Sábado, 6 de dezembro de 2025
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O governo Lula 3, em que pese em maior medida o ministro da fazenda Fernando Haddad, estão obcecados com a redução a qualquer custo do déficit público, ainda que para isso seja preciso atacar direitos duramente conquistados e mecanismos de renda que beneficiam principalmente os mais pobres e vulneráveis. Haddad não cansa de repetir que a intenção do governo é garantir que o arcabouço tenha vida longa, mas pelo jeito, os beneficiários do BPC não. No vocabulário do ministro fala-se em caminhos para a “sustentabilidade” fiscal do país – perceba o uso de um termo da moda para encobrir o que de fato é: austeridade. Este é o nome que se dá quando se promovem consecutivos ajustes fiscais, por meio de corte de gastos, para regular a economia para finalidade única do crescimento econômico (e para agradar o mercado, essa entidade mítica que nunca está satisfeita e sempre precisa de mais).

 Era sabido, desde sua criação, que o Novo Arcabouço Fiscal (NAF) teria problemas para se sustentar sem que se mexesse nos pisos constitucionais para saúde e educação e no Benefício de Prestação Continuada (BPC). Isto porque o NAF impõe limites de crescimento muito rígidos aos gastos sociais e aos investimentos públicos, enquanto a saúde e a educação estão primeiramente atreladas ao aumento da receita corrente líquida, e o BPC ao salário mínimo; assim, esses casos não são comportados nas limitações impostas pelo NAF. Importante destacar que as despesas financeiras, principalmente o pagamento dos juros que remuneram os grandes rentistas, foram protegidos pelo NAF: esse tipo de despesa pode crescer indiscriminadamente, que serão pagas. Essa estrutura bloqueia o aumento dos gastos de acordo com a demanda social e o ritmo da economia, e mais, em nome da “sustentabilidade” fiscal, o governo poderá exigir mudanças constitucionais nos pisos da saúde e da educação, assim como no pagamento do BPC.

É fato que a política de austeridade, representada pela redução de gastos, sempre encarou a Previdência Social como vilã. Apesar das várias reformas realizadas, as despesas com a previdência ainda representam a maior parte dos gastos do Governo Federal. Embora as sucessivas mudanças tenham impactado principalmente os benefícios de natureza contributiva (como aposentadorias por idade e tempo de contribuição, invalidez e pensões), a reforma do Regime Geral de Previdência Social (RGPS) não atingiu plenamente seus objetivos. Para os defensores da austeridade fiscal, essas reformas foram consideradas insuficientes. Diante de generosas desonerações fiscais, o desequilíbrio financeiro oculto e a redução de despesas com benefícios sociais, fica claro qual lado da balança tende a ser mais sacrificado. E neste momento, os cortes no BPC são a pauta.

São cerca de seis milhões de beneficiários do BPC, que geram uma despesa mensal de 7,5 bilhões de reais. O valor médio do benefício é de um salário mínimo, destinado a idosos em situação de pobreza a partir dos 65 anos e a pessoas com deficiência também em condição de vulnerabilidade. A elegibilidade é definida com base na renda per capita da família, que deve ser igual ou inferior a 1/4 do salário mínimo, o que corresponde hoje a 353 reais. Esse critério de renda é mais restritivo do que o utilizado pelo CadÚnico, que considera baixa renda aquela equivalente a até 1/2 salário mínimo por pessoa. Uma evidência também muito importante sobre o impacto do BPC é como ele transcende os seis milhões de beneficiários. Isso ocorre porque o BPC nunca é concedido de forma isolada. Quando o beneficiário é um idoso comprovadamente pobre com 65 anos ou mais, ou uma pessoa com deficiência em situação de pobreza, ele frequentemente precisará de cuidados diários e contínuos de outra pessoa. Importante destacar também que esse cuidado geralmente recai sobre um membro da família, na maioria das vezes uma mulher. O benefício recebido por um indivíduo permite que essa pessoa seja cuidada por outra. 

Ao que tudo indica, o corte de aproximadamente 6,4 bilhões de reais no BPC seriam sobre cerca de 9% dos beneficiários, que não estão inscritos no Cad-Único, mas como bem é colocado pelo Relatório Nota em defesa do BPC, “É preciso lembrar que o BPC nasceu e se materializou no território nacional antes do Cad-Único. Há um hiato entre a Constituição de 1988, a LOAS, de 1993, e o início da exigência de cadastro no Cad-Único, ocorrido a partir de 2016. Uma parte considerável dessas pessoas, portanto, no momento da concessão dos benefícios, não deixaram de cumprir as exigências estipuladas na legislação”. A política de austeridade fiscal exige a implementação de medidas que gerenciam a escassez e penalizam os grupos mais vulneráveis, e esse é mais uma vez o caso. 

29.12.2022 – Lula e os futuros ministros Haddad (Fazenda) e Simone Tebet (Planejamento). – O Presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva anuncia os nomes de mais 16 Ministros e Ministras de Estado. No evento, Lula falou dos desafios do primeiro escalão e reiterou sua disposição em trabalhar incessantemente para reconstruir o país e devolver a dignidade ao povo brasileiro.
(Foto: Ricardo Stuckert / Lula Oficial)

O BPC tem uma natureza não contributiva, conforme estabelecido por seu arranjo institucional, uma decisão acertada referendada pela Constituição de 1988, que em seu  Artigo 203 previu: “V – a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei.” Logo, ele não depende das contribuições aos regimes previdenciários de repartição vinculados ao trabalho formal, mas sim resulta de uma escolha da sociedade de proteger os mais vulneráveis. Essa é uma decisão democrática. No entanto, enquanto essa amplitude do BPC é essencial para os grupos mais vulneráveis, para os defensores da austeridade fiscal, ela é vista como uma fragilidade.

Em seu recente discurso na Assembleia Geral da ONU, o presidente Lula usou a tribuna para cobrar esforços globais de erradicação da fome e da insegurança alimentar, dizendo ainda que a “fome não é resultado apenas de fatores externos” e que “decorre, sobretudo, de escolhas políticas”. Espera-se que o presidente perceba que a escolha política de cortar o BPC de pessoas vulneráveis é sinônimo de fome, assim como o imperativo do déficit zero, a desvinculação dos benefícios previdenciários e assistenciais do salário mínimo e o fim dos pisos constitucionais que asseguram os mínimos recursos para a educação pública e para a saúde pública. Austeridade fiscal é gestão da miséria. 

(*) Bianca Valoski é doutoranda no Programa de Pós Graduação em Políticas Públicas da UFPR, dentro da linha de pesquisa em Economia Política do Estado Nacional e da Governança Global. É servidora da Câmara Municipal de São José dos Pinhais, onde trabalha com finanças públicas.