Sábado, 6 de dezembro de 2025
APOIE
Menu

A última coluna, publicada há menos de uma quinzena, já parece o eco distante de um outro período. Talvez isso justifique o recurso, mais literário do que histórico, à imagem de Roma sitiada pelos bárbaros de Alarico. Mas vale lembrar que há sempre o perigo do anacronismo. E que certamente não foi Lula quem atravessou o Rubicão.

Desde aquela longínqua coluna, Trump confirmou o tarifaço contra o Brasil; mentiu descaradamente sobre a balança comercial dos dois países; cometeu uma ameaça grosseira contra o judiciário brasileiro e, com isso, provocou um rearranjo das placas tectônicas da política brasileira que, tenhamos claro, está longe de terminar.

Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, Encontro com a Sociedade Civil. Centro Cultural Matucana 100. Santiago - Chile. (Foto: Ricardo Stuckert / PR)

Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, Encontro com a Sociedade Civil. Centro Cultural Matucana 100. Santiago – Chile.
(Foto: Ricardo Stuckert / PR)

Os primeiros terremotos, bem altos na escala Richter da política, davam sinais de um movimento combinado de fortalecimento da posição de Lula, isolamento progressivo do bolsonarismo e uma poderosa remexida nas expectativas da direita pretensamente moderada para 2026.

Se para Lula a posição de estadista defensor da soberania nacional é um papel assumido sem maiores dificuldades, mais surpreendente foi a progressiva, mas rápida, adesão da imprensa corporativa. Tanto à defesa de um nacionalismo institucional que parecia ter desaparecido da política brasileira quanto a uma crítica ao total desgoverno da reação dos principais candidatos a sucessor do capitão.

Alguém chegou a comentar nas redes sociais que o famoso editorial do Estadão do dia 09/07, Coisa de Mafiosos, parecia ter sido psicografado de Oliveiros S. Ferreira. Para quem não tem idade para lembrar, era um dos últimos indivíduos de espécie em extinção: um cientista político de direita com sólida formação intelectual.

Folha e O Globo ainda estavam paralisados pela surpresa, mas tiveram que reagir à onda de choque provocada pelo Estadão e rapidamente se alinharam na defesa do país, na crítica, àquela altura inevitável, aos bolsonaros pai e filhos e no desapontamento com Tarcísio. Doloroso, certamente, na medida em que Zema e Caiado ainda não são levados a sério nas precificações paulistas e cariocas.

Para os chatos como eu, que temos brigado com os velhos e novos palpiteiros esquerdistas, tem sido muito divertido verificar como todos, a maior ou menor contragosto, se sentem obrigados a cerrar fileiras.

Alguns, mais sensatos, se preocupam com as ações que Haddad e Lula devem começar a preparar na área econômica, dado que não é prudente apostar na diminuição da paranoia de Trump, especialmente agora que o cerco em torno dos arquivos de Epstein vem crescendo.

Outros, que começaram, décadas atrás, na esquerda e hoje disputam o troféu de cadáveres insepultos (mas bem remunerados) do comentarismo nacional, nos oferecem bons motivos para sorrisos, com as admissões contra a vontade, de que “é hora de ser brasileiro”! (sic), pérola de Fernando “tanguinha de crochê” Gabeira, ou o lamento de que “Trump tirou Lula do abismo” do Demétrio ex-trotskista Magnoli. 

Na área governista os acertos do destaque a Alckmin como negociador mor e as falas cada vez mais assertivas e didáticas de Tebet parecem indicar que, além da consolidação de Haddad como o segundo no poder, Lula já está montando seu time para 2026.

E não deixa de ser divertido acompanhar os ensaios mal ajambrados de crítica a Lula pela antecipação da campanha eleitoral quando até as pedras amigas do Mino Carta são obrigadas a reconhecer que essa decisão foi tomada pela plutocracia paulista, mais uma vez iludida com Dória (eles não aprendem?) e escancarada pelos aprendizes de feiticeiro de Alagoas e Amapá. 

Além da posição indiscutida de estadista, que aliás, não lhe custa nenhum artificialismo, Lula ganhou nesse processo, até agora pelo menos, a perspectiva de aprovação da mudança no IR, rapidamente oferecida pelo profissional Lira. Aprendemos que bandidos também tem seus moleques deslumbrados e seus adultos na sala. 

Descobrimos também que Luís “Mato no Peito” Fux não tinha recebido o selo de fidelidade por iniciativa isolada da filial de Curitiba, mas tinha o appointment da matriz em Langley, Virginia. Será divertido verificar qual será seu voto (o único que falta) na decisão da tornozeleira para o ex-capitão, ex-presidente e ex-liderança da direita brasileira. 

Mas o aprendizado mais relevante foi o que deveria ter sido o óbvio desde o início. Trump pode ser louco, mas não rasga títulos de milhões de dólares. Há notícia de que alguém soube antecipadamente das tarifas e realizou uma operação de compra e venda de 3 a 4 bilhões (isso mesmo, revisão, bilhões com B) de dólares. No jargão do mercado, trata-se de informação privilegiada, e é crime. 

Depois da denúncia soube-se que o mesmo ocorreu no anúncio das tarifas contra a África do Sul e o Canadá. Isso traz uma explicação mais plausível do que hesitação e inconsistência para a coreografia trumpista ao anunciar e recuar tarifas. O que ele perde em credibilidade, alguém – que só ele sabe – ganha em milhões, talvez bilhões, de dólares.

Mas é bom voltar a Roma para lembrar que, como recurso literário, um sítio pode ser de instrutivo a divertido. Mas na vida real provavelmente significará destruição de riqueza, fome, violência institucional e física e até mortes. Nada na conjuntura internacional nos autoriza a acreditar no melhor. 

(*) Carlos A. Ferreira Martins é Professor Titular Sênior do IAU USP São Carlos