Tarifaço trumpista contra o Brasil zera o jogo político
Interferência interna na política brasileira por Trump coloca EUA em choque com o Brasil como nunca na História, gerando oportunidade única para campo progressista.
Se no Brasil até o passado é incerto, como costumam dizer por aí, estávamos ousados e caminhando inercialmente para um jogo de cartas marcadas em 2026. O governo Lula estava nas cordas, Bolsonaro caminhando para o abatedouro e Tarcísio de Freitas surgindo como uma “solução racional” para a presidência – só que tudo era para sempre, até que não foi mais, como no célebre livro do antropólogo russo Alexei Yurchak.
O terremoto dos efeitos do tarifaço trumpista sobre o Brasil – feito deliberadamente para safar Bolsonaro – mudou tudo, depois de semanas de embate do governo contra o Congresso, no qual Lula se saiu vitorioso diante da opinião pública. Em si mesmo, o tarifaço ter atingido o Brasil não é novidade alguma, mas não deixa de causar surpresa que os brasileiros tenham ficado surpresos – ou simplesmente tenham preferido acreditar que isso não aconteceria.

10.07.2025 – Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, durante entrevista para o Jornal Nacional, no Palácio da Alvorada. Brasília – DF.
(Foto: Ricardo Stuckert / PR)
É claro, não deixa de ser uma novidade que Trump use do seu duvidoso mecanismo de chantagem internacional com viés explícito de mudança de regime e intervenção em um país estrangeiro. Mas cedo ou tarde isso aconteceria e nenhuma conversa ao pé do ouvido entre Fernando Haddad e Scott Bessent seria capaz de mudá-lo – os pretensos adultos na sala da Frente Ampla brasileira, na verdade, eram as crianças ingênuas do conto de fadas.
O impacto dessa medida atinge, principalmente, o estado de São Paulo, maior economia subnacional brasileira, principalmente no que diz respeito ao seu dinheiro velho: a cafeicultura e a citricultura, mas também o que resta de uma indústria nacional, cujo principal foco é a exportação com destino aos Estados Unidos – e não a China, como se tornou usual dizer. A posição torpe de Tarcísio de Freitas era previsível, mas pegou seus apoiadores no contrapé.
O ataque ao Brasil vem no contexto de uma nova rodada de tarifas, inclusive atingindo a União Europeia e o México. Contra o Brasil, obviamente, o governo americano não tem muito o que alegar no sentido de “prejuízo comercial”, ainda que isso seja mencionado mentirosamente por Trump, uma vez que os EUA possuem um fluxo de comércio favorável com o Brasil, seja pelo superávit ou pela natureza das trocas.
O jogo infinito de erros do Itamaraty
Uma lição que o tarifaço ensina é que nos últimos anos o Itamaraty fez uma aposta ativa nos democratas nos Estados Unidos, e depois em um jogo murista na relação com Trump – supondo que, se não fizesse muito barulho, não avançasse com a integração via Brics e coisas do tipo, o resultado seria passar despercebido diante dos conflitos globais. Se estivesse errado, o Itamaraty só teria se movido devagar demais em relação ao Brics.
Em tempos de hipertrofia do Itamaraty não só na execução como também na formulação da política de relações exteriores – por um viés cada vez mais liberal, embora queira parecer técnico, profissional e “neutro” –, o que aconteceu foi a queda na armadilha descrita por Churchill: arcamos com a desonra para não ter a guerra – aqui, comercial – e no fim arcamos com ambas, sem saber exatamente o que fazer.
Nada disso é à toa, contudo. Menos do que um erro, o que se tem visto é um projeto, no qual o Itamaraty se move de acordo com uma fração da burguesia disposta a se converter na agroexportação ou na mineração para exportação. Mas quem realmente é escutado no Itamaraty é a parte liberal da elite tradicional, que depois de uma breve incursão industrial voltou à sua vocação dos tempos de colônia.
O que poderia ser o melhor interesse do Brasil acaba dobrado a uma sujeição cultural e ideológica a um Ocidente que, ironicamente, está morrendo com os avanços da extrema direita. Não há mais espaço para isso. O irônico é que a fração dessa burguesia que foi atingida por Trump é aquela mais longevamente integrada aos Estados Unidos – principalmente quando pensamos em São Paulo.
A tese da neutralidade que, no fim do dia, se revela americanista, cai por terra – se a ideia era ter uma ambivalência estratégica para no crepúsculo arrancar concessões americanas e se pôr ao lado de Washington como nos anos 1940, os estrategos do Itamaraty esqueceram de algo importante: os Estados Unidos de Trump, ou mesmo os de Biden, não são o de Franklin Roosevelt, talvez muito pelo contrário.
2026, uma odisseia no espaço
As tentativas de culpar Lula pelo tarifaço podem soar tão inócuas quanto pueris. Nada garante que recuar para obter o fim das tarifas não produziria efeitos até piores, muito embora grande parte da pressão venha de citricultores, os quais demandam rapidez para escoar sua produção – mas mesmo cafeicultores, que podem esperar mais, vão ter suas previsões de lucros severamente afetadas. A solução passará por outros mercados, inclusive o interno.
O fato é que a submissão de Tarcísio ao bolsonarismo, quando há uma disputa óbvia entre ele e o próprio Eduardo Bolsonaro – e talvez até Michelle – pela vaga da extrema direita em 2026, mostra um cálculo tosco: não repetir Doria e soar como traidor, mas ignorando que os ânimos da elite paulista são diferentes daqueles de 2020, ainda mais correndo riscos como não acontecia, pelo menos, desde 1929.
Vendido como figura racional e moderada – quando sempre foi um ultraconservador, embora cauteloso nas palavras –, Tarcísio de Freitas se revela também o poste capaz de se mover apenas no vácuo da “polarização”. Tudo ia às mil maravilhas, e certamente uma vitória de Kamala Harris faria melhor ao carioquíssimo governador paulista do que a do Trump, cujo boné ele tratou de usar logo após a vitória.
Nas cordas por uma série de fatores, o terceiro governo Lula vê alguma luz no fim do túnel – e desta vez não é um trem. Trump está impopular dentro dos Estados Unidos, mas nada supera o dedo podre do presidente americano como grande eleitor internacional – e a extrema direita de Canadá, Romênia ou Austrália que o digam. Ainda, confrontar Trump faz bem para a popularidade de líderes, vide Claudia Sheinbaum no México.
Aliás, embora parte do eleitorado americano ainda pague para ver o que será do resto do governo Trump, suas políticas, individualmente consideradas, ou sua atuação em temas específicos, como a economia, já são amplamente desaprovadas. Para Lula, tanto melhor, mas não é possível contar sempre com a boa fortuna, ainda mais quando se renuncia à própria – e nada desprezível – virtù.























