Sábado, 6 de dezembro de 2025
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Os ataques recentes ao Líbano utilizando explosivos em eletrônicos (pagers e walkie talkies), com autoria tacitamente creditada a Israel, possuem um significado maior do que se pode presumir superficialmente. Matando 37 pessoas no total, dentre elas duas crianças, e deixando cerca de 3000 feridos — quase 300 em estado crítico —, os explosivos parecem ter sido ativados para não haver desperdício da operação, sob a suspeita de que a inteligência do Hezbollah estaria próxima de descobri-los. A grande questão em jogo não é necessariamente a armadilha através de dispositivos alterados — ou, como chamam os estadunidenses, boobytrap, algo tipo um “pega bobo”, ressaltando o aspecto central do seu funcionamento pela inocência, pelo inesperado, surpreendendo os alvos. É algo que já está formalmente organizado e publicado em tratados militares norte-americanos desde a década de 60 e que também já foi utilizado por Israel contra seus inimigos políticos, como foi o caso de Yahya Ayyash, integrante do Hamas, em 1996.

Mas os casos anteriores demonstraram certa tentativa de individuação dos alvos, com algum interesse até em uma efetividade mais discreta e precisa. Agora temos um primeiro grande novo fator que é a escala do atentado: pela primeira vez tantos aparelhos são sabotados simultaneamente, em uma escala praticamente industrial, tudo para inaugurar terror e um novo estágio da marcha neocolonial israelense. Esse novo estágio se apresenta como uma investida ao Hezbollah — ou seja, em direção à Síria e ao Líbano —, ao mesmo tempo em que turva as fronteiras protocolares da guerra e interfere em uma escala de produção relacionada à divisão internacional do trabalho. Até agora, não está totalmente elucidado o processo específico das intervenções feitas pela operação israelense para instalar os explosivos nos pagers e walkie talkies — apesar de já existirem suspeitas do procedimento envolver empresas de fachada. Entretanto, fica evidente que esse tipo de ataque mirava afetar não apenas uma relação de comunicação e organização, mas atingir efetivamente uma mediação sociotécnica culturalmente típica na região.

O recurso aos pagers e walkie talkies faziam parte de uma tentativa do Hezbollah em escapar da vigilância israelense — uma tática de contrainteligência que já testemunhava a sombra da guerra na experiência sociotécnica — mas além disso, os pagers são mais utilizados na região pelo baixo custo e longa durabilidade da bateria. A operação explicita uma tática de terror e envia a mensagem de que as tentativas de escapar das táticas de vigilância israelense, que o imperativo digital possibilita, serão punidas. Os ataques não se resumem ao Hezbollah, mas refletem um tipo de terrorismo cultural que abarca a própria existência prática, a própria necessidade de recorrer a tais aparelhos. A sombra do neocolonialismo israelense parece retroagir sobre si mesma, demonstrando a necessidade de se expandir, restringindo até mesmo a própria segurança pressuposta em retornar a tecnologias mais rudimentares — uma estratégia militar que não pode ser entendida como meramente episódica e restrita a alvos específicos, mas que mira intencionalmente em um traço cultural para atingir a totalidade de uma sociedade.

As mensagens, automatizadas ou não, em postagens online — que comemoram a operação do Mossad e junto a explosão de membros, genitais, e até mesmo a morte de crianças — atestam a efetividade da operação: não se trata simplesmente de um plano arquitetado para atingir a organização política em determinadas operações, mas a tentativa de produzir um efeito paranóico em uma cultura — é um ataque tanto físico quanto simbólico. Estamos vendo, em tempo real, Israel instrumentalizar seus alvos como meros experimentos em um macabro laboratório da guerra, ao bel prazer de seu projeto ideológico. O líder do Hezbollah, Hassan Nasrallah, percebeu isso nitidamente

A tática israelense não apenas desencadeia como atualiza um tipo de terror total que se reflete na própria alienação, industrial e assim também técnica, que é típica das sociedades onde a mercadoria impera: interferindo em alguma escala entre a produção e a distribuição, Israel mostrou-se ignorante, por opção, a qualquer tratado global de “legitimação” ou “legislação” militar. Não sejamos levianos aqui, sabemos que esses tratados são apenas formalidades. O que essa operação israelense evidencia é justamente isso. De que adianta experts jurídicos da legitimidade bélica e militar debaterem a “legalidade internacional” — e Kant que se vire com isso — de uma operação intencionalmente não implicada com qualquer risco a civis, e que já desencadeou seus ferimentos e fatalidades?

Um soldado israelense anda dentro de um túnel durante a operação Guardião das Muaralhas, em 23 de maio de 2021.
(Foto: Israel Defense Forces / Flickr)

Uma, duas, três ou milhares de crianças mortas aparentemente não traduz uma grandeza suficientemente qualitativa para se questionar a produção de morte neocolonial – isso não deveria ser novidade, infelizmente, pelo que vemos em chacinas aqui e lá, sejam as metralhadoras alemãs ou de Israel. Estraçalhados os suspeitos, resta no papel, não se enganem, os ganhos militares da operação israelense — já que trata-se aqui da concepção de “guerra total” –; a efetiva instauração de uma paranoia a partir de um elemento que culturalmente era dado como seguro. Imagine a possibilidade dos smartphones ou notebooks, como os que você, caro leitor, usa para ler esse artigo, tornarem-se bombas em potencial, desmembrando ou mesmo matando aqueles que estiverem por perto? 

Engana-se quem pensa que essa paranoia — não enquanto um ente clínico, mas uma estratégia de guerra — se reduza ao “conflito no Oriente Médio” (e valeria a pena se perguntar que noção de “média” é essa entre oriente e ocidente). O ataque de Israel deflagra não apenas a necessidade e o direito óbvio da autodefesa libanesa, mas também uma atualização da relação global de todos os territórios oprimidos com os aparatos e intervenções militares que se valem apenas de sua experiência laboratorial com a guerra para reproduzir resultados. Além disso, revela potenciais falhas de cibersegurança na cadeia internacional de produção e distribuição tecnológica. 

Já é observável o efeito prático na vida psíquica da população libanesa, por exemplo, na medida em que já expressam um tremendo temor que inviabiliza a vida cotidiana: “Temos medo, mas não sabemos de quê. Tudo ao seu redor dá medo, você vai para casa, fica com medo, sai, fica com medo. Não há segurança”, afirmou em entrevista uma moradora do Líbano. “Não me atrevo mais a segurar meu telefone nas mãos. Antes, eu o colocava ao meu lado para dormir, mas agora não tenho coragem” disse outra entrevistada. Ao mesmo tempo em que o terror é incorporado em objetos eletrônicos, esses estão por todas as partes e são, potencialmente todos, uma ameaça tão concreta quanto difusa. Experimentar esse tipo de predicamento paranoico — não como delírio, mas como temor persecutório com fundamentos bem reais — produz um modo de sofrimento que era intencionalmente buscado pela operação israelense. A guerra se mostra simultaneamente impregnada nos dispositivos eletrônicos e na experiência psíquica das populações, estabelecendo uma ligação entre ambos que não é mais simplesmente tácita, por vigilância ou controle. 

Com o aumento das tensões, vemos Israel expressar uma mudança do eixo de guerra para o norte e a tendência parece ser de um escalonamento que amplia o confronto direto, podendo envolver não apenas a Síria e o Líbano, mas também Irã e Iraque, Turquia e Iêmen — além, é claro, dos EUA, que demonstraram um suspeito desconhecimento da operação terrorista israelense. Frente a esse processo, nossa postura deve ser antes de mais nada a de reafirmação do direito de autodefesa dos países e populações vitimados pelo terror neocolonial sionista.  

(*) Cian Barbosa é flamenguista e morador do Rio de Janeiro. Bacharel em sociologia (UFF), doutorando em filosofia (UNIFESP) e psicologia (UFRJ), pesquisa teoria do sujeito, crítica da cultura, violência, tecnologia, ideologia e digitalização; também é integrante da revista Zero à Esquerda, tradutor e ensaísta, além de professor e coordenador do Centro de Formação. Ministra o curso “Fantasmas na Máquina – – Inteligências Artificiais, Psicanálise e Crítica da Digitalização” (de 06/10/24 a 27/10/24)