Sábado, 6 de dezembro de 2025
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Quando falamos de tecnologia, nosso pensamento é frequentemente condicionado a um imaginário determinado por metais escovados, luzes neon e referências cinematográficas que remetem a objetos high-tech. Isso de fato representa parte do que efetivamente constitui o horizonte tecnológico, mas frequentemente acaba descolando a própria tecnologia de sua constituição e existência histórica e socialmente determinada. Frequentemente é preciso relembrar que as tecnologias carregam e expressam, em sua própria forma, a dinâmica da sociedade de classes, servindo à reprodução de sua estrutura e sendo eixo central da dinâmica que enquadra na tela da ideologia nossa própria relação com a realidade. 

Um termo que vem sendo muito utilizado para apreender o uso dessas tecnologias nas dinâmicas de disputa política é a noção, muitas vezes vaga, de narrativa. As narrativas seriam constantemente produzidas e disputadas nas mídias digitais, ambientes que teriam supostamente democratizado a circulação de opiniões uma vez descentralizado o domínio das mídias tradicionais hegemônicas. Setores progressistas deveriam então, nessa perspectiva, se organizar para disputar nas plataformas a efetividade narrativa – que, por sua vez, pode ser analisada por métricas de dados e devidamente avaliado pelas perspectivas de gestão que são tão caras à pós-política do progressismo (neo)liberalizado. 

Megaoperação da Polícia do Rio de Janeiro no Complexo do Alemão em 28 de outubro de 2025 já é a mais letal da história, com ao menos 60 mortos. <br>(Foto: RS/Fotos Públicas)

Megaoperação da Polícia do Rio de Janeiro no Complexo do Alemão em 28 de outubro de 2025 já é a mais letal da história, com ao menos 60 mortos.
(Foto: RS/Fotos Públicas)

Obviamente, tomar a efetividade das redes como um fim em si mesmo não faz parte de qualquer política verdadeiramente à esquerda, mas isso não significa simplesmente debandar e ignorar a existência dessas infraestruturas digitais que constituem parte inescapável da sociabilidade contemporânea. Ao menos nos últimos 15 anos e, mais especificamente, após as jornadas de junho de 2013, seguidas pela ascensão de uma extrema-direita antes latente, perspectivas críticas retomaram análises sobre a técnica, atualizando-as à lógica digital dos monopólios que passaram a dominar a esfera digital globalizada nesse começo de milênio. 

Com o passar dos anos tornou-se cada vez mais evidente qual o tipo de narrativa é favorecida pela própria arquitetura das principais mídias digitais: conteúdos apelativos, simplistas, maniqueísmos, falsificações, hiper-estímulos… Tudo isso obviamente cria as condições objetivas ideais para se fomentar uma subjetividade solipsista, potencialmente fascistizável, em espaços de monopólio midiático extremamente tendenciosos, onde a naturalização da extrema-direita parece mascarada por uma suposta neutralidade técnica que, na verdade, é artificialmente produzida, agora pela supressão e curadoria automatizada de conteúdos por algoritmos opacos que servem fundamentalmente aos fins políticos e econômicos de seus proprietários e aliados. 

Essa dimensão é obviamente explorada, de forma sistemática, pela extrema-direita internacional, e no caso brasileiro não seria diferente. Ações coordenadas já se empilham, criando atmosferas ideológicas específicas para massas de usuários que são conduzidos por uma “narrativa” programática, onde a campanha eleitoral verte-se em marcha digital ininterrupta pela “disputa de corações e mentes”, onde o apelo ao medo, vertido em pânico moral, junto à produção de inimigos fantasmáticos através de enquadramentos enviesados da realidade ou pura e simples falsificação dão a tônica do cotidiano de avenidas, becos e vielas on-line, que passam a determinar a forma como a vida off-line é apreendida. 

Um exemplo disso pode ser visivelmente atestado ao conferirmos certos espaços digitais que servem ao ambiente ideológico programado pela extrema-direita, logo após as operações policiais encampadas na cidade do Rio de Janeiro pela polícia militar e civil, a mando do governador do Estado, Cláudio Castro, na última terça-feira (28). Um verdadeiro exército informacional é posto em campo, através de páginas que reproduzem a lógica do chamado “populismo penal” – já promovido pelos monopólios tradicionais de mídia, em programas como Cidade Alerta e afins –, porém agora extrapolada às últimas consequências, valendo-se da falta de regulamentação das redes para promover não só informações falsas, mas imagens sensacionalistas, conteúdos explícitos sem nenhuma moderação, podendo assim instaurar um verdadeiro pânico através das redes. 

Páginas com centenas de milhares de seguidores e conteúdos direcionados ao estado do Rio, assim como regiões, cidades e bairros específicos, entraram em um verdadeiro comportamento coordenado, veiculando imagens articuladas a um discurso específico, onde a ironia aos direitos humanos – já conhecido na extrema-direita como “defesa de bandido” – atualizou-se em uma verdadeira campanha (nem tão) velada para Cláudio Castro, com ataques ao governo federal (e algumas também, ironicamente, ao prefeito Eduardo Paes, além de saudosas da gestão Crivella) onde o próprio termo “vítima” torna-se chacota e a execução sumária por parte de agentes do Estado é celebrada sem o menor pudor por um público evidentemente fascistizado e entregue ao gozo pelo gore, que move uma base política ensinada a relacionar violência e descaso com pautas minimamente progressistas.

O assim chamado campo democrático, já imerso em uma gramática limitada que o cerca no horizonte simbólico de um progressismo liberal difuso, encontra-se por vezes perdido, por outras desesperado – o que se revela na tentativa ridícula de alguns quadros em simular a performance direitista, com a esperança ilusória de que alguns poucos conteúdos de esquerda imiscuídos nessa tentativa possam diferenciá-los radicalmente na forma. O pior, nessa tentativa, é a potencial naturalização de uma espécie de nacional-bolchevismo reeditado à realidade contemporânea que funciona como um neo-fascismo (mal) camuflado de esquerda. 

Nesse festival de horrores, a efetividade desse tipo de operação policial se revela: não só a organização de um palanque eleitoral para o governador do Estado feito de corpos empilhados e fuzis apreendidos, banhados em sangue, como suposta evidência de efetividade das incursões policiais – algo celebrado pelo oligopólio midiático tradicional da burguesia brasileira –, mas a intensificação de uma violência atmosférica, para usarmos o termo de Fanon, necessária à vida nacional de um país fundado pelo colonialismo, onde a lógica militarizada do Estado é a constante relação paranóica com um inimigo interno que precisa ser sempre produzido e reafirmado. Inimigo que obviamente será encarnado por determinações geográficas, raciais e classistas, mascaradas pela ideologia – e, por quê não, narrativa? – da guerra às drogas. 

Dentre tantas coisas, a efetividade da atual infraestrutura digital para imprimir determinada relação com a realidade social através da informação, é a sua atual condição, impregnada 24 horas, 7 dias por semana com o usuário, que em grande medida praticamente já não experimenta uma vida off-line. Soma-se a isso o que poderíamos chamar de modulação algorítmica dos afetos e das identificações, servindo muito bem à segmentação que interessa ao programa da extrema-direita internacional, fisiologicamente integrada ao monopólio das Big Techs. Os setores pretensamente democráticos e progressistas deveriam pressionar por uma regulamentação das redes que seja rígida, especialmente contra a permissividade de plataformas midiáticas internacionais à páginas e conteúdos fascistizantes, voltados à naturalização e promoção da violência de Estado.

Sabemos que esse cenário não parece ser o provável, mas seria uma displicência ignorarmos a necessidade e urgência de colocarmos esse ponto em debate. Setores progressistas que fizeram sua campanha eleitoral alertando sobre o fascismo e prometendo um combate ao bolsonarismo deveriam se preocupar não apenas em viralizar o próprio conteúdo nas redes, mas apresentar medidas efetivas de combate que devem atacar as próprias condições que tornaram possível sua realização. 

(*) Cian Barbosa é morador do Rio de Janeiro, sociólogo (UFF), doutorando em filosofia (UNIFESP) e psicologia (UFRJ). Pesquisa teoria do sujeito, crítica da cultura, violência, tecnologia, ideologia e digitalização; também é integrante da revista Zero à Esquerda, tradutor e ensaísta, além de professor e coordenador do Centro de Formação.