ONU e Martelly: o futuro do Haiti após as eleições
ONU e Martelly: o futuro do Haiti após as eleições
Apesar da intensa mobilização promovida pela ONU (Organização das Nações Unidas), um grande número de haitianos ficou de fora das controvertidas eleições presidenciais de 20 de março, levantando sérias questões sobre a legitimidade do governo que se prepara para assumir o poder.
“A maioria do povo haitiano não votou nesta eleição porque a maioria do povo está com o Lavalas”, disse Wilnor Moise, um ex-motorista de ônibus de 29 anos de Cité Soleil, referindo-se ao Fanmi Lavalas (FL), o movimento democrático do ex-presidente haitiano Jean-Bertrand Aristide, proibido de participar das eleições.
A disputada votação parlamentar e presidencial no Haiti, concluída no turno final de votação, é decisiva para o futuro de bilhões de dólares em ajuda prometida depois do terremoto e também para o futuro da força de 14 mil homens da ONU que ocupa o país desde o golpe de Estado que derrubou Aristide e seu partido em 2004.
A exclusão dos partidos progressistas e do FL das eleições deste ano, supostamente por causa de questões técnicas e de procedimento, abriram a arena eleitoral para dois candidatos presidenciais neoduvalieristas: Mirlande Manigat, de 70 anos, esposa (e substituta, dizem alguns) de um ex-presidente direitista, e Michel “Sweet Micky” Martelly, de 50 anos, um popular cantor de kompa. Martelly surgiu como o vitorioso.
Ambos os candidatos apoiaram os golpes de 1991 e 2004 contra Aristide e ambos pedem a reinstauração do repressor exército haitiano criado pelos EUA, que Aristide desmanchou em 1995.
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Patrick Elie, ex-conselheiro de Aristide e do presidente que agora encerra o mandato, Rene Preval, argumentou que os Estados Unidos tiveram um papel influente nos bastidores da eleição, ajudando a colocar a extrema direita no poder a fim de perpetuar a ocupação do Haiti e manter suas políticas neoliberais em vigor.
“Durante 25 anos, os EUA e a comunidade internacional procuraram tirar o povo e a população da cena política, e o plano deu certo até agora”, disse Elie, referindo-se ao que o acadêmico britânico Peter Hallward chamou de um dos mais prolongados e intensos períodos de contrarrevolução do mundo.
“Mas o vencedor dessas eleições terá pouquíssima legitimidade popular”, afirmou Elie, argumentando que o processo eleitoral foi uma farsa. “Por isso, o vencedor será a marionete da comunidade internacional e não terá poder nem apoio popular real.”
Em Cité Soleil, uma vasta favela de Porto Príncipe, soldados da ONU fortemente armados patrulham as ruas. Pichações proclamam: “ONU = miséria” e “ONGs = miséria”, em referência ao papel dominante que o sistema internacional da ONU desempenha no Haiti (a missão militar da ONU é a terceira maior do mundo, depois de Darfur e Congo).
“Isto é uma eleição de exclusão social; isto é uma seleção”, disse Wilson St. Val, de 35 anos, sentado à sombra de um veículo blindado de transporte de tropas brasileiro do lado de fora de um posto de votação em Cité Soleil.
Ex-guarda do Serviço Presidencial no governo de Aristide, St. Val – como centenas de simpatizantes do Lavalas – foi espancado e preso sem acusação depois do golpe de 2004. Ele ganhou a liberdade depois de cinco anos quando o terremoto destruiu a famosa Penitenciária Nacional do Haiti.
“Nossas bases são numerosas na clandestinidade, realmente numerosas. Não permitiremos que essas pessoas nos excluam da sociedade de modo algum. Eles nos chamam de bandidos, eles nos chamam de gangues, eles nos chamam de sequestradores. Mas não desistiremos”, afirmou ele.
Apesar da importância para a comunidade internacional, a votação de domingo sofreu com falhas administrativas generalizadas e a abstenção em massa entre os 4,7 milhões de eleitores do Haiti. E as forças da ONU atiraram e mataram pelo menos uma pessoa no dia da eleição. Uma revisão da votação em quatro grandes postos em três distritos de Porto Príncipe revelou um índice de comparecimento de menos de 18% em uma amostra de mais de 12.600 eleitores registrados.
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Funcionários da ONU dizem que a participação foi um pouco maior. O chefe da ONU no Haiti, o guatemalteco Edmond Mulet, alegou que o comparecimento foi maior do que no primeiro turno da votação presidencial, em novembro, quando o índice foi de 23%.
Mesmo se isso for verdade, o índice representa a menor participação eleitoral no hemisfério desde 1947, segundo o Centro de Pesquisa Econômica e Política, baseado em Washington.
E o índice está longe de conferir um mandato popular a Martelly, que usou suas raízes no entretenimento para se definir como um forasteiro político. Em telefonemas automáticos, ele prometeu mudanças e educação gratuita para todos os haitianos.
“Ele é um músico, não um político”, observou Ulysse Louisler, morador de 23 anos de um dos 1.000 acampamentos pós-terremoto de Porto Príncipe, afirmando que votaria em Martelly. “Com ele, não temos experiência. É por isso que queremos testá-lo.”
Menos conhecida que a música de Martelly é sua história de abuso de crack, ameaças de violência e laços íntimos com os líderes golpistas militares e políticos do Haiti, envolvidos em uma série de violações dos direitos humanos.
E Martelly tem sido um opositor aberto e agressivo do movimento democrático e popular do Haiti.
Em um vídeo recente no YouTube, o candidato ameaça um freguês em um bar onde cantou. “Todos esses merdas eram bichas de Aristide”, diz ele. “Eu mataria Aristide para enfiar um p. em seu c.”
A empresa espanhola Ostos & Sola, que cuidou da controvertida eleição do presidente mexicano Felipe Calderón, dirigiu a campanha de Martelly. Sob sua tutela, Tet Kale – ou careca, como ele é conhecido – abandonou grande parte, mas não toda a brutalidade e o palavreado sujo.
Patrick Elie advertiu que o novo governo, sem legitimidade popular, pode recorrer à repressão para manter o controle, com prováveis ataques à liberdade de expressão e reunião.
“Haverá um choque entre o que querem a comunidade internacional e os neoduvalieristas e o que a população ainda quer”, disse ele.
“E o choque poderá começar mais cedo do que se espera, pois a extrema direita não tem base popular e esses candidatos são totalmente antipopulares.”
*Artigo originalmente publicado no The Nation.
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