Quem vai taxar Odete Roitman?
No país em que ricos pagam menos impostos do que os mais pobres, projeto do governo de taxação das grandes fortunas é imperativo
Em janeiro de 1989, ano em que os brasileiros voltaram a eleger o presidente da República após duas décadas de ditadura militar (1964-1985), o país parou para responder à pergunta: quem matou Odete Roitman? 36 anos depois, a vilã entre as vilãs da teledramaturgia nacional está de volta com sua ojeriza ao Brasil. Vale Tudo, uma das novelas que melhor expuseram a “viralatice” da elite brasileira, tem como mote a tentativa, a qualquer preço, de ascensão social em um dos países mais desiguais do mundo.
No topo da pirâmide, sob o carisma de Deborah Bloch, Odete retorna sob outra configuração. É a mulher de 60 de 2025: linda, independente, sexualmente ativa e implacável contra os que tentam fazê-la de idiota. Mas, Odete continua vilã de novela e sua psicopatia permanece acrescida da retumbante ausência de empatia contra os 59 milhões de brasileiros que sobrevivem com salário-mínimo (R$ 1.518,00).
Assim como ela, o Brasil mudou nesses 36 anos. Lula, que naquele momento perderia as eleições para o caçador de marajás das Organizações Globo, está na metade do terceiro mandato, após uma saga de perseguições que incluiria um golpe contra sua sucessora, Dilma Rousseff, em 2016, e a sua prisão em 2018. Um golpe que teve um custo no bolso dos brasileiros. Em 2015, o índice de Gini, que mede a concentração de renda, variando de 0 a 1, estava em 0,524. Três anis depois, em 2018, com o desmantelamento das políticas sociais, ele atingiu um volume recorde em concentração de renda, batendo 0,545.
Já em 2024, segundo ano do terceiro governo Lula, o Gini caiu para 0,506, o menor já registrado pelo IBGE, apontando a correção do caminho já trilhado nos mandatos anteriores: aumento da renda nas faixas de menor rendimento, crescimento do emprego e fortalecimento de programas sociais.
Com isso, em 2024, o Brasil registrou a menor diferença entre os maiores e menores rendimentos desde 2012, início da série histórica da Pnad Contínua. No entanto, a desigualdade ainda é imensa. Segundo o IBGE, os 10% mais ricos da população receberam, em média, R$ 8.034 mensais, enquanto os 40% mais pobres ganharam R$ 601 — uma razão de 13,4 vezes. Em 2018, os mais ricos ganhavam 17,8 vezes mais do que os mais pobres.
No topo da pirâmide, o rendimento da elite econômica, o 1% mais rico recebeu, em média, R$ 21.767 por mês, valor 36,2 vezes maior que o rendimento dos 40% mais pobres.
Este é o Brasil de Odete Roitman. Porém, conforme os episódios avançam e a morte se aproxima, a elite que ela representa entra em outra mira, não de um revólver, mas da justiça tributária com o projeto de lei (PL 1087/2025) em tramitação no Congresso.

Débora Bloch interpreta Odete Roitman no remake de Vale Tudo
Divulgação/Globo
A proposta do governo
Após as imensas perdas que os brasileiros sofreram com o desmonte do Estado, “seria de bom tom”, como gosta de dizer Odete, cobrar dos que sustentaram tantos malefícios um pagamento justo. Mas não é o caso. O que o governo pretende é uma contribuição modesta do topo da pirâmide social para tirar do sufoco 10 milhões de brasileiros. A proposta visa corrigir uma anomalia tributária, herdada dos conchavos desde o começo da República, em uma espécie de “Bolsa Elite”.
Diversos impostos incidem sobre os brasileiros e, na média, eles acabam fazendo com que os mais ricos paguem menos e os mais pobres paguem mais. Isso acontece, em grande parte, pela incidência dos impostos sobre o consumo. Quem tem menos gasta 70% de sua renda comprando bens e serviços e, isso, proporcionalmente, faz com que os mais pobres paguem mais impostos do que os mais ricos.
Segundo o estudo Arqueologia da Regressividade Tributária no Brasil da Oxfam, considerando a totalidade dos impostos, os 0,1% mais ricos no Brasil destinam apenas 10% da sua renda aos tributos, enquanto os 10% mais pobres comprometem 32% de tudo o que recebem com eles.
Para corrigir isso, o governo propõe uma isenção no Imposto de Renda para os que têm renda mensal de até R$ 5 mil e convoca os que ganham acima de R$ 50 mil mensais, mais de R$ 600 mil ao ano, a pagarem uma alíquota mínima de 10%. Também terão benefícios os que têm renda entre 5 mil e 10 mil.
Renda não é patrimônio, é salário e a desigualdade brasileira é tamanha que apenas 0,06% da população brasileira, cerca de 141 mil pessoas e 0,13% dos contribuintes, serão atingidos pela medida. Com ela, 10 milhões de brasileiros serão beneficiados e serão injetados R$ 26 bilhões na economia até 2026.
A Oxfam aponta que oito em cada 10 ricos atingidos pela alíquota mínima são homens brancos e o segmento beneficiado pela isenção é composto por 44% de negros e 41% de mulheres.
A alíquota de 10% ainda é baixa se comparada à média internacional de 17%. Os países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), por exemplo, arrecadam via IR cerca de 8,5% do PIB. O Brasil arrecada apenas 2,5%. Ao mesmo tempo, a tributação sobre o consumo que atinge os mais pobres no país representa 14,8%, enquanto a média dos países da organização é de 9,7%.
Vale destacar que a discussão sobre as mudanças no IR é acompanhada por uma proposta de aumentar o Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), incluindo a taxação dos lucros e dividendos obtidos com os investimentos financeiros.
Bolsa Elite
Nos anos 1990, informa a Oxfam, leis como a 9.249/1995 e 9.250/1995 diminuíram a progressividade do IRPF e do IRPJ, reduziram esses impostos enquanto mantiveram a alta tributação sobre consumo e trabalho. Somados os tributos, o conjunto de isenções aos mais ricos custa aos cofres públicos R$ 830 bilhões por ano. Em 2024, o custo do Bolsa Família foi de R$ 168,3 bilhões garantindo a sobrevivência de 20,86 milhões de famílias brasileiras.
A proposta do governo também inclui a tributação de dividendos enviados ao exterior, escandalosamente livre de taxas. “Melhor que a Europa, só a Europa em alto-mar”, já dizia Odete.
É essa estrutura de isenções e privilégios ao longo dos séculos que garantiram a apenas 0,15% da população concentrar R$ 1,1 trilhão em renda, o equivalente a 14,1% do total nacional. Deste grupo, aponta a Oxfam, 81% são homens brancos, 19% mulheres e apenas 20% pessoas negras ou pardas.
Sim, Odete, apesar dos pesares, ainda é uma exceção. E ela não nasceu entre os herdeiros bilionários, ao herdar a TCA do marido, a empresa de aviação que era sombra do que se tornou sob o seu comando. Vez ou outra, inclusive, ela deixa escapar esse orgulho proletário para ressaltar a incompetência dos subalternos que a rodeiam. A novela não cita, mas não seria difícil imaginar sua influência no Parlamento brasileiro.
Manifestações estão ocorrendo e uma intensa campanha pelo Plebiscito Popular, com urnas físicas e também uma votação online, estão em curso até o mês de setembro. A luta também vem sendo travada nas redes sociais e, sobretudo, na imprensa, onde as Organizações Globo já viraram meme, com uma conversa mais ficcional do que a sua novela das oito. Ao apresentar a proposta do governo, em várias edições, sua ênfase não foi na justiça tributária, mas na ameaça de um suposto “nós contra eles”, que ela poderia gerar.
Só esqueceram de dizer que, neste caso, o “nós” representa 99,9% da população brasileira e o “eles” apenas 00,1%. Daí a pergunta que não quer calar: quem vai taxar Odete Roitman?























