Objetivos de Desenvolvimento do Milênio para os ricos?
Objetivos de Desenvolvimento do Milênio para os ricos?
Ao longo de muitas décadas, declarações e megaconferências, as Nações Unidas e os líderes do setor de ajuda trabalharam incansavelmente para fazer com que órgãos governamentais e não governamentais e a mídia falassem a mesma língua, usassem o mesmo discurso e contassem a mesma história. Essa história trata da inclusão dos pobres e da conclamação dos ricos a ser generosos com quem promove a inclusão.
Melhor que qualquer declaração de intenções anterior, os ODM atenderam à necessidade de uma narrativa única. Trata-se de uma liturgia para uma igreja abrangente, que inclui uma série de questões, da frequência escolar à água limpa e à saúde de mães e filhos. Agrupados, esses problemas atraem um espectro diversificado de grupos voltados a temas específicos. Os ODM os tiram de seus esconderijos e os levam a uma grande coalizão de política unida em torno de uma só bandeira. A abordagem combina com o roteiro padrão da grande mídia: alguém está sofrendo; a ajuda chega; o sofrimento é aliviado. Tudo bem quando acaba bem.
Assim, os pacotes maravilhosos de metas, sub-metas, indicadores e cronogramas dos ODM, proclamados em uma grande reunião de cúpula das Nações Unidas em 2000 e expandidos em 2005, subordinam o realista “gerenciamento de resultados” dos neoliberais aos impalpáveis objetivos de “desenvolvimento humano” dos social-democratas. Para a criação de coalizões de políticas, essa tem sido uma combinação eficiente. Ambas as abordagens se concentram em descritores de pobreza, veem a solução prática dos problemas como o caminho para derrotar a pobreza e muitas vezes evitam questões cruciais como a desigualdade. Eles mantêm problemas políticos incômodos firmemente à margem. São dignos e agradáveis, uma generalização aceitável para todos.
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Em causas complexas, no entanto, os ODM não nos ajudam a erradicar os problemas. Eles podem chamar a atenção para fatos importantes sobre a pobreza e o impedimento das capacidades humanas. Eles implicam – e este é um de seus méritos – a ideia de que essas aflições são evitáveis e podem ser radicalmente reduzidas. Mas os ODM não dizem nada significativo sobre o porquê da persistência dessas aflições. Como afirma um novo e contundente relatório do Instituto de Pesquisa das Nações Unidas para o Desenvolvimento Social (UNRISD, na sigla em inglês), os ODM “concentram-se na mensuração das carências das pessoas, em detrimento da compreensão do motivo das carências”. Nesse sentido, os ODM são uma distração.
Uma razão para o silêncio pode ser o fato inconveniente de que, como mostraram países como o Vietnã, a redução da pobreza tem maior chance de sucesso onde os governos promovem políticas de desenvolvimento disciplinadas e em total desacordo com o fundamentalismo de mercado exigido pelos doadores nos últimos trinta anos.
Elogiados no discurso, ignorados no orçamento
Os governos dos países de baixa renda não dão atenção real aos ODM, muito menos quando elaboram seus orçamentos. Em vez disso, os líderes dão atenção ao FMI e outros atores que controlam o dinheiro de verdade. E o que o FMI pensa dos ODM? Como foi revelado em um estudo recente sobre as políticas dos ODM, o pessoal do FMI não os leva a sério, afirmando, por exemplo, que “mencionamos os ODM na introdução dos relatórios, mas eles não mudam nada”. De fato, não há indícios de nenhuma mudança fundamental.
E os doadores, levam os ODM a sério? Sem dúvida, todos tecem elogios aos ODM, e os citam com frequência para justificar seus orçamentos de ajuda. Mas eles ainda precisam realmente financiar aquilo que dizem apoiar.
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Os gastos dos doadores com os quatro setores prioritários do ODM número oito – educação básica, saúde básica, nutrição e água/saneamento – praticamente não mudaram. No início da era dos ODM, em 2001-03, esses setores recebiam cerca de 10,4% da ajuda total dos países ricos (da OCDE). No período de 2006-08, esse índice era de cerca de 10,9%. Mas os doadores, lembremos de novo, têm o cuidado de jamais assumir um compromisso firme. Nada do que eles prometem fazer ou se recusam a fazer é política ou juridicamente compulsório. Em contrate, a maioria dos receptores da ajuda tem de obedecer às regras do doador, ou então sofrer consequências desagradáveis.
Quem está ajudando quem?
Mas quem está ajudando quem? Essa questão raramente é observada, mas é vital para entender por que o FMI e seus associados continuam a promover o fundamentalismo de mercado. Para certos setores dos países ricos, os resultados dessas políticas têm sido muito compensadores. Isso fica evidente quando acompanhamos o caminho do dinheiro. Especialmente a partir do final dos anos 1990, a maior parte dos fluxos globais, excluídos a ajuda externa, o investimento estrangeiro direto e as remessas, foi dos pobres para os ricos, como resume a tabela abaixo.
Transferência líquida média anual de recursos financeiros para regiões de renda mais baixa no mundo, 2000 – 2008
| África | US$ 50 bilhoões negativos |
| Leste e Sul da Ásia | US$ 239 bilhões negativos |
| Oeste da Ásia | US$ 105 bilhões negativos |
| América Latina e Caribe | US$ 65 bilhões negativos |
| Economias em transição* | US$ 75 bilhões negativos |
| Total | US$ 534 bilhões negativos |
*Principalmente aquelas do bloco oriental.
Fonte: ONU-DESA, 2010, Situação e Perspectivas Econômicas Mundiais 2010, Nova York: Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais da ONU, tabela III.1, p. 73.
Esta compilação baseia-se em dados do FMI, Base de Dados do Panorama Econômico Mundial, outubro de 2009; e FMI, Estatísticas de Balança de Pagamentos. Estes fluxos são os registrados; muitas transferências ilícitas não são registradas e portanto não estão refletidas aqui.
Vale lembrar que, em 2002, uma equipe de economistas do Banco Mundial calculou que entre US$ 40 bilhões e US$ 60 bilhões em desembolsos de ajuda extra seriam necessários, além de outras medidas, a fim de alcançar os ODM – quantias equivalentes a cerca de um décimo do fluxo registrado dos pobres para os ricos. A redistribuição de renda para os ricos melhora os balanços finais do setor financeiro, especialmente em Wall Street e nos paraísos fiscais. Outros beneficiados são as elites dos países pobres, cujas fortunas frequentemente estão guardadas em jurisdições ricas.
A relação que prevalece, portanto, é essencialmente predatória. Nela, os ODM e a ajuda têm funções meramente compensatórias, algo que encontra ecos no passado. A relação essencial do feudalismo, como descrita pelo historiador francês Marc Bloch, era a predação compensada pela caridade.
Apesar do novo discurso sobre “a redução da pobreza e o crescimento”, as cidadelas do sistema de ajuda em Washington continuam promovendo as mesmas fórmulas que frustram o desenvolvimento equitativo nos países pobres e facilitam a hemorragia de recursos e fundos desses países. Nessas condições, tentar atingir os ODM é como tentar subir uma escada rolante que desce.
*David Sogge é analista e consultor independente, associado ao Transnational Institute. Artigo publicado em Transnational Institute. Tradução de Alexandre Moschella para o Opera Mundi
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