Um rei quixotesco, ou nem isso
Na Espanha, a casa real dos Bourbons não se cansa de oferecer exemplos grotescos do que significa a tradição monárquica europeia
No Sul global quase não existem monarquias hoje em dia. Essa forma de governo, considerada arcaica por muitos espíritos modernos, é, curiosamente, quase uma exclusividade daqueles que vêem seus próprios regimes como os mais avançados que a humanidade pode ter: os europeus.
As repúblicas podem não ser uma panaceia para todos os males políticos, mas não há dúvidas de que são baseadas em pressupostos menos irracionais, ou em privilégios menos hereditários, do que qualquer monarquia, por mais “constitucional” que seja. Se excluirmos os membros da commonwealth britânica, que possuem o rei da Inglaterra como chefe de Estado, ou as monarquias do Oriente Médio (algumas inventadas pelo Império Britânico, como os Hashemitas; outras mantidas no poder graças ao apoio ocidental), esta tradição aristocrática é, atualmente, quase nula fora da Europa e do seu melhor aliado imperialista, o Japão (único autoproclamado “império” em atividade na política internacional).
Na Espanha, por exemplo, a casa real dos Bourbons não se cansa de oferecer exemplos grotescos do que significa a tradição monárquica europeia. O rei emérito Juan Carlos I acaba de se envolver em nova controvérsia, desta vez por conta de áudios vazados para a imprensa nos quais admite participação, ou até protagonismo, na tentativa frustrada de golpe de Estado conhecida como 23F (em 23 de fevereiro de 1981), quando militares invadiram o parlamento em Madri, sequestrando os deputados e o primeiro-ministro, enquanto cidades importantes, como Valencia, eram ocupadas por tanques e tropas, por cerca de 24 horas, numa intentona que quase sabotou a redemocratização do país.
O mais inusitado é que o “rei de todos os espanhóis” teve um papel central nos fatos. Até recentemente, prevalecia a versão oficial segundo a qual teria sido o seu pronunciamento à TV, por volta da 1h da madrugada, em traje militar de gala, dizendo-se contrário ao movimento golpista, que teria enfraquecido o golpe. Os livros de História e o consenso político espanhol desde então sustentam que Juan Carlos I fora, portanto, uma figura-chave para o sucesso da transição política em seu país, consolidando a democracia em sua hora mais difícil desde o fim do regime franquista (1939-1975).
Mas a verdade, segundo ele próprio, pode ser mais infame do que os monarquistas espanhóis gostariam de crer (incluindo a parte da esquerda que se acovarda frente à bandeira do republicanismo): el rey ganhou o crédito por travar um golpe que, agora sabemos, ele mesmo começara e comandara desde o princípio.

Juan Carlos I, à época rei da Espanha, em 2007.
(Foto: א (Aleph) / Wikimedia Commons)
Mas nada disso deveria espantar, dada a trajetória desta figura ímpar numa sociedade moderna, isto é, uma criatura cujas atitudes podem até ser normais para os que têm sangue azul em suas veias, mas não entre nós, mortais, que não possuímos tal nobreza sanguínea (os “certificados de pureza de sangue” foram, aliás, uma invenção proto-racista que a Espanha monárquica legou para o mundo moderno, junto com o aparelho policialesco e totalitário da Santa Inquisição, que usava tais “certificados” como ferramenta biopolítica de controle, punição e expropriação de propriedades de indivíduos racialmente identificados).
O que espanta, isto sim, é o tamanho da proteção jornalística, acadêmica e política que figuras assim continuam a receber, bem como os regimes que representam. Aqueles que os atacam, mesmo com provas, como as mais recentes, geralmente são objeto de silenciamento, descrédito ou escárnio. Nascido no final dos anos 1930 no auge da Itália fascista, onde a família real estava exilada desde o início da Guerra Civil espanhola, Juan Carlos foi educado na Espanha (também fascista) e acabou preparando o terreno para a conciliação definitiva entre a ditadura de Francisco Franco e a dinastia dos Bourbons. Quando tinha 18 anos, já cadete do Exército Espanhol, num episódio macabro ocorrido na residência de veraneio da família real em Estoril, Portugal, ele matou com um “disparo acidental” o seu irmão Afonso – o outro possível herdeiro ao trono.[1]
Assim, embora tenha adquirido fama como chefe de Estado constitucional e pilar da democracia, Juan Carlos já se envolvera em polêmicas públicas e privadas ao longo de décadas como herdeiro e depois líder da monarquia espanhola, bem antes dos áudios recentemente vazados sobre o 23F.
Trata-se de uma vida dedicada a gastar o dinheiro de seus súditos com a construção patriarcal de um harém pessoal de mulheres, com infinitos casos de presentes de luxo a amantes (com dinheiro público) e prostituição em escala fabril (segundo um biógrafo que trabalhou nos serviços de inteligência espanhóis foram, ao todo, 4.786 amantes del rey entre 1954 e 2014, uma atitude considerada de alto risco para a segurança do Estado).[2] Os casos de corrupção, lavagem de dinheiro e envolvimento com agiotas foram inúmeros, até que a Justiça Espanhola finalmente agisse com mais vigor, levando o rei a abdicar do trono e literalmente fugir de seu país em 2020, levando parte do tesouro pessoal em mãos… Muitos consideraram aquela jogada como uma forma desesperada de salvar a instituição monárquica, ao jogar a culpa em uma “maçã podre” real, cujos pecados os filhos e netos poderiam, de alguma forma, redimir. Seu filho, Filipe VI, casou-se com uma carismática apresentadora de TV e foi coroado com essa esperança, agora retransmitida à sua neta, a infanta Leonor (objetificada sexualmente, vale lembrar, diariamente em capas de revista e programas de fofocas nas mídias sociais ou na TV espanhola).
Mas a biografia do agora rei “emérito” não ajuda. Quando a Espanha vivia uma gravíssima crise financeira no início dos anos 2010, em meio à ebulição social do movimento dos indignados (que daria origem ao Podemos, agora Unidas Podemos, dentre outros resultados políticos), o monarca foi flagrado por fotógrafos durante caçadas para matar elefantes em um safari na África, acompanhado de uma de suas amantes. Anos antes, o rei-fujão, ainda em funções, se achou no direito de mandar o presidente venezuelano Hugo Chávez calar-se, com dedo em riste, durante uma sessão da Cúpula Iberoamericana. Ora! Um autocrata jamais eleito por ninguém, mas tido como amante da democracia pela História Oficial, achou por bem sufocar a voz de um líder popular de uma ex-colônia sua (eleito diversas vezes!), grande referência política para boa parte do continente, num evento justamente destinado a aproximar a América Latina de suas ex-metrópoles… [3]
Esse mesmo rei, que hoje se autoincrimina e ameaça destruir, outra vez, sua pobre reputação, suscita, em todo caso, a importante questão: serão capazes os europeus de evoluir politicamente? Agora que a mais consensual “prova de lealdade” da casa real à democracia parece ruir, será que os livros de História serão atualizados? Será possível que o próprio sistema político seja modernizado, isto é, que tenha liquidado todos os resquícios feudais, como sempre gostaram de prever aqueles teóricos da “modernização política” a respeito do mundo extra-europeu?
A resposta é incerta, mesmo que boa parte do esforço midiático, acadêmico e político de décadas para sustentar e legitimar a monarquia carlista tenha se baseado no relato, ora duvidoso, sobre o 23F e o papel supostamente desempenhado pelo rei naqueles eventos.
O que se sabe é que, tanto agora como na época da transição democrática, os espanhóis nunca tiveram a chance de votar em um plebiscito livre para decidir, como povo soberano, sob qual forma de governo gostariam de viver. Esta opção sempre lhes foi negada por acordos pactuados entre as elites políticas, econômicas, militares e religiosas do país ibérico, incluindo setores de esquerda sob a liderança de figuras como Felipe González, que endossaram a fórmula monárquica do “novo” regime bipartidário que emergia após a ditadura. As poucas pesquisas de opinião que foram feitas, na época ou agora, demonstram, antes e hoje, a preferência da maioria pela forma republicana de governo. Contudo, assim como no caso do referendo de independência da Catalunha – brutalmente reprimido pelo Estado espanhol – quem se importa com a vontade popular quando todo o regime é baseado numa negação radical do igualitarismo cidadão, isto é, numa desigualdade ontológica insuperável, hereditária e ungida por Deus?
Novamente, não se trata de fetichizar ou demonizar esta ou aquela forma de governo quando, na verdade, é o conteúdo das relações sociais que mais importa para compreendermos o “estágio” de desenvolvimento de uma dada sociedade (se é que estágios existem). Mas não aproveitar as peripécias de um rei quixotesco como este é um sério erro político. Cervantes, aliás, talvez ficasse ofendido com esta comparação, pois a sua personagem clássica era algo mais profunda filosoficamente do que este fanfarrão golpista em forma de rei.
Para nós, na América Latina e no Caribe, o fato de que o 12 de Outubro ainda seja comemorado na Espanha como data de orgulho ou saudade colonialista é prova de que até para nosotros o fim desta vergonhosa monarquia é uma daquelas “tarefas em atraso” que a burguesia iluminada europeia não conseguiu realizar, deixando-a forçosamente para a classe trabalhadora espanhola e para os povos que ainda hoje sentem a colonialidade do poder hispânico em todo o planeta.























