Sábado, 6 de dezembro de 2025
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Quando se analisa uma operação militar, três aspectos precisam ser considerados para não se deixar levar por impressões superficiais. São critérios que valem para uma guerra convencional e, mais ainda, para o combate guerrilheiro.

O primeiro desses marcadores é moral. A luta armada deve traduzir, em seus métodos e objetivos, um anseio legítimo por liberdade, soberania e justiça, que possa ser abraçado tanto por seus atores diretos quanto pelos demais povos do mundo.

O segundo medidor é político. Qualquer ação violenta precisa ser abordada por sua capacidade de mudar a correlação de forças, gerando uma tendência positiva que pode ser calculada em termos de opinião pública, rede de alianças e reflexo institucional.

A terceira régua é especificamente militar, a ser aferida no saldo territorial, humano e material. Nos embates regulares, entre Estados antagônicos e seus respectivos Exércitos, esse balanço pode ser emitido com certa simplicidade. Na guerra de guerrilhas, uma derrota tática não significa, por vezes, um insucesso estratégico.

O ataque conduzido pelo Hamas há dois anos merece ser analisado a partir desses três filtros, se quisermos evitar lugares-comuns infectados por preconceitos e abstrações. Façamos, portanto, as devidas perguntas para aplicarmos o método proposto.

O 7 de outubro é moralmente defensável?

Para começo de conversa, concordando-se ou não com sua orientação ideológica, ou com o que foi feito há dois anos, revela-se imperioso ressaltar que o Hamas é uma das organizações que representam a grande régua moral de nossos tempos, a causa palestina.

Ainda que o próprio movimento islâmico reconheça violência excessiva e até criminosa em certos momentos da Operação Dilúvio al-Aqsa, que contou com a participação também de outros grupos, o direito à rebelião anticolonial está consagrado na legislação internacional e na tradição histórica.

O mais importante documento que chancela essa garantia é a resolução 3103 da Assembleia Geral das Nações Unidas, aprovada em 12 de dezembro de 1973, que reconhece plenamente o recurso a todas as formas de luta contra o colonialismo, incluindo a luta armada.

Mais de 66 mil palestinos morreram após ataques diários de Israel em Gaza
© 2023 UNRWA / Ashraf Amra

Ao contrário, o colonialismo não possui amparo legal e foi moralmente condenado pela comunidade internacional a partir da carta de fundação das Nações Unidas. No caso do Estado de Israel, para além de ser uma força de ocupação dos territórios palestinos, há permanente violação de ditames expedidos pela Assembleia Geral e mesmo pelo Conselho de Segurança.

Submetido desde 1967 à colonização de toda a região, o povo palestino está eticamente protegido em seus movimentos de revolta, mesmo quando falhas e abusos sejam cometidos: os colonizados tudo podem contra os colonizadores, pois a violência original está na relação de opressão que motiva a rebelião.

A classificação do Hamas como “grupo terrorista” não passa de engodo pró-Israel – cilada já aplicada, no passado, a praticamente todos as organizações de libertação nacional, incluindo aquelas que, vitoriosas, passaram a ser consideradas como governos legítimos de seus países.

Por outro lado, apenas sob um ponto de vista técnico poderia ser aplicado o termo “terrorismo” ao 7 de outubro: de fato, o objetivo era provocar pânico e terror entre as forças coloniais, a exemplo do que frequentemente ocorre em guerras assimétricas, opondo grupos guerrilheiros a tropas convencionais.

Os registros históricos são fartos: assim agiram os norte-americanos contra os britânicos em sua guerra de independência; os criollos latino-americanos contra Exércitos espanhóis, nas campanhas bolivarianas; argelinos e vietnamitas, no século 20, contra os franceses; maquis e partigiani contra os nazistas. A lista seria praticamente interminável.

Todos os povos que se libertaram do jugo de outros Estados somente o fizeram adotando a luta armada como uma das formas de ação, não raro a mais decisiva, tendo como alvos legítimos todos os aparatos de dominação – militares ou civis.

A causa palestina saiu fortalecida ou enfraquecida do 7 de outubro?

Não precisa de muita memória ou pesquisa para concluir que a criação de um Estado palestino, mesmo sob os termos perversos dos Acordos de Oslo (1993), caminhava para o arquivo morto da história antes que o Hamas liderasse a ofensiva anti-Israel.

O regime sionista, além de cercar e isolar a Faixa de Gaza desde 2007, impulsionava a crescente colonização da Cisjordânia e de Jerusalém Oriental. A Autoridade Palestina, afundada em desmoralização e passividade, era incapaz de impor qualquer obstáculo.

A maioria dos países árabes demonstrava-se disposta a romper os últimos laços de solidariedade com os palestinos, incorporando-se aos chamados Acordos de Abraão, alinhavados durante a primeira passagem de Donald Trump pela Casa Branca.

Yahya Sinwar, que era líder do Hamas, foi morto por Israel durante os ataques após 7 de outubro de 2023 < br / > IRNA via Fotos Píblicas

Tampouco nos países ocidentais notava-se mobilização mais ampla em favor da autodeterminação palestina, progressivamente restrita a pequenos círculos e transformada em mero discurso protocolar na Assembleia Geral da ONU.

Mesmo sob o comando de sua ala mais extremista, o Estado de Israel vivia uma etapa de naturalização na comunidade internacional, estabelecendo relações promissoras até com governos de esquerda, que lavavam as mãos e viravam o rosto diante do colonialismo.

Tudo mudou a partir do 7 de outubro, embora a um custo brutal. Obviamente o Hamas não imaginava triunfar militarmente, mas provocar uma onda de repulsa contra o sionismo a partir da reação facilmente calculável do governo Netanyahu.

Essa onda deveria devolver a causa palestina ao palco principal, impugnar a aproximação de países árabes com Tel Aviv, gerar protestos massivos no Ocidente e refazer alianças que permitissem romper com o definhamento em curso.

Dois anos depois, o regime sionista jamais esteve tão isolado e desmascarado como um pária da humanidade. Denunciado na Corte Internacional de Justiça, sua imagem está associada aos bárbaros crimes do genocídio palestino, distanciando-se da apropriação oportunista do Holocausto judaico.

A causa palestina, por sua vez, está sendo abraçada massivamente em todos os quadrantes. Desde a Guerra do Vietnã não ocorriam manifestações do porte que temos visto, obrigando governos aliados de Israel a retificarem posições.

A pressão da opinião pública é um dos principais fatores que tem incentivado sanções contra Israel e favorecido o surgimento de coalizões em favor do nascimento do Estado palestino.

Mesmo que o futuro imediato seja incerto e o caminho a percorrer venha a ser pontilhado por concessões, torna-se evidente o ocaso do Estado colonial e racista fundado pelo sionismo, debilitado no exterior e mergulhado em contradições internas.

O Hamas e seus aliados foram militarmente derrotados?

Sim, como também ocorreu com a Ofensiva do Tet, em 1968, quando os vietnamitas se lançaram em ataque de amplo espectro contra o exército norte-americano e perderam aquela batalha no que diz respeito apenas ao cenário bélico.

Mas os efeitos a prazo foram desestabilizadores para a superpotência, ao gerar pavor em seus soldados e agentes civis, virar a sociedade norte-americana contra a guerra de ocupação e demonstrar a inutilidade da superioridade militar para derrotar um povo em seu próprio território.

Sob condições infinitamente mais difíceis, sem apoio externo significativo, a resistência palestina nunca teve chance real de triunfo pelas armas, mas Netanyahu pode ser forçado a um cessar-fogo sem o desmantelamento completo do Hamas e sem a anexação da Faixa de Gaza.

Também podem ser contabilizados como retrocessos, para os palestinos, a queda de Bashar al-Assad na Síria, o enfraquecimento do Hezbollah no Líbano e a relativa neutralização do Irã. Ainda assim, o expansionismo sionista esbarra em travas maiores agora do que em 2023.

manifestação pró-palestina

Manifestações pró-Palestina tomaram as ruas das capitais mundiais
Can Pac Swire / Wikimedia Commons

A Batalha de Gaza, a Terceira Intifada, parece caminhar para o fim. Se isso se confirmar, haverá um intervalo mais ou menos longo até o próximo confronto. Durante esse período, as organizações palestinas terão o desafio de se reunificar e reformar a Autoridade Palestina, lutando pelo controle da Cisjordânia, da Faixa de Gaza e de Jerusalém Oriental.

Nenhuma solução sustentável será encontrada enquanto existir o regime colonial e de apartheid fundado em 1948, agora também transformado no principal vetor de antissemitismo para a diáspora judaica.

Sob enorme sacrifício e agora constrangido a reduzir seu papel nos próximos anos, o Hamas foi capaz de expor as vísceras do sionismo, atuando à moda bacurau. A causa palestina foi recolada na rota da história. Depois do 7 de outubro, nada será como antes.