Sábado, 6 de dezembro de 2025
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A conversa fluía como uma boa história para embalar o sono. Era madrugada, eu estava fugindo das notícias. Uma entrevista em um serviço de streaming apresentava mais um “mesacast”: uma apresentadora bronzeada e um entrevistado simpático discutiam “inovação”. Palavras bonitas, daquelas que prometem tranquilidade e bons sonhos. Era isso que deveria me fazer dormir, depois de um dia cheio – com direito à notícia da prisão de Jair Bolsonaro.

O entrevistado era Rafael Lazarini, fundador e CEO do Rio2C, um evento sobre inovação patrocinado pela Petrobras. Descobri, durante a transmissão, que o evento já havia ocorrido e que entrevista já tinha seis meses antes. Foram 15 palcos discutindo formas de inovar com o tema “O limite da perfeição”.

“A gente fala de inovação a partir do ser humano; a tecnologia por si só não é tão interessante. Vemos ela como ferramenta”, disse Lazarini em certo momento.

Mais um sinal de calmaria: um assunto inócuo, cheio de boa vontade, além de a conversa versar sobre um futuro que já era passado. Nada parecia capaz de causar angústia e prolongar minha insônia. “É agora que durmo”, pensei.

Mas o placebo que me embalaria o noite não durou. A busca pela perfeição veio acompanhada de uma fala suave:

“Sinto um pouco a falta de a gente buscar utilizar toda essa capacidade criativa que a gente tem em busca de soluções para os nossos próprios problemas”, disse ele.

Até aí, nada demais. Mas a bomba veio em seguida:

“Eu acho que um exemplo fantástico disso em termos de inovação – colocando as questões político-ideológicas à parte – é Israel.”

Eu já ressonava, mas perdi o fôlego. Como assim? – perguntei a mim mesmo. Lazarini parece ter ouvido:

“Eu acho que é de certa forma bastante parecido [com o Rio], pelo menos quando você fala na questão de segurança, né? A verdade é que o Rio é uma cidade meio sitiada, né? A gente vive ali, a gente tem as nossas Faixas de Gaza.”

Sem perceber meu choque, e sob a aprovação da entrevistadora, Lazarini continuou:

“Um dos maiores hubs de tecnologia e inovação do mundo é Israel. Eles criaram ali soluções para lidar com os próprios problemas. A gente tá falando aqui o mais óbvio, que é segurança e defesa, mas até na agricultura… É árido, quase um deserto, e aqueles kibutz conseguiram tornar aquela terra fértil…”

Exército e Polícia durante operação na favela Nova Holanda, no Complexo da Maré, em março de 2014. (Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil)

Exército e Polícia durante operação na favela Nova Holanda, no Complexo da Maré, em março de 2014.
(Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil)

Três meses após essa entrevista e um mês antes do evento, Wisan Zoghbour publicou na revista Diálogos do Sul, parceira de Opera Mundi, um artigo sobre o uso de inteligência artificial por Israel em ataques que não distinguem civis de alvos militares – uma aplicação mortífera da tecnologia que ameaça abolir o princípio da responsabilização.

Essa é a grande “inovação” de Israel no genocídio em Gaza: o desenvolvimento de ferramentas técnicas que eliminam a responsabilidade penal pelas mortes em série. Os antigos mecanismos de ocultação de violações de direitos humanos agora ganham um reforço tecnológico.

Não conheço pessoalmente Lazarini e não quero transformá-lo no alvo deste artigo. Meu problema é com a naturalização do genocídio em Gaza – e sua transformação, na entrevista e em outros discursos semelhantes por aí, em exemplo.

É possível que o “compromisso” de Lazarini com a inovação o afaste da compreensão de que a técnica não é neutra e pode ser mortal quando colocada a serviço da violência colonial. Ainda assim, gostaria de sugerir a leitura do artigo citado e de um livro publicado pela Editora Elefante: Laboratório Palestina, de Antony Loewenstein, com tradução de Gabriel Rocha Gaspar.

Transcrevo do site da editora a sinopse:

“Em Laboratório Palestina, Antony Loewenstein explica detalhadamente como Israel exporta tecnologia de ocupação para o mundo. Mas vai além: a influência e os impactos da indústria armamentista israelense e das tecnologias de vigilância desenvolvidas pela ‘nação startup’ são o fio condutor que revela as entranhas da maquinaria política, social, econômica e diplomática do Estado judeu, desde sua fundação, em 1948, até as vésperas da campanha militar genocida contra a população da Faixa de Gaza, iniciada em outubro de 2023 — episódio abordado em um prefácio exclusivo à edição brasileira. Fruto de vinte anos de investigação e farta documentação, a leitura de Laboratório Palestina não deixa dúvidas sobre as razões que transformaram Israel na utopia realizada da extrema direita mundial.”

Quando Lazarini afirma que o Rio tem suas próprias Faixas de Gaza e que deveríamos aprender com Israel a inovar, o que ele diz, na prática – voluntária ou involuntariamente –, é que podemos aplicar soluções técnicas destrutivas contra as populações pobres que vivem nesses territórios. Não creio que o Leblon figure entre essas “Faixas de Gaza” (embora o tenha sido, no século XIX, quando era um quilombo urbano antes de ser invadido pela elite carioca).

A ideia de que a pobreza no Rio (e no Brasil) deve ser eliminada já orienta a política de segurança pública do Estado há décadas. O Rio já “inova” como Israel, muitas vezes com armas e técnicas importadas de lá.

As ideias de Lazarini soam razoáveis – ao menos para a entrevistadora soaram, porque não houve nenhum gesto de espanto, muito menos movimento para interrompê-lo – porque fazem parte do nosso repertório histórico: da escravização de indígenas e africanos à perseguição de trabalhadores pelas DOPs e DOI-Codis das ditaduras militares.

Inovar, hoje, seria exatamente o oposto: virar as costas para os exemplos de Israel. Seria condenar os genocídios – palestino, indígena, negro e de trabalhadores pobres brasileiros. Até que isso seja, as pessoas não deveriam nem dormir.

(*) Haroldo Ceravolo Sereza é jornalista, editor e crítico literário. É diretor editorial do portal Opera Mundi e autor de ‘O Naturalismo e o Naturalismo no Brasil’ (Alameda) e de ‘Florestan – A inteligência militante’ (Boitempo).