Sábado, 6 de dezembro de 2025
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”Uma pedra rolando não junta musgo.”
Provérbio popular francês 

“Faz-se caminho ao andar. O caminho mais curto nem sempre é o mais direito.”
Provérbio popular português.

As recentes eleições para o Parlamento Europeu e parlamentares, na Grã-Bretanha e França, assim como a tentativa de golpe derrotada na Bolívia, reacenderam um debate sobre a tática que a esquerda deve usar diante da confirmação de um fortalecimento da extrema direita em escala internacional. Qual deve ser a linha contra a ameaça neofascista? 

A esquerda mais moderada afirma como estratégia a defesa da democracia liberal e se inspira na vitória do Partido Trabalhista de Keir Starmer, que fez um giro ao centro, a exemplo de Tony Blair nos anos 90, argumentando que as condições impostas pela relação de forças, há 35 anos, com a restauração capitalista e o fim da URSS, obrigam a esquerda a aceitar os limites intransponíveis do capitalismo, e defender pequenas reformas para mitigar a pobreza extrema e diminuir a desigualdade, ou seja, programa mínimo. Interpretam a desistência recíproca, no segundo turno das eleições francesas, de candidaturas que ficaram em terceiro lugar da Nova Frente Popular e do macronismo como tática de frente-amplismo. Não foi assim. Foi somente uma subtática circunstancial e justa de chamado ao voto, portanto, uma unidade de ação para barrar a extrema direita, porque não houve qualquer acordo de programa ou compromisso de formação de governo.

O argumento para não ir além dos limites do neoliberalismo é o frente-amplismo e a governabilidade. Essa aposta é perigosa. É improvável que a busca de superávit primário, preservando a flutuação do câmbio e um plano de metas para a inflação, o tripé do FMI, mantidos com o arcabouço fiscal, seja capaz de garantir crescimento. Sem crescimento, o horizonte de crise social é assustador e a ameaça bolsonarista é séria. 

A esquerda mais radical, diante do crescimento da ultradireita com um discurso antissistema contra a democracia, defende a necessidade de uma tática ofensiva, frequentemente associada à defesa de um programa de ruptura com o capitalismo, ou seja, programa máximo. Acontece que a situação na luta de classes, porque a relação de forças importa, é defensiva. Quando Bolsonaro critica o “sistema”, ou tudo que está aí, está denunciando que há direitos demais para os trabalhadores, a democracia ficou cara demais, a Previdência e o SUS são grandes demais, a educação pública, as universidades, o IBAMA, e por aí vai. O que está ameaçado pelos neofascistas são as conquistas dos últimos 35 anos. A esquerda não pode fazer discursos de embelezamento do regime liberal semipresidencialista de coalizão, mas deve, taticamente, defender a democracia contra o golpismo bonapartista.  

Entre estas duas posições, existe uma esquerda socialista que pode se inspirar no exemplo francês liderado pela França Insubmissa e pela formação da Nova Frente Popular, e defender a unidade da esquerda com impulso revolucionário com as correntes reformistas moderadas, independente de alianças com frações burguesas neoliberais, com um programa de transição, nem mínimo, nem máximo. Uma muralha de esquerda, a força do apelo da frente única de classe, foi chave para despertar a confiança e até o entusiasmo que levaram milhões às urnas – 67% foram votar, e a taxa de abstenção foi a menor em mais de vinte e cinco anos – e muitas dezenas de milhares às ruas, garantindo uma virada espetacular. Mostrou que é possível vencer.       

Ricardo Stuckert
Impulsionar a Frente Única de Esquerda contra os bolsonaristas continua central

A esquerda brasileira permanece muito dividida, pulverizada em duas dezenas de organizações e correntes que se estruturam no interior dos dois principais partidos, o PT e o PSOL, ou no exterior deles, com graus de influência variados: desde pequenos círculos de propaganda a partidos com influência de massas, e diferentes situações intermediárias entre eles. Mas, em uma análise rigorosa, são três, somente, as táticas. Há aqueles que defendem a Frente Ampla, ou seja, a aliança com setores burgueses para vencer a extrema-direita nas eleições e governar – portanto, o quietismo para evitar tensões ou divisões com os liberais. Há aqueles que defendem a ofensiva permanente que obedece ao cálculo de que, diante das crises contemporâneas, se a esquerda não abraçar um discurso antissistema, os neofascistas ocuparão um crescente espaço político, diante do que interpretam como crise do regime: a Nova República que surgiu do fim da ditadura. Finalmente, há aqueles que defendem a Frente Única de Esquerda: uma tática defensiva que, diante do neofascismo, une a defesa das liberdades democráticas com as reivindicações de classe. Estes conceitos têm uma história e remetem ao repertório acumulado pela esquerda socialista mundial.

O quietismo e o frente-amplismo estão associados à orientação do SPD, o partido da social-democracia alemã sob a orientação de Kautsky, desde o início do século XX, e durante os vinte da República de Weimar. A ofensiva permanente era a posição de Bela Kun, líder húngaro da III Internacional para a situação alemã, que resultou na derrota da revolução em 1921. A tática da Frente Única Operária foi elaborada sob a inspiração de Lenin e Trotsky, mas abandonada pela III Internacional. Tanto a tática do frente-amplismo quanto aquela defendida pelo PC alemão sob controle do estalinismo, que igualava a social-democracia ao fascismo, denominando-a até como social-fascista – socialismo em palavras, cumplicidade com o fascismo nos atos – explicam o desastre da eleição de Hitler em 1933: de maior minoria no Parlamento alemão, evoluiu, vertiginosamente, para uma ditadura.  

Os que defendem o quietismo partem da premissa de que sofremos uma derrota histórica. Concluem que a etapa histórica é contrarrevolucionária, e que uma recuperação da capacidade de iniciativa exigirá anos, senão décadas. Essa projeção confessa um pessimismo inconsolável. Paradoxalmente, é otimista sobre a possibilidade de um capitalismo regulado com “rosto humano” numa estratégia de frente-amplismo em defesa da democracia, mas cética em relação à capacidade de luta dos trabalhadores. A esquerda moderada subestima as consequências do possível acesso da extrema direita ao poder, e aposta na possibilidade de uma recuperação capitalista: (a) pelo investimento nas novas tecnologias – inteligência artificial, biotecnologias, nanotecnologias etc. – e transição energética; (b) em impostos sobre transações financeiras ou sobre bilionários para preservar o equilíbrio fiscal; (c) em redes de proteção social ampliadas para a miséria; (d) em renegociações entre os EUA e a China no marco das organizações do sistema ONU, para evitar novas guerras como na Ucrânia e em Gaza.   

A análise dos que defendem a ofensiva permanente é oposta pelo vértice. Partem da premissa de que a derrota diante do bolsonarismo em 2018 foi, essencialmente, eleitoral, e as forças da classe trabalhadora e do povo oprimido, se não estão intactas, tampouco impõem uma condição defensiva. A situação evolui para uma crise muito grave em função dos limites impostos pelo arcabouço fiscal, e não podemos hesitar: há que se posicionar na oposição ao governo Lula ou, pelo menos, equilibrar a agitação entre a denúncia do bolsonarismo e a denúncia do governo. A esquerda ultrarradical subestima o fôlego da corrente neofascista e aposta na iminência de situações, pelo menos, pré-revolucionárias: (a) prevê o horizonte inevitável de uma crise econômica internacional, em função da superacumulação de capital em títulos de dívidas empresariais e estatais etc.; (b) avalia que a crise dos regimes democrático-liberais, acossados pelas sequelas da estratégia neoliberal, vai se aprofundar com incontornável desgaste institucional e perda de um mínimo de legitimidade nas massas; (c) embora dividida sobre os alinhamentos campistas com Putin e/ou China, considera provável um confronto Ocidente versus Oriente, um cenário catastrófico, em função da fragilização norte-americana.

Por último, na esquerda socialista estamos aqueles que consideramos que ocorreu uma derrota político-social grave, de tipo estratégico, que avaliamos a situação brasileira ainda como reacionária e temos a expectativa de um período defensivo, em que a resistência precisa acumular forças para ter capacidade de contraofensiva. Qual deve ser a tática? Unidade de esquerda, ou seja, com o PT. E exigências e, também, críticas ao governo Lula. O maior perigo permanece sendo o retorno do bolsonarismo e, no mundo, governos de ultradireita com o projeto de impor uma derrota histórica, como Milei na Argentina e Trump, se vencer. Há burgueses no governo, mas é um governo de gestão anormal dos negócios, porque tem na liderança Lula, e o maior partido é o PT. Essa contradição tem importância “galáctica”.

A imensa maioria da base social da esquerda deposita esperança no governo. Essa expectativa é decisiva para a definição de uma tática justa. Porque a questão estratégica central que permanece indefinida é que o bolsonarismo ainda não foi derrotado. Bolsonaro está na defensiva, mas a extrema-direita permanece muito forte. O que está em disputa é saber se o governo Lula será ou não um ponto de apoio para mobilizações que derrotem os neofascistas. Impulsionar a Frente Única de Esquerda contra os bolsonaristas continua central. Nesse contexto, não se deve participar, nem apoiar incondicionalmente o governo. Mas, diante da ameaça neofascista, não se pode estar incondicionalmente contra o governo. O caminho da mobilização social é a chave para desbloquear a situação.

(*) Valério Arcary é historiador e professor titular aposentado do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo.