta do perigo se
tornou mais vermelho? E considerando que os afegãos já conhecem, a
duras penas, os danos causados pelas forças dos EUA e da OTAN, como a
divulgação desses registros pode causar qualquer dano mais grave? Os
afegãos por acaso precisavam de um lembrete, impresso, em outra língua?
Se o Estado não faz nenhum sentido – o que não surpreende -, é
porque não tem a intenção de fazer. O Estado está apelando a algo mais
visceral com toda essa pose: o medo. Quer incutir o medo nas mentes e
corpos das pessoas que trabalham para o Wikileaks, ou qualquer outra
que faça esse trabalho, ou qualquer uma que pense em vazar qualquer
registro classificado. O medo é a principal arma da destruição
psicológica, com sucesso comprovado em casa. E, neste caso, o perigo
está em casa. O desfecho que o Estado espera é mais autocensura e mais
autovigilância.
Intimidar Assange ou, pior ainda, capurá-lo e prendê-lo só o
transformará em um herói internacional, o Che Guevara da guerra da
informação. Apesar de todos aqueles que podem se “alienar” ou expressam
críticas, eles/nós claramente ficaríamos sempre do lado de Assange, e
não do Pentágono. Os EUA não querem comprovar isso em uma arena
mundial. Portanto, nossas respostas às perguntas sobre a intenção dos
EUA e o motivo de sua tão profunda perturbação devem estar em outro
lugar. Acredito que se trata da promoção do medo, como parte de uma
campanha de contrainsurgência global nos níveis psicológico e
emocional, para a qual a melhor resposta é uma combinação de mais
inovações táticas e melhor humor.
*Maximilian C. Forte é professor de antropologia na Universidade Concordia em Montréal, no Canadá. Escreve para Zero Anthropology . Artigo publicado em Counterpunch. Tradução: Alexandre Moschella.
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