Sábado, 6 de dezembro de 2025
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“A queda do céu”, de Davi Kopenawa & Albert Bruce, apresenta a trajetória de colaboração entre o antropólogo e o líder indígena Yanomami, evidenciando o compromisso do projeto com a escuta sensível e a preservação da densidade conceitual e poética das palavras do xamã. O livro é descrito como uma combinação entre relato autobiográfico, manifesto cosmopolítico e autoetnografia xamânica, atravessado por registros diversos como visões, sonhos e denúncias. O texto não é apenas um testemunho de vida, mas um esforço deliberado de Davi para fazer suas palavras ecoarem além da floresta, com o objetivo de alertar sobre as ameaças que pairam sobre os Yanomami, a floresta e, em última instância, toda a humanidade. Albert explica que sua função como coautor foi mediar essa travessia entre mundos, mantendo-se o mais fiel possível à singularidade da fala de Kopenawa, evitando interpretá-la ou diluí-la em análises acadêmicas.

No entanto, ao avançarmos na leitura, aos poucos somos capazes de perceber que o subtítulo do livro “Palavras de um xamã yanomami” está carregado de uma complexidade que desafia toda a construção filosófica e sócio-histórica do leitor. Kopenawa aborda com reverência e respeito as palavras de Omama, o criador, dos Xapiri, os espíritos da floresta, dos ancestrais, os mais velhos, aqueles que transformaram-no em xamã, mas como uma extensão, as palavras de Davi Kopenawa são um eco da floresta, de cada ser vivo que num ciclo que se contrai e se expande a tempos imemoriais, do qual os povos indígenas fazem parte e que representam um grito pela sobrevivência de seus modos e significados de viver.

O xamã yanomami Davi Kopenawa, co-autor de "A Queda do Céu". <br> (Foto: Alejandro Zambrana/Sesai)

O xamã yanomami Davi Kopenawa, co-autor de “A Queda do Céu”.
(Foto: Alejandro Zambrana/Sesai)

Quem fala em “A queda do céu” é a própria força ancestral, através da voz de nosso interlocutor, num sopro átimo daqueles que veem a fixação do homem branco por suas mercadorias criando um ciclo de necessidade, consumo e fetiche, que vê os elementos vivos da natureza como recursos a seu bel prazer para serem utilizados e descartados em forma de lixo, poluindo os lagos, os rios e os mares e causando, em última instância, a própria queda do céu.

“Eu não vi as coisas de que eu falo no papel dos livros nem em peles de imagens. Meu papel está dentro de mim e me foi transmitido pelas palavras dos meus maiores.”

Davi Kopenawa, Survival International Public Meeting, 5 dez. 1989, em Londres (arquivos Survival International)

 

As palavras de Kopenawa pela caneta de Albert Bruce se constituem como uma “contra-antropologia” na medida em que evidenciam a voz daqueles a quem os avanços do “desenvolvimento” buscaram sempre invisibilizar, os dizimados desde a antiguidade até os tempos de vida do jovem Davi Kopenawa, pela fumaça das epidemias Xarawa, pelas doenças trazidas pelos brancos, não apenas as doenças físicas, mas também do espírito, com suas mentiras e artimanhas para se apossar do território indígena a qualquer custo, para minerar ilegalmente, para destruir a floresta para a criação de seu gado e cultuar o papel timbrado acima de todas as relações humanas, acusando os próprios Yanomami de serem violentos e canibais.

Quem fala em “A queda do céu” é o cerne da profecia de Kopenawa: o colapso iminente do mundo caso continue a destruição da floresta e o extermínio dos xamãs. Para os Yanomami, os xamãs são os sustentáculos do céu, aqueles que, em comunhão com os espíritos xapiri, mantêm a ordem do mundo. Se os xapiri forem expulsos pela fumaça das epidemias, da ganância e da devastação, e os xamãs deixarem de existir, o céu cairá – não como metáfora, mas como desfecho cósmico literal e trágico. Davi denuncia a cegueira dos brancos, que, ao ignorarem a morte e perseguirem riquezas, caminham rumo à própria destruição. O colapso não será apenas dos Yanomami, mas de toda a Terra, porque a floresta é viva e interdependente de tudo o que nela habita. Assim, a queda do céu é uma advertência xamânica, um último aviso dos povos da floresta à civilização que os cerca e os ignora.

(*) João Raphael (Afroliterato) é escritor, professor e mestre em educação pela UFRJ. É apresentador do programa “E aí, professor?” do Canal Futura.