Sábado, 6 de dezembro de 2025
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O encontro entre a diplomacia profissional de Putin e o amadorismo voluntarista de Trump já foi suficientemente comentado por analistas de todos os matizes. A subserviência e pusilanimidade dos pseudo líderes europeus nunca será suficientemente apontada, mas também não é o caso de perder tempo com o óbvio.

É mais produtivo voltar a um tema levantado na última coluna: qual a probabilidade de que a inevitável piora a curto prazo da economia estadunidense leve a uma derrota nas eleições de midterm e à perda da maioria republicana no Congresso?

O presidente dos EUA, Donald Trump, durante chamada com o presidente russo, Vladimir Putin. (Foto: Daniel Torok / White House)

O presidente dos EUA, Donald Trump, durante chamada com o presidente russo, Vladimir Putin.
(Foto: Daniel Torok / White House)

Essa questão tem alimentado o debate interno e externo aos EUA desde a posse de Trump e o vendaval nas duas esferas (interna e externa) onde atua numa velocidade e truculência inesperadas, mas perfeitamente previstas nos manuais da guerra híbrida. O objetivo de atuar dessa maneira é desorientar o adversário e deixá-lo sem capacidade de prever novos passos e se preparar defensivamente. 

Para manter as referências no mundo imaginário de Tolkien, poderíamos dizer que aqueles que enxergam no modus operandi de Trump um desvio personalista, fruto de uma mente doentia, e não a expressão da forma de operar politicamente assumida pelo capitalismo neoliberal no novo patamar da crise estrutural vigente desde 2008, esperam que o Rei de Gondor (a legitimidade do suposto funcionamento democrático do país) volte e o mundo retorne à “normalidade”.

Entende-se a esperança, mas ela não parece se apoiar num conhecimento preciso das idiossincrasias de um sistema eleitoral anacrônico e desfuncional. 

Vale começar por lembrar algumas coisas básicas. 

Primeira: nesse sistema um presidente pode perder no voto popular e se eleger no anacrônico colégio eleitoral. Até aí, é algo que a maioria das pessoas já sabe. Os mais antigos e antenados se lembrarão até que, em 2000, George W. Bush e o democrata Al Gore estavam praticamente empatados e a vitória foi dada ao Jr. pelo Estado da Flórida, então governado por seu irmão Jeb Bush, por uma diferença de 537 votos. Al Gore pediu recontagem, que foi interrompida pela Suprema Corte, decretando o resultado. 

Mas não se encontrará, ao menos por aqui, a notícia de que quatro anos depois, na reeleição de Bush Jr., foram encontradas em alguns locais de votação da Flórida caixas com cerca de 3000 votos pelo correio que não haviam sido apurados. E não havia, do ponto de vista legal, nada que pudesse ser feito! 

Absurdo? Vamos começar por lembrar duas características fundamentais. Primeira, o voto nos EUA não é obrigatório. Isso significa que a estratégia dos partidos passa por convencer seus eleitores a irem votar e, inversamente, desestimular ou impedir os eleitores adversários de fazê-lo. 

Segunda. Não existe regulamentação federal do voto nem nada parecido com os nossos tribunais eleitorais. Cada Estado define suas regras gerais e cada condado pode estabelecer regras específicas como prazos para recepção de votos pelo correio, prazos de apuração, funcionamento de juntas apuradoras, etc.

Assim, um condado ou, mais ainda, uma Assembleia Estadual, uma vez dominada por determinado partido, pode estabelecer regras que facilitem o acesso ao voto pelos seus eleitores ou que, inversamente, dificultem os eleitores da oposição. E como se sabe isso? Porque lá existe o registro do eleitor, que permite a participação nas famosas prévias partidárias. Mas sobretudo, sabe-se que determinados setores sociais ou grupos étnicos tendem historicamente a votar num ou noutro partido. 

Então um procedimento típico onde republicanos dominam as assembleias é exigir documento de identidade para votar, sabendo que nos EUA ele não é obrigatório e as comunidades negras e/ou pobres normalmente não os têm. 

Outra coisa que ignoramos ou minimizamos é que, ao contrário do Brasil, em que as eleições gerais se realizam num domingo, na “maior democracia do planeta”, elas sempre caem na primeira terça-feira de novembro. 

Na metade do século XIX, isso respondia a tradições ligadas à sociedade agrária. Mas é fácil perceber as implicações na sociedade atual. Patrões não são obrigados a liberar seus empregados para votar. Por isso o voto por correio é fundamental para trabalhadores pobres. E por isso Trump está a ponto de assinar um decreto presidencial que acaba com ele. 

Outra intervenção de Trump no processo eleitoral é um decreto presidencial que proíbe o voto de pessoas com nome em algum documento diferente do registrado no nascimento. Para seu público apoiador, a justificativa é de uma regulamentação contra pessoas trans. Mas o verdadeiro objetivo é o enorme contingente de mulheres que mudaram de sobrenome no casamento. Porque as mulheres, mesmo as republicanas, votam majoritariamente contra Trump. 

De todos os trambiques, o mais manjado é o chamado gerrymandering. O nome é uma combinação do sobrenome do sujeito que o inventou (Elridge Gerry) e mander (salamandra), bichinho parecido com a figura do primeiro distrito especialmente desenhado para que seus adversários não pudessem ganhar nunca.  

Nas últimas semanas o gerrymandering foi levado a extremos pelo Estado do Texas, que está redesenhando seus distritos para ter mais delegados republicanos no Colégio Eleitoral. Em resposta, Gavin Newson, governador da tradicionalmente democrata Califórnia decidiu fazer o seu próprio gerrymandering “do bem”.

Cornel West, filósofo, ativista e professor emérito de Princeton, afirma que historicamente os EUA “são um experimento social fracassado”. Seu sistema eleitoral tem boa parcela de responsabilidade por isso.

(*) Carlos Ferreira Martins Professor Titular Sênior do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP em São Carlos