Não é fácil poder dar, em um período relativamente curto, duas entrevistas às páginas amarelas da revista Veja. É preciso estar muito afinado com o conservadorismo raivoso dessa publicação para merecer tal distinção.
Sei disso por experiência própria. Há muitos anos, um colunista-fujão de Veja dedicou-me
um artigo cheio de acusações e insultos. Ingenuamente, enviei minha
resposta a esta publicação, que se proclama paladina da liberdade de
expressão. Meu texto não foi publicado e, para minha surpresa, li uma
semana mais tarde uma resposta à minha resposta não publicada.
O embaixador-aposentado Roberto Abdenur teve mais sorte que eu. Emplacou uma segunda entrevista à Veja,
talvez para retificar o tiro da primeira que concedeu (7 de fevereiro
de 2007). Ou quem sabe para “compensar” o excelente depoimento do
Presidente Juan Manuel Santos, na semana anterior, que não sucumbiu às
tentativas da revista de opor o Brasil à Colômbia na América do Sul. Em
sua primeira entrevista o diplomata destilava ressentimento contra o
ministro Celso Amorim, que, num passado distante, o havia convidado
para ser secretário-geral do Itamaraty e, mais recentemente, o havia
enviado para uma de nossas mais importantes embaixadas – a de
Washington. Abdenur preservava, no entanto, a política externa
brasileira e, sobretudo, o presidente Lula, que o havia designado como
seu representante nos Estados Unidos.
Leia mais:
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Agora, tudo mudou. A crítica é global e dela não escapa nem mesmo o
presidente da República. Em matéria de política externa, Lula não passa
de um “palanqueiro”, a quem o Itamaraty “não sabe dizer não”. Faltando
à verdade, o intrépito embaixador diz que nosso presidente “começou a
bater em Obama antes de eleito e não cansa de dar canelada no
americano”. Abdenur desconhece, ou finge desconhecer, as inúmeras
manifestações de simpatia – e de esperança – que a eleição do atual
Presidente norte-americano provocou em seu colega brasileiro. Ao invés
disso, o ex-embaixador escorrega em rasteiro psicologismo ao detectar
no Presidente Lula “um elemento de ciúme” em relação a Obama, pois este
último lhe teria subtraído “a posição privilegiada no palanque
global”…
Barbudinhos
Abdenur fez 20 anos de sua carreira diplomática durante o regime
militar e não sofreu nenhum constrangimento. Até aí tudo bem. Muitos
outros de seus contemporâneos tampouco foram perseguidos. Mas essa
experiência profissional não lhe autoriza fazer analogias entre a
política externa atual e aquela levada adiante nos primeiros anos da
ditadura, quando chanceleres proclamavam que o que “é bom para os
Estados Unidos é bom para o Brasil” ou patrocinavam o envio de tropas
brasileiras para esmagar as mobilizações populares na República
Dominicana.
É claro que aquelas inflexões da política externa brasileira foram
tomadas por “razões ideológicas” (de direita). Mas a pergunta que não
quer calar é: quando não temos motivações ideológicas na política, em
particular na política externa?
Durante o governo Geisel, quando Abdenur integrou o grupo dos
“barbudinhos” do Itamaraty, foram resgatados princípios da Política
Externa Independente de San Tiago Dantas, Afonso Arinos e Araújo
Castro, apresentados para a ocasião sob a eufemística denominação de
“pragmatismo responsável”. Mas aquela política – que tinha conteúdos
progressistas, diga-se de passagem – também era expressão do projeto
autoritário de “Brasil Potência” propugnado pelos militares. Tanto ela,
como a Política Externa Independente do período Goulart-Jânio, tinham
fortes componentes “ideológicos”, como é normal em qualquer sociedade,
democrática ou não.
Falso choque
É igualmente “ideológica” a reivindicação do ex-embaixador de que nossa
diplomacia se alimente de “valores ocidentais”. Mais do que ideológica,
é ultrapassada e perigosa. Ultrapassada, pois traz à memória os tempos
da “guerra fria”, quando se falava em “civilização ocidental e cristã”
para esconder propósito profundamente conservadores. Perigosa porque
traz à tona e legitima a ideia de choque de civilizações (entre
“oriente” e “ocidente”) que os neo-conservadores têm defendido com
tanta insistência nos últimos anos para justificar suas aventuras
belicistas, queima de livros ou interdição de templos religiosos.
O ex-embaixador se alinha com as críticas da oposição brasileira contra
a política externa atual. Seletivamente, ataca nosso bom relacionamento
com Venezuela, Bolívia e Equador, supostamente motivado por afinidades
ideológicas, esquecendo-se de mencionar nosso igualmente bom
relacionamento com Argentina, Chile, Peru e Colômbia. Motivado por quê?
Escondendo-se detrás de “boa fonte boliviana bem informada”, desconhece
ou deliberadamente omite, a cooperação militar e policial que se
desenvolve com a Bolívia e com outros países para fazer frente ao
flagelo do narcotráfico na região.
Exclusão
É próprio do pensamento conservador tentar apropriar-se de valores
universais para encobrir interesses particulares – de classe,
estamento, grupo ou etnia. A história do Brasil está cheia de exemplos.
Nosso liberalismo conviveu alegremente com a escravidão. Nossa
república proclamou retoricamente, durante décadas, a cidadania plena e
praticou a mais brutal exclusão econômica, social e política. Tudo isso
à sombra o Iluminismo, dos ideais da Renascença, do Humanismo ou da
Revolução Americana que o embaixador invoca em seu vago projeto
diplomático.
O presidente Lula, assim como quase todos governantes, manteve e mantém
relações com chefes de Estado e de governo dos mais distintos países:
de democráticos, de regimes teocráticos, de partido único ou de
responsáveis por graves violações de direitos humanos em nível local ou
global. Não será difícil encontrar os nomes dos países na tipologia
antes aludida.
Esses relacionamentos não se devem a idiossincrasias presidenciais
como, de forma desrespeitosa, pretende Abdenur. Eles se inserem no
difícil esforço de construção de um mundo multilateral e, sobretudo, de
um mundo de paz.
São muitos os caminhos para atingir esse objetivo. Vão do uso da força
militar ao emprego das sanções que golpeiam mais ao povo do que aos
governantes dos países atingidos. Mas há também o caminho da
negociação, da diplomacia que não renuncia valores, mas que não faz
deles biombo por traz do qual se ocultam inconfessáveis opções
políticas e ideológicas, particularmente quando a sociedade brasileira
é chamada a decidir seus destinos pelos próximos quatro anos.
P.S.: Há algum tempo, a imprensa noticiou que Roberto Abdenur estava
dando cursos de política externa para os Democratas (ex-PFL). Não
acreditei. Agora passei a acreditar.
*Marco Aurélio Garcia é assessor para assuntos internacionais da Presidência da República.
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