Sábado, 6 de dezembro de 2025
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A Emenda Constitucional (EC) nº 132 de 2023 estabeleceu no Brasil uma nova sistemática para a tributação do consumo de bens e serviços, baseada em um modelo de Imposto sobre Valor Agregado (IVA). O novo sistema introduzido é composto por dois impostos: a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), de âmbito federal, e o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), subnacional, abrangendo estados e municípios. Este modelo substituirá PIS, Cofins, IOF-Seguros, IPI, ICMS e ICS, promovendo assim avanços estruturais que incluem a eliminação de legislações complexas, o fim da guerra fiscal via tributação no destino e a eliminação da cumulatividade da tributação. Além disso, proporciona transparência para o consumidor e beneficia estados e municípios mais pobres, ao transferir a arrecadação da origem para o destino.

A regulamentação desta reforma tributária é a questão central do Projeto de Lei Complementar nº 68 de 2024, atribuindo assim quais produtos e serviços terão alíquotas máximas, reduções e até mesmo imposto zerado. Essa organização é capaz de produzir impactos significativos em diversas áreas, abrangendo também as dimensões social, ambiental, de gênero e raça. É necessário destacar que o projeto rearranja uma carga tributária de aproximadamente R$ 1,3 trilhão, equivalente a 13% do PIB, representando 40% da arrecadação tributária brasileira, que é bastante regressiva (isto é, quem ganha mais paga menos). Assim, ainda que muito se fale sobre uma maior importância dos impostos sobre a renda e o patrimônio para promoção de justiça fiscal, o fato é que a configuração da tributação sobre o consumo impacta e muito a parte mais pobre da população.

A alíquota-padrão do novo regime tributário é de 26,5%, com diminuições de 30%, 60% e até 100% para determinados produtos ou serviços. A redução de 60% aplica-se, por exemplo, a serviços de saúde privada, insumos agropecuários e agrícolas, serviços de educação, produtos de higiene e limpeza. Os itens da cesta básica serão isentos em até 100% e ficaram estabelecidos na EC 132 como os seguintes: arroz, leite, manteiga, margarina, feijões, raízes e tubérculos, cocos, café, óleo de soja, farinha de mandioca, farinhas, açúcar, massas alimentícias e pão do tipo comum. Entretanto, o Projeto de Lei nº 64 pretende inserir também a carne, algo que merece uma análise mais detalhada e crítica.

Embora tenha sido uma promessa de campanha do presidente Lula, visando permitir que todo brasileiro possa consumir carne a um preço mais justo à renda da população, essa medida tende a beneficiar mais o agronegócio do que os consumidores. Primeiramente, porque estudos indicam que apenas uma pequena parte das reduções de alíquotas é repassada ao consumidor final, sugerindo que a isenção não resultaria diretamente em uma redução no preço da carne para a população. Na mesma pesquisa também foi apontado que a utilização de alíquotas diferenciadas não são um meio eficiente para redução das desigualdades, porque o benefício não é dirigido exclusivamente aos mais pobres. Todos, inclusive os mais ricos, acabam aproveitando a redução de preços.

Nesse sentido, outros instrumentos de política tributária poderiam ser muito mais eficientes para atingir a justiça fiscal. A própria ampliação do mecanismo de cashback, introduzido no sistema tributário brasileiro pela EC 132, poderia trazer mais efeitos sobre a redução da carga tributária para as pessoas de menor renda. A Oxfam Brasil [2] fez um alerta importante nesse sentido, destacando que o desenho atual do cashback, somado às exonerações em favor de serviços consumidos pelos mais ricos, permite beneficiar os mais abastados, garantindo assim uma política de concentração de renda, segundo a qual os pobres se limitam em um tímido teto para o cashback e os ricos se beneficiam de alíquotas privilegiadas em uma lógica regressiva, que lhes permite ganhar mais à medida do caráter luxuoso dos serviços de educação, saúde, advocacia e similares que consomem.

Alíquota sobre consumo de carne

Foto Ministério Público de Pernambuco
Configuração da tributação sobre o consumo de carne impacta e muito a parte mais pobre da população

Bom, se a redução da alíquota sobre a carne tem muito mais chance de virar margem de lucro para o agronegócio, assim como frustra a possibilidade de um sistema tributário mais equilibrado, ainda há um terceiro aspecto bastante importante, que é o ambiental. O incentivo ao consumo de carne é prejudicial ao meio ambiente, dado que a agropecuária é uma das principais responsáveis pela emissão de CO₂ no Brasil, superando até mesmo as emissões de combustíveis fósseis. O consumo elevado de carne está associado a modificação do solo, invasão de terras, queima de florestas e destruição de áreas de conservação. O impacto ambiental gerado pela produção agropecuária brasileira é expressivo. Segundo dados da SEEG (Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa), a agropecuária e a mudança do uso da terra foram responsáveis por 75% das emissões de gases de efeito estufa em 2022.

Um governo comprometido com a sustentabilidade e a mitigação das mudanças climáticas deveria reavaliar incentivos ao consumo de carne e promover uma transição para hábitos alimentares mais sustentáveis. A questão da carne, dentro da reforma tributária, é crucial não apenas pelo seu impacto econômico, mas também pelo seu efeito nas políticas ambientais e na saúde pública. A responsabilidade de um governo que visa garantir um futuro sustentável envolve educar a população sobre a necessidade dessas mudanças, inclusive na alimentação. Assim, a reforma tributária deve ser vista não apenas como uma ferramenta de ajuste fiscal, mas como uma oportunidade para promover um desenvolvimento econômico mais justo e sustentável.

(*) Bianca Valoski é doutoranda no Programa de Pós Graduação em Políticas Públicas da UFPR, dentro da linha de pesquisa em Economia Política do Estado Nacional e da Governança Global. É servidora da Câmara Municipal de São José dos Pinhais, onde trabalha com finanças públicas.