Sábado, 6 de dezembro de 2025
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Diferentemente do Brasil, os argentinos vão às urnas no meio do mandato presidencial para eleger parlamentares. Funciona quase como nos Estados Unidos, salvo que no país vizinho são eleitos somente metade da Câmara, embora também um terço do Senado, nessa ocasião. Em suma, não chega a ser como o quase plebiscito das midterms americanas, nas quais toda a Câmara muda, mas é algo relevante.

Eleito em 2023, com uma larga votação em 2º turno, Javier Milei conseguiu catalisar o voto de rejeição ao peronismo que foi, invariavelmente, para a direita. Naquele 1º turno, esses votos se dividiram entre ele e Patrícia Bullrich, à época do Proposta Republicana (PRO) de Maurício Macri, hoje sua ministra e colega de partido. Nas legislativas, seu partido ficou em segundo, mas a direita se dividiu; nas legislativas de 2021, o La Libertad Avanza de Milei era irrelevante.

O presidente da Argentina, Javier Milei, discursando na Conferência de Ação Política Conservadora (CPAC) de 2025 no Gaylord National Resort & Convention Center em National Harbor, Maryland. <br> (Foto: Gage Skidmore / Flickr)

O presidente da Argentina, Javier Milei, discursando na Conferência de Ação Política Conservadora (CPAC) de 2025 no Gaylord National Resort & Convention Center em National Harbor, Maryland.
(Foto: Gage Skidmore / Flickr)

Não por acaso, o atual presidente argentino tem uma bancada nanica, quase irrelevante, e depende dos votos de apoiadores dúbios e de bancadas difusas – as quais se dobram à força gravitacional do oficialismo, uma mistura do que chamamos de governismo com fisiologismo no Brasil; daí surge a estranha “oposição dialoguista”, que muitas vezes empresta os votos necessários para ele governar.

Dito isso, as eleições legislativas em âmbito provincial em Buenos Aires, disputadas há poucos meses, foram marcadas por uma virada impressionante dos peronistas contra o partido de Milei – que embora tenha simplesmente engolido o PRO de Macri, monopolizando o voto da direita, acabou perdendo a votação quando as pesquisas davam, durante muito tempo, a vitória para o partido do presidente. Agora, há dúvidas e muita apreensão.

Milei, um fenômeno sui generis

As explicações sobre Milei são, normalmente, mecânicas: ele seria o Bolsonaro argentino. Mas esse não é o caso. Apoiado pelos mais pobres e, ao mesmo tempo, pelos mais ricos – assim como apoiado pelos mais jovens e pelos mais velhos –, o presidente argentino é diferente do ex-presidente brasileiro na composição de classe do seu movimento; sua proposta, de liberdade radical dos mercados, lembra mais o MBL do que o hoje condenado e inelegível Bolsonaro.

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Candidato dos ricos e poderosos, que cooptaram os pobres e precarizados da Argentina, excluídos da economia do dólar – o mundo ao qual aos reles mortais, no máximo, participam lateralmente –, Javier Milei tem a franca rejeição da classe média, daqueles que estão em idade intermediária e polariza brutalmente os gêneros; as mulheres lhe rejeitam brutalmente, enquanto os homens são seus fiéis apoiadores.

A estranha combinação social que manteve Milei estável; enquanto agia como um rolo compressor, parece ter sido perdida gradualmente, com a ruptura com sua vice, Victoria Villaruel, as denúncias que envolvem sua irmã Karina com corrupção menor, e até o envolvimento de aliados seus com o tráfico de drogas – a vida das pessoas, apesar de certa esperança, no entanto, não melhora, e os sacrifícios sociais foram tremendos.

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O povo, que não come PIB, fica atônito com o resultado da austeridade brutal de 2024: a economia cresce, mas sem distribuir, muito pelo contrário. Ainda assim, mesmo os índices macroeconômicos parecem balançar, com o risco de desvalorização do peso argentino e a falta de dólares – que em tese será compensada pela intervenção do Tesouro Americano via governo Trump, mas há dúvidas.

A popularidade de Milei, portanto, ruiu, depois de animar neoliberais, livre-mercadistas e libertários do mundo todo: antes, ele parecia um fenômeno incrível, capaz de tornar a austeridade, mesmo na sua faceta mais radical, em algo popular e capaz de vencer eleições. Virou, até mesmo, o exemplo para o governador paulista e presidenciável Tarcísio de Freitas, na sua desejada campanha presidencial, em substituição ao inelegível Capitão.

O peronismo contra-ataca?

A virada recente nas legislativas provinciais de Buenos Aires, sem dúvida, deu novo fôlego para o peronismo; embora tenha sido mais uma vitória de Axel Kicillof, governador da província e pleiteante à presidência – se esse fenômeno se espraia a todo o peronismo – ou todos os peronismos – isso é uma boa questão. As pesquisas de Buenos Aires cederam a favor do peronismo na reta final; agora, temos incerteza.

Kicillof é um líder local que pode, sem dúvida, se tornar nacional. Mas isso ainda não se concretizou. Com Cristina Kirchner em prisão domiciliar, as aparições da liderança peronista são sempre de um colegiado. Mesmo Sergio Massa, candidato derrotado em 2023, aparece nas fotos – embora ele sequer seja filiado ao Partido Justicialista propriamente dito.

O resultado é que as pesquisas nas províncias muitas vezes são ruins e incertas, e pesquisas nacionais para as legislativas podem esconder detalhes importantes – sobretudo no cálculo e distribuição das cadeiras legislativas. Antes, contudo, Milei estava nacionalmente mais popular e isso se refletia de maneira certa nas legislativas. Em Buenos Aires, lembremos, houve forte abstenção, e isso ajudou o peronismo.

O acordo salvador de Trump tampouco tem gerado resultados sustentados no câmbio argentino, enquanto o presidente americano vive às turras com os sojicultores americanos – antes, apoiadores e financiadores animados do trumpismo, mas hoje críticos, ainda mais considerando como a ajuda a um país concorrente internacional pode lhes ser fatal, ainda mais depois que a queda de braço com o Brasil lhes fechou o mercado chinês.

A continuidade do governo Milei dependerá da economia argentina que não anda, mas formar uma maioria legislativa seria central. Isso, contudo, dificilmente acontecerá, apesar do provável aumento de cadeiras do seu partido. Uma vitória relativa poderá dar um ar extra, mas o efeito só será psicológico – e insuficiente para fazer frente à tempestade que parece formada no horizonte.

(*) Hugo Albuquerque é jurista e editor da Autonomia Literária.