Plano para Gaza não busca paz, mas pacificação dos palestinos
Gaza é laboratório de uma velha tática imperial: pacificar corações e mentes para conter a insurgência
O plano de Trump para o cessar-fogo em Gaza está em implementação. Após a troca de prisioneiros, algumas hostilidades foram retomadas entre Hamas e Israel, resultando na morte de mais de uma centena de palestinos. O vice-presidente dos EUA, JD Vance, e o genro de Trump, Jared Kushner, trataram de assegurar que o plano segue em operação e que a reconstrução de Gaza acontecerá nas áreas fora do controle do Hamas. O objetivo é forçar a desmilitarização do grupo palestino – algo que não foi obtido no campo de batalha nem na assinatura inicial do cessar-fogo. Por trás das intenções israelenses e estadunidenses de paz, contudo, há um plano de pacificação de todo o povo palestino.
Contrainsurgência colonial na Palestina
Os teóricos de contrainsurgência colonial do final do século XIX, como o coronel britânico Charles Callwell e o general francês Louis Lyautey, apontavam que a reconstrução da sociedade colonial era mais importante para combater os movimentos insurgentes do que o confronto militar. Após o fim das hostilidades, os colonizadores deveriam se engajar na construção de rodovias, mercados, postos de saúde e escolas para assegurar a construção de uma ordem estável, previsível e produtiva. Essa tática de contrainsurgência, focada na população civil, buscava conquistar a lealdade do povo colonizado – seus “corações e mentes” – e afastá-lo das forças insurgentes.

Cerimônia de assinatura do cessar-fogo em Gaza em Sharm El Sheikh, Egito. 13/10/2025. (Foto: Daniel Torok / White House)
Muitas vezes, essas políticas eram colocadas em prática por colaboradores nativos, que formavam guardas e burocracias locais para criar uma falsa sensação de proteção, autonomia e prosperidade. Os insurgentes eram representados como promotores do caos e da violência, não da libertação nacional. Assim, almejava-se pacificar todo o povo nativo, isolando os insurgentes do restante da população. Uma boa ordem para os colonizados significava uma melhor ainda para os colonizadores, interessados na facilitação da extração de recursos naturais e na exploração do trabalho nativo. Muitos desses manuais de contrainsurgência foram mais tarde atualizados por teóricos estadunidenses nas guerras do Vietnã, Iraque e Afeganistão.
De alguma forma, os israelenses agem permanentemente contra os palestinos empregando diferentes formas de contrainsurgência. O Mandato Britânico da Palestina, entre 1918 e 1948, foi uma verdadeira escola de pacificação para dirigentes e militares sionistas. Durante a Revolta Árabe de 1936-39, quando os palestinos se mobilizaram numa greve urbana e depois numa luta armada camponesa por libertação nacional, a Haganah, principal milícia sionista, foi integrada às tropas britânicas para reprimir os palestinos.
O general britânico Orde Wingate se considerava um cristão sionista, já havia servido em diversas colônias inglesas e tinha grande desprezo pelos árabes. Em 1938, Wingate formou a Special Night Squads, composta por ingleses e sionistas, responsável por ataques noturnos e sabotagens a vilarejos palestinos. Sem Wingate, não teria ocorrido a Nakba. O processo de limpeza étnica da Palestina pelas milícias sionistas foi promovido utilizando as táticas de “pavor e pânico” e “reconhecimento violento” ensinadas por ele. O general israelense e ministro da Defesa nas primeiras décadas de Israel, Moshe Dayan, afirmou que Wingate “nos ensinou tudo que sabemos”.
Paz, contrainsurgência e pacificação
Diversos intelectuais que estudam a Palestina, como Mandy Turner e Lisa Bungalia, demonstraram como os Acordos de Oslo foram peça-chave da contrainsurgência contra as guerrilhas e revoltas palestinas da Guerra Fria, como a ocorrida na Intifada de 1987. Longe de significar a criação de um Estado palestino, o processo de paz dos anos 1990 criou a Autoridade Palestina como uma força nativa responsável por conduzir políticas de desenvolvimento econômico, statebuilding (construção estatal) e policiamento sob tutela internacional e israelense.
O FMI e o Banco Mundial eram responsáveis por assegurar uma agenda econômica neoliberal fundada na promoção da iniciativa privada, enquanto os palestinos não tinham soberania sobre política comercial e monetária ou sobre o movimento de pessoas, bens e capitais pelas fronteiras – controladas pelos israelenses. A ajuda externa de europeus e americanos obrigava os palestinos a construir instituições de acordo com paradigmas ocidentais de democracia e liberdade.
Além disso, os EUA e a Jordânia foram responsáveis por treinar e armar as forças de segurança palestinas. Essa força policial expressava a rendição palestina à luta armada e tinha como principal missão cooperar com as forças israelenses no controle da população nativa nos pontos de bloqueio e conter os “grupos terroristas” – isto é, Hamas e Jihad Islâmica – que eram contrários aos Acordos de Oslo. Assim, a AP ficou responsável por governar e policiar a vida dos palestinos sob a tutela de Israel e dos países ocidentais.
Mesmo depois da Segunda Intifada, entre 2000 e 2005, esse sistema palestino se manteve de pé e foi central para pacificar a Cisjordânia após a repressão israelense às forças insurgentes palestinas. Embora ainda existam guerrilheiros organizados na luta armada no norte da Cisjordânia, como em Jenin, ou grandes levantes populares, como os ocorridos em Jerusalém em 2014 e 2021, a vida palestina sob ocupação é relativamente estável, previsível e produtiva – apesar da ausência de liberdade nacional, da crescente pobreza e da constante construção de assentamentos judeus.
O sucesso da pacificação é visto na desestruturação do Movimento Nacional Palestino. Não há mais um amplo movimento defensor da luta armada capaz de construir alianças com diversos atores do Terceiro Mundo, como fora a Organização para a Libertação da Palestina (OLP), nem um movimento de desobediência civil como o visto na Primeira Intifada. Mahmoud Abbas, antigo dirigente da OLP e atual presidente da AP, representa uma liderança palestina desdentada, incapaz de construir um Estado palestino, apesar da histórica colaboração com israelenses e ocidentais. Ramallah, capital da AP, é chamada de “bolha” pelos palestinos, pois expressa um modo de vida neoliberal sustentado pela ajuda externa que sabota formas coletivas de luta por libertação nacional.
Cessar-fogo e pacificação em Gaza
O plano dos EUA e de Israel para Gaza não é diferente. Almejam isolar o Hamas através do estabelecimento de um corpo “tecnocrático” palestino responsável por conduzir a “reconstrução” sob a tutela internacional do “Conselho da Paz”, presidido por Trump. Os países ocidentais e as monarquias do Golfo vão bancar a reconstrução em desacordo com as demandas do povo palestino por libertação nacional, mas somente em áreas não mais controladas pelo movimento de resistência.
O francês Michel Foucault foi responsável por inverter a ideia célebre do prussiano Carl von Clausewitz ao afirmar que a “política é, na verdade, a guerra continuada por outros meios”. Foucault almejava chamar atenção para o uso permanente de diversas formas de violência (disciplinar, soberana e biopolítica). O francês argumentava que a paz civil não é o fim da guerra, mas sim a sua continuação.
O acordo de cessar-fogo dos EUA é um instrumento para obter por meios políticos aquilo que os israelenses não conseguiram no campo de batalha: a desmilitarização do Hamas. Foi assim que Trump obteve a anuência de Benjamin Netanyahu para chegar a um acordo que pode levar ao fim de sua coalizão governamental e resultar até mesmo em sua prisão por acusações de corrupção na Justiça israelense.
Em outra ocasião, já expliquei como dificilmente o Hamas aceitaria sua desmilitarização diante do histórico de rendições palestinas, como observado nos Acordos de Oslo, que não resultaram em libertação nacional. Ao sinalizar para o povo palestino que a reconstrução da vida após o genocídio só ocorrerá nas áreas fora do controle do Hamas, o que Trump e companhia almejam é atrair o povo de Gaza a viver nessas áreas e abandonar o movimento de resistência.
Caso as forças imperialistas sejam bem-sucedidas na aplicação dessa tática de contrainsurgência em Gaza, restarão ao Hamas duas opções: abandonar a luta armada ou manter a guerrilha a custos cada vez maiores. A segunda opção é a mais plausível no momento e conta com apoio popular: em maio deste ano, 77% dos palestinos eram contra a desmilitarização do Hamas.
Além disso, 42% esperavam que o Hamas mantivesse o controle de Gaza e 57% aprovaram seu papel durante a guerra, enquanto 48% dos palestinos de Gaza apoiaram manifestações contra o grupo. Isto é, nesses dois anos de genocídio, o Hamas viu sua força militar e seu apoio popular diminuírem, mas muitos palestinos ainda o consideram o legítimo governante de Gaza. Isso pode ter levado o movimento a aceitar um cessar-fogo aquém do desejado pelos palestinos como forma de manter o controle sobre o território e preservar a resistência armada.
Isso também ajuda a explicar as ações de justiçamento do Hamas contra milícias acusadas de colaboração com Israel ou de confiscar ajuda humanitária durante o genocídio. O confesso apoio israelense a milícias rivais em Gaza almeja, na melhor das hipóteses, colocar no poder um grupo aliado ou, na pior, provocar uma situação caótica – tal como observada na Líbia e na Síria – que sirva de justificativa para intervenções militares permanentes por Israel. O justiçamento pelo Hamas supostamente busca evitar essas duas possibilidades e manter a sua posição de proteção dos palestinos.
O plano ocidental de pacificação de Gaza, no entanto, tem outra limitação fundamental. Os teóricos europeus de contrainsurgência defendiam a racionalização do uso da força para o sucesso da construção de uma ordem pacificada. Ou seja, as tropas coloniais não poderiam se exceder na violência se quisessem construir laços de lealdade por meio da construção de escolas e hospitais. O uso irrestrito da força cria uma situação de rejeição completa ao poder colonial.
Gaza já era um local fundamental da resistência palestina antes do Hamas. A incapacidade de construir pontes com os palestinos para uma forma de governo interessante aos colonizadores fará surgir novos movimentos de resistência armada em Gaza. O Hamas é somente uma expressão da luta por libertação nacional que vai muito além do grupo.
Está muito claro para os palestinos que sua situação em Gaza é provocada por Israel e EUA – 79% dos palestinos responsabilizam esses atores coloniais, enquanto 19% culpam o Hamas ou a AP. Logo, há muito pouco espaço para os colonizadores construírem alianças com o povo palestino, mesmo por meio de tecnocratas, depois de anos de destruição, mortes, fome e humilhação. Isso significará o insucesso da pacificação e a permanência da pacificação.
O Hamas, entre erros e acertos, ainda é o movimento mais popular entre os palestinos. E o povo palestino, depois de tantas derrotas em sua luta por libertação nacional, parece estar ciente das armadilhas colocadas por seus adversários.
(*) Bruno Huberman é Professor de Relações Internacionais da PUC-SP. Pesquisador do Grupo de Estudos de Conflitos Internacionais (GECI) e do Instituto Nacional Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT/INEU). É autor de ‘Colonialismo Neoliberal em Jerusalém’ (Educ, 2023).























