ONU dá mais uma punhalada nas costas dos palestinos
O Conselho de Segurança da ONU, que supostamente deveria agir como guardião da paz global, aceitou novamente legitimar a narrativa fabricada pela Casa Branca
A aprovação da Resolução 2803 pelo Conselho de Segurança da ONU, apresentada pelos Estados Unidos e avalizada por 13 votos favoráveis, com abstenções de Rússia e China, marca mais um capítulo vergonhoso na longa história de manipulação, seletividade e abandono do povo palestino pelas estruturas internacionais que deveriam garantir paz, justiça e autodeterminação.
Sob o pretexto de um “Plano Abrangente para o Fim do Conflito em Gaza”, os EUA impulsionaram a criação de uma Força Internacional de Estabilização que, na prática, institucionaliza a ocupação e tenta reconfigurar Gaza segundo interesses alheios ao povo que há décadas resiste à limpeza étnica e ao apartheid.

O Conselho de Segurança da ONU.
(Foto: UN Photo/Eskinder Debebe)
As facções da Resistência Palestina reagiram com contundência – e com razão. Para quem vive sob bombardeios constantes, cercos ilegais, ataques a hospitais, fome usada como arma de guerra e deslocamentos forçados massivos, é evidente que a resolução não representa qualquer solução sustentável, mas um arranjo imposto para salvar a imagem dos EUA e blindar Israel das responsabilidades que deveria enfrentar perante o direito internacional.
O Conselho de Segurança, que supostamente deveria agir como guardião da paz global, aceitou novamente legitimar a narrativa fabricada pela Casa Branca. É o mesmo padrão de décadas: quando os crimes são cometidos pelos aliados ocidentais, a ONU se retrai, silencia ou atua como instrumento de manutenção do status quo colonial.
O discurso envolto em linguagem diplomática esconde o objetivo real: impedir uma vitória política e moral da Resistência Palestina e, simultaneamente, abrir caminho para uma engenharia política que permita aos EUA redesenhar Gaza de acordo com seus interesses estratégicos.
Não se trata de proteger civis ou garantir soberania, mas de moldar um cenário pós-guerra controlado por potências estrangeiras, que nunca demonstraram qualquer compromisso sincero com o direito à autodeterminação do povo palestino.
A crítica das facções palestinas vai ao centro da questão: a resolução viola princípios fundamentais do direito internacional, incluindo a proibição da ocupação e da anexação de territórios pela força, o direito dos povos à resistência contra dominação colonial e a obrigação dos Estados de não apoiar crimes de guerra.
Ao invés de responsabilizar Israel pelas destruições em Gaza, que incluem milhões de deslocados, dezenas de milhares de mortos e feridos e a devastação de 75% das infraestruturas civis, o Conselho opta por criar estruturas administrativas e securitárias cujo efeito é perpetuar a despossessão, mascarada sob a retórica de “pós-conflito”.
É particularmente lamentável o alinhamento de governos árabes que deveriam estar do lado da resistência, mas que preferiram o aplauso fácil da diplomacia ocidental.
A Argélia, historicamente símbolo da luta anticolonial, apoiou a resolução, num gesto que contrasta brutalmente com seu passado e com sua própria narrativa de resistência. O apoio argelino representou uma concessão incompreensível justamente quando Gaza necessita de firmeza, e não de concessões que legitimem projetos impostos de fora.
A Autoridade Palestina, por sua vez, segue em seu papel de instrumento dócil, apostando numa diplomacia que se mantém desconectada da realidade da ocupação e que insiste num processo político falido, incapaz de obter qualquer avanço concreto para seu povo.
A resistência, ao contrário, reafirma que nenhum rearranjo administrativo imposto substituirá o direito inalienável do povo palestino à libertação total de sua terra. E defende que qualquer intervenção internacional só terá legitimidade se atender a dois princípios básicos: a retirada completa das forças de ocupação e a garantia de que o povo palestino conduza seu destino sem tutela externa.
A Resolução do Conselho de Segurança normaliza a presença de forças estrangeiras, cria uma arquitetura de segurança que atende aos interesses de Israel e exclui as forças de resistência do processo político, numa tentativa explícita de minar sua legitimidade interna e regional.
Os EUA tentam transformar Gaza num laboratório de gestão colonial do século XXI, onde uma “força internacional” opera como intermediária entre o ocupante e o povo ocupado, numa versão contemporânea das missões coloniais que, no passado, repartiam territórios sob o argumento de civilizar ou pacificar povos que lutavam por liberdade.
O papel do Conselho de Segurança deveria ser o de impor sanções, exigir responsabilização de perpetradores de crimes de guerra, garantir corredores humanitários e reconhecer a legitimidade da resistência conforme prevê o direito internacional.
Mas a ONU continua operando sob o veto e a hegemonia dos EUA, que desde sempre tratam a Palestina como uma variável de sua geopolítica e não como um povo com direitos inegociáveis.
O povo palestino não precisa de “estabilização”. Precisa do fim da ocupação. Precisa que o mundo reconheça, sem eufemismos, a natureza colonial e racista do regime imposto por Israel. Precisa que o direito internacional seja aplicado não apenas nos textos e discursos, mas na prática.
A ONU inaugura mais um período de ingerência. Enquanto isso, a Resistência Palestina continua viva, coerente, politicamente lúcida e determinada a não permitir que o destino de Gaza seja decidido por mãos estrangeiras.
O que está em jogo não é apenas o futuro da Faixa de Gaza, mas a batalha global entre colonização e autodeterminação. E, como sempre, o povo palestino segue na linha de frente dessa luta, mesmo quando o mundo lhe vira as costas.
(*) Sayid Marcos Tenório é Historiador e Especialista em Relações Internacionais. É fundador e vice-presidente do Instituto Brasil-Palestina (Ibraspal). Autor do livro Palestina: do mito da terra prometida à terra da resistência (2. Ed. Anita Garibaldi/Ibraspal, 2022).























