Sábado, 6 de dezembro de 2025
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Questionado sobre as mortes provocadas por bebidas adulteradas com metanol, Tarcísio de Freitas respondeu: “vou me preocupar quando falsificarem Coca-Cola.” Falou sorrindo, com a leveza de quem acredita estar fazendo graça. A intenção era parecer espirituoso, afastar-se de um tema pesado. O efeito foi devastador. A ironia expôs um traço de caráter e um modo de governo: o distanciamento completo entre o Estado e as pessoas que dependem dele para viver.

Enquanto famílias enterram seus mortos e outras esperam notícias de parentes em coma, o governador debocha. A tragédia, que exige investigação, fiscalização e amparo, é tratada como piada de corredor. É nesse gesto que se revela a essência do governo que ele representa: o da indiferença irresponsável, que confunde frieza com eficiência e considera a empatia um desperdício de tempo.

A fala de Tarcísio ficará como marca de uma era em que a indiferença fica vertida em linguagem oficial. Um governador que debocha da morte pública que revela sem filtros quem é e o que representa: um Estado que abandonou o seu povo e, quando confrontado com o resultado disso, acha graça. <br> (Foto: João Valério / Governo do Estado SP)

A fala de Tarcísio ficará como marca de uma era em que a indiferença fica vertida em linguagem oficial. Um governador que debocha da morte pública que revela sem filtros quem é e o que representa: um Estado que abandonou o seu povo e, quando confrontado com o resultado disso, acha graça.
(Foto: João Valério / Governo do Estado SP)

A frase é o reflexo de uma gestão que desmantela estruturas públicas e depois estranha o colapso. Uma piadinha liberal. A precarização da vigilância sanitária, a falta de fiscais, a lógica de cortes e terceirizações criaram o terreno fértil para o desastre. Quando o poder se ausenta, o crime  ocupa o espaço. O metanol nas garrafas é o preço de um Estado esvaziado em nome da austeridade.

A menção à Coca-Cola é mais do que uma tentativa de humor. É uma linha de classe desenhada em poucas palavras. A marca global representa o consumo seguro, industrial, respeitável – o mundo dos que importam. As bebidas populares, vendidas em garrafa plástica e sem rótulo, pertencem ao território do descartável, onde a vida vale pouco e a morte é apenas estatística. Tarcísio parece incapaz de perceber essa divisão porque faz parte dela.

O problema não é o tom da piada, é a naturalidade com que ela foi dita. É uma fala de quem não vê nada de estranho em ignorar o sofrimento alheio. A autoridade pública que ri de uma tragédia mostra o quanto o desprezo se institucionalizou. A desumanização in natura. O governador acredita que o cargo o autoriza a se proteger da sensibilidade – como se o poder lhe desse salvo conduto.

O episódio é um retrato perfeito de um modo de governar que se espalhou pelo país: o gestor que não governa, apenas administra. O discurso da técnica serve de cortina para esconder a renúncia ao dever político. No lugar da solidariedade, o sarcasmo. No lugar da responsabilidade, o desdém. A política convertida em planilha e frases de desdém e humor duvidoso.

A repercussão foi imediata – indignação, repulsa, ironia. Mas o problema não se encerra na reação popular. O que está em jogo é o tipo de sensibilidade que esse governo normaliza. Quando o riso substitui o luto e a frieza é exibida como virtude, a degradação moral do poder já deixou de ser risco, é naturalizada. Nós já vimos esse filme.

A fala de Tarcísio ficará como marca de uma era em que a indiferença fica vertida em linguagem oficial. Um governador que debocha da morte pública que revela sem filtros quem é e o que representa: um Estado que abandonou o seu povo e, quando confrontado com o resultado disso, acha graça.

Tarcísio não é apenas tosco e mau caráter, ele é o retrato de uma era. Um meme do horror.

(*) Ricardo Queiroz Pinheiro é bibliotecário, pesquisador e doutorando em Ciências Humanas e Sociais.