Sábado, 6 de dezembro de 2025
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Donald Trump tinha uma vontade clara, mas nenhum um plano efetivo, para acabar com o massacre em Gaza e interromper a guerra na Ucrânia. Seus esforços fracassaram logo no começo do seu governo e agora ele tenta, de maneiras cada vez mais criativas, atingir o mesmo objetivo. Nada está claro, apesar da megalomania dos seus discursos, sabidamente cortinas de fumaça.

O plano de 20 pontos para Gaza não conta com a adesão plena dos palestinos. Ao mesmo tempo em que coloca termo à ação israelense, que só poderia terminar em uma solução final, ele não estipula um esquema claro para a retirada das forças armadas israelenses – e ainda, capciosamente, ressuscita o ex-premiê britânico Tony Blair para algo que cheira, perigosamente, ao velho Mandato Britânico da Palestina.

O presidente dos EUA, Donald Trump, durante discurso na 80 Assembleia das Nações Unidas, em 23 de setembro de 2025. (Foto: White House / Daniel Torok)

O presidente dos EUA, Donald Trump, durante discurso na 80 Assembleia das Nações Unidas, em 23 de setembro de 2025.
(Foto: White House / Daniel Torok)

Enquanto isso, o front ucraniano caminha para uma nova escalada, como admitiu publicamente o presidente russo Vladimir Putin, e Israel, ainda que busque negar, está se posicionando de forma cada vez mais clara e aberta contra a Rússia – as duas frentes caminham, perigosamente, para se fundirem, algo que eram favas contadas apesar de liberais de todas as plumagens insistirem na analogia falsa entre Gaza e Ucrânia.

O sistema antimísseis Patriot, de fabricação americana e propriedade israelense, foi enviado há cerca de um mês, mas isso ganhou notoriedade há pouco na mídia global – o que mostra uma inflexão de Tel Aviv contra Moscou; há pouco, iranianos se queixavam de não terem recebido aeronaves modernas da Rússia, mas após o ataque israelense ao país, Moscou avançou nos acordos de proteção com Teerã.

Nesse tabuleiro geopolítico, as bordas do mundo euroasiático, expressão da aliança sino-russa, estão em choque com as do Ocidente. O alinhamento de diversas contendas globais, ainda que sem conexões iniciais, aos polos estratégicos mais gerais acaba, no entanto, acontecendo quase por inércia. O mundo segue flertando perigosamente com a Terceira Guerra Mundial e nada parece ser capaz de evitar isso

A armadilha de Tucídides no nosso tempo

Embora seja um clichê, apelar ao conceito da armadilha de Tucídides é válido. Baseado no célebre historiador grego de mesmo nome, que escreveu a História da guerra do Peloponeso, o conflito entre a ascendente Atenas contra a velha Esparta parece um paradigma ao menos possível na relação entre uma velha potência e outra ascendente. No caso, temos hoje Estados Unidos e China.

Até as pedrinhas da rua sabem, contudo, que isso foi evitado na transição quase de pai para filho da hegemonia global dos britânicos para os americanos – mas no meio do caminho havia uma Alemanha unificada, que enfrentou a ambos, produzindo duas guerras mundiais. Antes, o imperialismo era gerido pelo conserto de potências havido na própria Alemanha, que sediou a Conferência de Berlim.

Esse entrevero abriu espaço para os socialistas revolucionários, que levaram a cabo um bem-sucedido processo revolucionário no antigo Império Russo. Com isso, o imperialismo não alcançou um rearranjo com a vitória anglo-americana na Primeira Guerra Mundial, mas ganhou um fator de complexidade: a União Soviética, primeiro Estado proletário da História, servindo de sede ao movimento comunista internacional.

O nazismo resultante da frustração alemã para a derrota apenas produziu mais violência, obrigando até uma ainda que tardia aliança americana com os soviéticos, abrindo espaço para uma nova rodada de avanço do comunismo na Terra. Mas uma vez finda a guerra, americanos ocuparam Alemanha e Japão, dirigindo o capitalismo internacional de maneira inequívoca.

Antes amigos, americanos e soviéticos passaram a disputar a hegemonia global, com a vitória de Washington. Mas um novo fator colateral mudou a História: a China, que conquistou sua Revolução aliada aos soviéticos, mas depois rompeu com Moscou se aliando pragmaticamente aos americanos, conseguiu se usar desse expediente para fazer sua economia crescer brutalmente, mudando o jogo e pondo em curto a unipolaridade.

Hoje a China é o grande polo econômico que desperta os piores pesadelos para os americanos, uma vez que combina poder militar e político com uma economia pujante, inovadora e gigante – consistindo no pior desafio que os americanos enfrentaram desde sua fundação como país, quando ou se beneficiaram das mudanças do mundo ou não foram perturbados.

Uma polaridade objetiva, antes de ser subjetiva

Nem a Federação Russa, emergida dos escombros da União Soviética enquanto Estado sucessor, nem a China se perfilaram contra a hegemonia americana nos anos 1990. Ao contrário, aceitaram ela e buscaram inserir suas economias soberanamente no jogo da globalização, o que foi bem recebido pelas elites ocidentais – que não concediam esse regalo a latino-americanos e africanos, a quem esperavam toda sorte de concessão.

Passado o tempo, a liderança de corte patriótico de Putin, antes um queridinho dos democratas e da turma da globalização, despertou os piores temores em Washington – que se mal acostumou à subserviência do antecessor dele, Boris Yeltsin. O mesmo ocorre com os chineses, que silenciosamente transformaram seu boom econômico de natureza industrial em meio de ampliar e qualificar suas forças armadas.

A Crise Financeira de 2008, com seus resgates titânicos das grandes corporações feitos às expensas de trabalhadores falidos, colocou a hegemonia Ocidental em causa. Enquanto isso, russos e chineses avançavam, se integravam e atraíam outros parceiros como indianos, brasileiros e, depois, sul-africanos. O contraste da formação do Brics em 2009 com isso levou ao atrito atual, quisessem as partes ou não.

A Europa e o Japão cresceram menos que os americanos na globalização, e a crise de 2008 lhes impôs cortes de investimentos sociais que permitiam ter melhor qualidade de vida mesmo com menos prosperidade. Do outro lado, o crescimento americano se mostrou inútil para a maioria dos americanos, ressuscitando os piores sentimentos e movimentos de um país que conviveu com a segregação racial até os anos 1960.

Chineses e russos haviam se distanciado de lutas anticoloniais e buscavam gerenciar questões delicadas, ressignificadas na Guerra fria, de maneira formalista – e isso vale para Palestina ou para a Coreia, mas também sobre a expansão militar americana, via Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Mas História não lhes deu o luxo da inércia.

Nos anos 2000, os chineses se integravam à Internet, construíam infraestrutura, fabricavam e vendiam computadores, enquanto se abriam para os americanos, suas redes sociais e corporações. Isso até descobrirem que as Big Techs americanas não gostariam de respeitar a soberania chinesa, o que impulsionou o país a criar as suas próprias redes sociais.

A nova polaridade transita do objetivo para o subjetivo

Do mesmo modo, a série de ousadias geopolíticas sino-russas se impuseram, porque o mundo globalizado, a priori multilateral, se mostrou a reprodução escamoteada das velhas relações de força dos tempos do imperialismo – obrigando russos e chineses a realizarem uma integração surpreendente, e inicialmente menosprezada, o que serviu de polo de atração para o mundo tratado como resto.

A Coreia do Norte, deixada quase à própria sorte nos anos 1990 e 2000, foi readmitida aos grandes eventos de Moscou e Pequim como uma forma de mudança de intenção. Ainda que longe do adequado, russos e chineses se distanciam cada vez mais de Israel, cuja cooptação por via da entrega de tecnologia militar nos anos 1990 atraiu lideranças de Moscou e Pequim.

Ao vencer em 2016, Trump tinha um discurso surpreendente, negando os quase 50 anos de colaboração de seu país com a China, que seus antecessores esperavam transformar em uma aliada por meio de uma evolução pacífica. O resultado do primeiro governo Trump foi a criação de uma sinofobia resiliente, mantida sob outras vestes, e com outros argumentos, no governo de Joe Biden.

Do mesmo modo que Trump tinha sido ousado contra a China, dando início à política de sanções e tarifas contra o país, Biden bancou a arriscada expansão da Otan para o leste. E Trump, no seu retorno, se viu obrigado a manter essa política, mesmo que tenha se mostrado publicamente reticente. O evento palestino é da mesma ordem, uma vez que desafia o mando brutal de Israel, que é chave para Washington na Ásia Ocidental.

Os planos de Trump são tão impressionantes quanto desesperados, buscando retomar e ampliar medidas protecionistas enquanto brada sua espada, colocando na mesa ações militares contra quem não fizer sua vontade. Mas para seu desespero, muitas vezes isso falhou, como na tentativa de colocar o Canadá nas cordas ou dobrar o Brasil com tarifas também políticas.

O cenário das bordas da Eurásia é de fronteiras quentes, seja por terra ou por mar, e parece haver pouca disposição de se buscar, ao menos, um conserto que atrase uma conflituosidade maior. De todo modo, medidas paliativas como o plano para a Palestina ilustram que o Ocidente já não consegue tratorar o que bem quer, embora ele busque tratorar como há muito tempo não fazia.

(*) Hugo Albuquerque é jurista e editor da Autonomia Literária.