Trump estaria impondo 'capitalismo com características chinesas' aos Estados Unidos?
Tese proposta por colunista de jornal americano falha ao não perceber semelhanças entre modelo de Trump e o da ditadura brasileira
Os Estados Unidos estão cada vez mais parecidos com a China. Sim, há uma tese nessa linha circulando por aí. A tese, aviso logo, não é minha, mas de um dos colunistas do Wall Street Journal, publicação que, como o próprio nome diz, tem lado. Se fosse um jornal brasileiro, ele se chamaria Faria Lima News (em inglês adaptado mesmo, porque faz o mesmo job, mas no original).
Greg Ip, o economista-colunista, escreve, em texto publicado nesta semana: “O senso comum dizia que, à medida que a China se liberalizasse, sua economia passaria a se assemelhar à dos Estados Unidos. Em vez disso, é o capitalismo americano que começa a se parecer com o chinês”.
Para Ip, os exemplos recentes que corroborariam sua tese são a exigência do presidente Trump para que o CEO da Intel renuncie, as taxas de 15% de certas vendas de chips para a China que Nvidia e Advanced Micro Devices dividirão com Washington e a “golden share” que Washington receberá na U.S. Steel como condição para a aquisição pela Nippon Steel.
“Isso não é socialismo, no qual o Estado é dono dos meios de produção. É mais próximo do capitalismo de Estado, um híbrido entre socialismo e capitalismo em que o Estado orienta as decisões de empresas que são, em tese, privadas”, defende Ip.
O argumento é interessante, mas as experiências históricas brasileira e chinesa permitem refutá-lo nas duas pontas. Comecemos pela China, porque a história do Brasil é mais interessante e quero que você leia até o final deste texto.
A ideia de que a China evoluiria para um regime liberal graças à liberalização econômica foi o sonho dourado de muitos governantes norte-americanos. Ela estava por trás do processo iniciado em 1971, quando Richard Nixon e Mao Zedong aproximaram os dois países, motivados por desconfianças diferentes em relação à União Soviética.
Essa ideia favoreceu a implantação de inúmeras empresas norte-americanas na China, em parcerias tanto com empresas estatais como com empresas privadas cada vez maiores.
Funcionamento político da China
Mas a China não caminhou politicamente para um modelo liberal na política, muito menos na economia. A China sustenta que seu desenvolvimento econômico está direcionado à construção do socialismo – e que o mercado seria um dos instrumentos para chegar lá. A ideia não é absurda: o mercado existia antes do capitalismo que se engendrou a partir dele no Ocidente e durante muito tempo em países que não eram, essencialmente, capitalistas, muito menos democrático-liberais.
A China decidiu, em algum momento, restaurá-lo, mas também manter mecanismos políticos para regulá-lo, e não para serem regulados por ele. O principal mecanismo é a manutenção de um Partido Comunista forte e organizado, que controla as decisões de Estado, sobretudo as de longo prazo, e divide as decisões de gestão – sobretudo as de médio prazo – com os governantes, sem deixá-las à própria sorte.
Para isso, e talvez nem sempre fique claro para os ocidentais, um mecanismo clássico do processo decisório socialista foi mantido: a organização de base em torno do partido dominante, no caso, o PCCh, o Partido Comunista Chinês.
Em vez da representação ocidental, em que o poder é delegado a parlamentares e executivos eleitos em certames caros, financiados legal ou ilegalmente por empresas privadas e pelo Estado, tem-se uma representação mais orgânica, em círculos crescentes, envolvendo compromisso entre os eleitos e os grupos menores de que participam. Círculos que não estão apenas um dentro dos outros, mas que se esbarram em diferentes espaços de poder, inclusive dentro das empresas.
Isso torna muito estável o regime, e também o controle sobre as empresas, que não vem apenas do poder central, mas também dos diferentes poderes comunitários que, via partido ou via governantes com ligações estreitas com suas bases, se exercem em diferentes níveis. Alguns chamam isso de democracia popular, em oposição à democracia plutocrática liberal típica daqueles países que têm o, digamos, monopólio simbólico do uso da palavra “democracia” – Estados Unidos e Canadá na América, mais a metade dos países colonialistas da Europa e, por último, Israel.
É justamente esse um dos mecanismos essenciais que faltam aos Estados Unidos para que seja possível um “capitalismo com características chinesas” na América de Donald Trump.
O modelo político-empresarial da ditadura militar brasileira
Por outro lado, a experiência brasileira mostra que, sim, o Ocidente conhece um modelo de intervenção do Estado nas empresas poderoso, influenciando o dia a dia das decisões e ditando rumos do capital privado de modo, paradoxalmente, não a controlar seu poder, mas a turbinar sua expansão.
Alguns presidentes brasileiros exerceram esse poder de forma muito semelhante ao promovido por Trump. Em tom crescente, citaríamos: Humberto de Alencar Castelo Branco (1964-1967), Artur da Costa e Silva (1967-1969), Emílio Garrastazu Médici (1969-1974) e Ernesto Geisel (1974-1979). João Batista Figueiredo (1979-1985) fica fora da lista porque, durante seu governo, o país estava tão debilitado, e ele tinha tão pouca capacidade de governar, que não havia mais projeto econômico, apenas gestão desesperada de índices de inflação e desmonte de cadeias produtivas cada vez mais acentuado.

Trump, Geisel e Xi Jinping, em imagem ilustrativa gerada por IA
Ou seja, o regime imposto pelos Estados Unidos ao Brasil em 1964, com o suporte logístico e explícito de Washington à ditadura militar brasileira, criou uma situação de fato muito parecida com aquela que Trump agora impõe a um grupo maior de empresas do país.
Vou dar exemplos nas pontas, apenas. Em 1964, logo após o golpe, o governo achava importante contar com diretores militares nas principais empresas do país. E instalou diretores militares em diversas delas, inclusive multinacionais, como a Volkswagen, apesar de a empresa ser dirigida no Brasil por um notório direitista: Friedrich Schultz-Wenk (1914-1969), oficial da marinha alemã durante a Segunda Guerra Mundial que se filiara ao Partido Nazista em 1931.
O general Golbery do Couto e Silva, pai do Serviço Nacional de Informações (SNI), próximo a Castelo Branco e Geisel, presidiu a seção brasileira da Dow Química, quando os jogos palacianos o afastaram dos cargos no governo.
A escalada da participação do Estado nas empresas privadas brasileiras foi crescente até a adoção, pelo presidente Ernesto Geisel, da política do segundo Plano Nacional de Desenvolvimento e do modelo tripartite para investimentos, que procurava combinar 1/3 de capital estatal, 1/3 de capital privado nacional e 1/3 de capital estrangeiro.
Capitalismo de Estado à brasileira: características soviéticas?
Os liberais mais preocupados viam no governo Geisel uma espécie de expansão esquerdista do Estado, com o risco de o Brasil adotar, surpresa, um modelo de capitalismo de Estado, adotando a gramática chinesa de hoje, “com características soviéticas”.
Obviamente, o governo Trump se parece mais com aquilo que assistimos no Brasil nos anos 1960 e 1970 – aliás, modelo apoiado pelos Estados Unidos e, de certa forma, muito inspirado na própria relação que os norte-americanos têm com seu complexo militar – do que com o modelo chinês dos anos 2000. E isso, sim, deveria ser motivo de preocupação para os Estados Unidos.
Porque o que assistimos no Brasil, ao fim dessa intervenção para enriquecer os ricos, que foi o modelo econômico da ditadura, levou a pobreza, miséria e inflação descontrolada depois de 21 anos de regime. Ao passo que o modelo adotado pela China nos anos 1970, em 50 anos, foi capaz de gerar riqueza, diminuir a pobreza no país mais populoso do mundo e construir um novo modelo de desenvolvimento que, se não é perfeito, é nitidamente hoje muito mais saudável e democrático que o modelo de Donald Trump.























