Sábado, 6 de dezembro de 2025
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O corpo fala quando a voz é silenciada.

Alguns gestos, que hoje parecem banais, são, no cotidiano, formas sutis de expressão num contexto em que a fala das mulheres negras sofre de constantes e repetidos apagamentos que partem de um machismo e racismo estruturais no Brasil.

Esses gestos – revirar os olhos, apoiar as mãos nos quadris, rir alto, apontar com a boca, andar gingando – são heranças corporais afro-diaspóricas, transmitidas não por livros, mas por mães, tias, vizinhas, avós.

Esses gestos – revirar os olhos, apoiar as mãos nos quadris, rir alto, apontar com a boca, andar gingando – são heranças corporais afro-diaspóricas, transmitidas não por livros, mas por mães, tias, vizinhas, avós.

O revirar de olhos, o bater de mãos nos quadris, o gesto de apontar com os lábios, a risada expansiva. A gestualidade cotidiana tornou-se parte de uma memória corporal da resistência africana.

Esses gestos, muitas vezes lidos de forma preconceituosa ou caricatural, têm raízes corporais ancestrais que atravessaram o Atlântico com as mulheres africanas escravizadas e foram ressignificados no Brasil como linguagem de sobrevivência, comunicação e poder.

O revirar de olhos, por exemplo, muito associado à expressão feminina negra, comunica desdém, ironia, poder ou defesa. No ambiente colonial, quando mulheres negras não podiam responder com palavras, o olhar falava por elas. No entanto, nas cosmologias iorubás e bantu, o olhar é canal de axé, energia vital. Evitar o contato visual direto pode ser sinal de respeito ou prudência espiritual – olhar “de lado” ou “para cima” é gesto de sabedoria e controle emocional. Onde não se fala com a boca, muito se diz com o olhar.

Na canção “Sou de arerê”, de Nelson Rufino e Paulo Daltro, vemos o trecho: 

“Parece mentira compadre
Contado ninguém acredita
Quando a nega se arranha
o nariz arrebita
Empina a bunda pro lado
Mexe de mãos nos quadris
Roda a baiana inteirinha
Sacode os ombros e diz
(Eu sou!)
Sou de arerê
Boto pra quebrar
Homem meu nenhuma piranha
Vai se debochar” 

No Brasil, “colocar as mãos na cintura” virou gesto cotidiano de firmeza, indignação ou “barraco”, muitas vezes reproduzindo um estereótipo da mulher negra “barraqueira”, brigona, no entanto, entre povos bantos da África Central, o quadril é centro da força vital e sexual. Em danças e rituais, o gesto de apoiar as mãos nos quadris marca posse do próprio corpo e território. É também gesto de comando: mulheres mais velhas o utilizam para chamar à atenção ou corrigir. Além de representar vaidade, altivez e autocuidado – o corpo se ergue, o peito abre, o olhar encara.

Um gesto sobreviveu especialmente em comunidades quilombolas e famílias afrodescendentes: a boca aponta discretamente, quase sussurra o que não pode ser dito em voz alta. O que muitas vezes também pode sinalizar a fofoca que se aproxima, ou que passa.

No contexto da escravidão, o gesto era código – uma forma silenciosa de avisar, indicar ou orientar sem chamar atenção dos feitores. Em muitas regiões da África Central (Congo, Angola), apontar com os lábios é comum e mais respeitoso do que com o dedo – um gesto de delicadeza comunicativa e discrição social.

A risada alta da mulher negra sempre foi lida pelo racismo como “exagero”, “falta de controle”. Mas, na verdade, é gesto de autonomia corporal e energia vital – o corpo que não pede licença para existir.

Por fim, o “andar rebolando”, tantas vezes sexualizado, é um gesto herdado das danças afro-diaspóricas. No cotidiano, é o corpo adaptando o passo da roça ao calçamento da cidade – é a ginga como ferramenta de sobrevivência, um modo de caminhar que esquiva, desvia e encanta. Nos rituais iorubás e congos, o andar é dança e postura – cada passo carrega intenção, equilíbrio e axé. O movimento dos quadris é saudação à terra e expressão da fertilidade.

Esses gestos – revirar os olhos, apoiar as mãos nos quadris, rir alto, apontar com a boca, andar gingando – são heranças corporais afro-diaspóricas, transmitidas não por livros, mas por mães, tias, vizinhas, avós.

São gestos que resistem à colonização, à etiqueta europeia e à higienização do corpo feminino negro.

Referências:
Mendonça, Maria Luiza Reis. Corpos Políticos: a importância da estética em meio à construção das narrativas de mulheres negras e gordas. Revista Gênero na Amazônia, 2019.
Gomes, Nilma Lino. Sem perder a raiz: Corpo e cabelo como símbolos da identidade negra. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
Sodré, Muniz. O terreiro e a cidade. Petrópolis: Vozes, 1988.
Nascimento, Beatriz. O negro e o poder do corpo. In: Eu sou Atlântica, 2007.
Guerreiro, Goli. A tradição recriada: as culturas afro-brasileiras. Salvador: EDUFBA, 2010.
Lopes, Nei. Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana. São Paulo: Selo Negro, 2011.
Mendes, Sônia Giacomini. Mulheres de axé. Rio de Janeiro: Pallas, 2004.