Sábado, 6 de dezembro de 2025
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Se as análises dos filósofos iluministas do século 18 e 19 que afirmavam, categoricamente, não haver história em África, precisavam de uma prova concreta, as revoluções no Haiti e as lutas de libertação nacional no século 20 abalaram por completo essas concepções – ainda que, vez ou outra, elas retornem para o palco das ágoras editoriais e digitais. Ao mesmo tempo, certa linha de pensamento pan-africanista, alinhados mais à direita, e com um verniz militante, também tem uma concepção de história africana monolítica, pautada pelas grandes conquistas do continente em tempos antigos, mas colocando os fatos em categorias a-históricas. Existe, nesse lado da ponte, um problema de práxis risível, que, no fim, torna o projeto desses grupos em algo especificamente culturalista.

Certa vez, Frantz Fanon, que completaria 100 anos no último 20 de julho, disse que “os intelectuais colonizados, não podendo fazer amor com a história presente de seu povo oprimido, não podendo se maravilhar com a história de suas barbáries atuais, decidiram ir mais longe (…) e foi numa alegria excepcional que descobriram que o passado não era de vergonha, mas de dignidade, de glória e de solenidade.” Essa metáfora sobre a busca da gloriosa África, sem contradições, e bela em seu passado pré-colonial, ilustra bem um dos objetivos propostos por Kevin Ochieng Okoth em seu clássico instantâneo, África Vermelha.

Combatentes da FRELIMO, a Frente de Libertação de Moçambique, cuidam de orfãos em uma escola na província de Cabo Delgado, Moçambique. 01/01/1972. (Foto: N Basom / UN Photo)

Combatentes da FRELIMO, a Frente de Libertação de Moçambique, cuidam de orfãos em uma escola na província de Cabo Delgado, Moçambique. 01/01/1972.
(Foto: N Basom / UN Photo)

A obra, com pouco mais de 200 páginas, é uma potente arma que visa menos os racistas e colonialistas, colocando fôlego em discussões no interior dos movimentos negros. O autor não está tão preocupado em provar a humanidade do negro, mas sim contar a história de uma política avassaladora – a união entre o pan-africanismo, o continente africano e o marxismo –, mostrando que, dessa relação, surgiram os grandes feitos da libertação e independencia dos países africanos. Mas o livro não é uma simples celebração. Figuras como Patrice Lumumba, Kwame Nkrumah, Amílcar Cabral, Agostinho Neto, Aimé Césaire e Maryse Condé passam pelo microscópio de Okoth, que analisa os limites, os erros, as divergências e as contradições das práticas desses grandes líderes políticos do século 20, além das aplicações práticas do chamado socialismo africano, e da elite neocolonial dos países recém-independentes. Torna-se, então, em certa medida, um acerto de contas com as experiências da libertação nacional e da construção do socialismo em África.

Por outro lado, Kevin desmembra todo o pensamento da Escola de Estudos Decoloniais e o Afro-Pessimismo – em minha opinião, o ponto alto do livro –, sendo esse último movimento uma das modas mais recentes dos movimentos negros do norte-global, que tem ecoado pelos cantos do mundo. Se, em certa medida, a decolonialidade tem um papel fundamental na construção de um novo humano, um novo negro – afinal, almejamos nada menos do que libertar o homem de cor de si mesmo –, quando apartado da luta política concreta, se torna apenas um macete que, no fim, deseja descolonizar as mentes, as instituições e os saberes, evitando desmantelar o problema principal: o capitalismo e o imperialismo. No caso do Afro-Pessimismo – que Okoth vai chamar de AP 2.0 (Afro-Pessimismo 2.0) – podemos encontrar uma infinidade de problemas. O principal deles é a negação dialética da história, que torna o negro como único e grande Outro da humanidade, desconsiderando as mudanças estruturais que tornaram árabes, chineses, coreanos e outros povos em povos racializados, tão passíveis quanto ao negro de serem colonizados, exterminados, e sofrerem toda sorte de racismo. Um exemplo prático disso pode ser observado nas reflexões de Frank B. Wilderson III, um dos principais teóricos do AP 2.0. Além disso, ambos os campos – Afro-Pessimismo e Estudos Decoloniais – têm sido tomados pelas universidades neoliberais, principalmente nos Estados Unidos, produzindo o que Kevin chama de anti-política.

Daí a importância de África Vermelha para o debate atual sobre raça e revolução, num momento em que a ascensão de Ibrahim Traoré, em Burkina Faso, tem levantado discussões acaloradas sobre as lutas anti-coloniais, para não falar dos protestos populares na Nigéria e Angola. No Brasil, o livro pode ser um dos instrumentos de mobilização de certas camadas do movimento negro, perdidas em teorias insuficientes, e em práticas acorrentadas ao governismo, minando uma possível organização de classe com rosto negro, como é a maior parte do Brasil. O neo-freyrianismo dos debates sobre parditude também tem ganhado fôlego, o que demonstra como as teses sobre a questão racial estão longe serem escritas em pedra.

Kevin Ochieng Okoth consegue demonstrar como teoria e prática consolidaram alguns acontecimentos na África e na diáspora negra, e se apodera do arsenal indispensável dos revolucionários africanos e afro-diaspóricos, para dizer: o marxismo-leninismo – e, em certa medida, o pensamento do Presidente Mao Tsé-Tung – ainda são a melhor ferramenta teórico-prática não apenas para interpretar a África e a realidade negra, mas, principalmente, paras transformá-las em vermelhas, em aliança com os demais povos oprimidos – como no espírito de Bandung.

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África Vermelha: resgatando a política negra revolucionária
Lançamento: 2025
Autor: Kevin Ochieng Okoth
Número de páginas: 207
Editora: Boitempo

(*) Marco Aurélio, mais conhecido como Marcola, é estudante de história e fotógrafo documental nas horas vagas. Escreve e pesquisa o rap, o samba e outros temas da cultura popular brasileira.