Sábado, 6 de dezembro de 2025
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O Brasil teve um julgamento histórico. Pela primeira vez, um golpista foi condenado por golpismo, numa sequência de eventos movida por forças e alianças incomuns. 

Já no primeiro ano do governo Bolsonaro, mesmo apesar das inúmeras manifestações um tanto agressivas dos fardados, os noticiários mostravam um judiciário cada vez mais, digamos, em contato, com as Forças Armadas. As armas, subordinadas ao Executivo, repetiam um movimento histórico de crescente autonomia política, buscando suas próprias alianças e objetivos. 

Julgamentos da Ação Penal 2668 - Núcleo 1. <br>(Foto: Antonio Augusto/STF)

Julgamentos da Ação Penal 2668 – Núcleo 1.
(Foto: Antonio Augusto/STF)

Naquela mesma época, eram veiculados burburinhos de “rupturas institucionais”, movimentos de “empresários, políticos e militares” que teriam sido contidos pelo jogo de cintura mariliense de Dias Toffoli. O mesmo juiz, inclusive, procurava ser o intermediário de um grande acordo nacional. Logo após clamar pelas reformas da previdência e fiscal, Toffoli dizia que, apesar da “importância do Poder Judiciário, é preciso que a política volte a liderar o desenvolvimento do país”.

De lá para cá, entretanto, o protagonismo do judiciário apenas aumentou. É preciso dizer: o STF foi fundamental para a contenção do golpismo. Não fundamental apenas por “defender a democracia”, mas por ter costurado todos os pactos políticos e movimentos necessários para que o golpe fosse frustrado. Existem diversos relatos que mostram a atuação de Toffoli, Moraes e outros: desde jantares, “calmantes”, a atuação junto com Aras e membros da Justiça Militar, os próprios militares, e, mesmo, “peculiaridades”, como a forma com que o inquérito 4781 foi aberto diante da inércia da PGR e da PF. O Supremo foi, de fato, o centro do poder.

Essa situação nos provoca a refletir como a cabeça do Poder Judiciário se coloca na organização do poder. A Revista Opera foi protagonista no resgate da perspectiva analítica de Edmundo Coelho em tomar o Exército como uma “organização social”. Nessa lente, o Exército não se reduz a um instrumento de interesses da sociedade de classes, mas um corpo; não um monolito, mas uma unidade. Interesses e divergências ocorrem em seu interior; mas elas se resolvem. Ainda que a resolução seja expulsar e entregar à prisão os perdedores. Entretanto, ele não se desmantela. O eventual instrumentalismo por uma ou outra classe seria, na verdade, uma estratégia, muitas vezes de fraqueza, ao invés de uma condição per se da organização. Aceitar o caráter de organização social significa adotar a consequência teórica de que organizações “não servem objetivos, mas são servidas por eles”[1].

Seria o momento de pensar nossa Corte constitucional, também, como uma organização? É evidente que se trata de um Poder. Mas parece que estamos diante de uma reconfiguração dos movimentos que são tidos como aceitáveis e razoáveis. Comportamentos ativos, não típicos de uma corte, eventuais “inconstitucionalidades do bem” e movimentos políticos são tidos como positivos, desde que em prol de um bem maior. O protagonismo do Supremo não é só evidente, como já é ansiado. A ineficiência da representação no Executivo e no Legislativo abrem novas capas (togas?) de legitimidade e novas formas de agarrar, dominar e submeter o poder político. Seja para questões como a criminalização da homofobia, tão protelada por nossos representantes, seja na contenção de um golpe. Repito: se dependêssemos dos outros dois poderes, não teríamos democracia nesse momento.

A atuação ativa é rascunhada desde, pelo menos, a década de 90, com a ascensão de doutrinas como a interpretação brasileira do pós-positivismo ou do civil-constitucionalismo. A constituição e seus guardiões naturais deveriam ter mais influência normativa na sociedade civil, dizem as doutrinas, e o direito deveria ser submisso a todas as decisões do centro nervoso do Poder Judiciário. O fato dos principais juristas expoentes dessas correntes estarem no Supremo é apenas consequência da vitória dessas concepções mais ativas para o judiciário. E a atividade dá forma

Por meio dessa lente organizacional, inclusive, o voto do Ministro Luiz Fux faz sentido para além de seus interesses pessoais. A verdade é que a corte tem precedentes para, se necessário, voltar atrás, seja nessa decisão ou em outros entendimentos. A corte legitima a si própria ao acenar à extrema direita e comunicar que ela “tem voz” ali dentro: as preparações para as eleições de 2026 certamente envolverão pleitos e reivindicações relacionadas ao voto de Fux. 

É como se o voto do ministro delimitasse a legitimidade de (possíveis) bandeiras do bolsonarismo. A corte se torna inevitável; por meio do voto, tutela como a política pode acontecer, incluindo aí os caminhos para um “bolsonarismo sem Bolsonaro”, dentro da legalidade e, mesmo, legítimo aos olhos do direito.

Quando vemos os matizes ideológicos dentro do Tribunal e a forma como cada novo ministro se mescla após nomeado e protegido pela capa da vitaliciedade, podemos dizer que o STF está em disputa ou, na verdade, disputa a sociedade? 

Fica difícil dizer, portanto, como esquerda, que derrotamos um golpe. Às vezes parece que, na verdade, um golpe foi derrotado. A condenação de Bolsonaro e da camarilha golpista parece retroceder a extrema-direita, mas ela abre oportunidades de ofensiva e avanço de projetos como o fim da jornada 6×1 ou o enterro da Reforma Administrativa? Ou, na verdade, temos apenas o fortalecimento de um novo ator político que não necessariamente joga pelos mesmos interesses que os nossos? “Jogar parado”, nesse momento, é deixar que a extrema direita se renove sob novas alianças, slogans e estética, e podemos ver pela aprovação da PEC da Blindagem, as pressões por anistia e capa de “bolsonarista moderado” que Tarcísio veste.

O novo ator político não serve interesses, mas é servido por eles. Hoje, condenou um campo. Mas ontem, aprovou o impeachment. Os votos da corte abrem frestas para que ela jogue por qualquer lado, em diferentes épocas. Um voto vencedor é tão frágil quanto o último soldado disposto a defendê-lo até o fim, é verdade. Mas, desde o vácuo aberto pela institucionalidade frágil e cambaleante que observamos desde os questionamentos às eleições de 2014, parece que a toga esconde, na verdade, um coturno.

(*) Leonardo L. tem formação jurídica e em teoria do Estado. Hoje trabalha com tecnologia. Flamenguista e comunista.

(**) Bernardo Candal é flamenguista e comunista. Bacharel em direito pela UERJ, Técnico Administrativo em Educação (TAE) do Colégio Pedro II e militante sindical no Sindscope/RJ

Notas:
[1]  COELHO, Edmundo Campos. Em busca de identidade: o Exército e a política na sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Forense Universitária. 1976, p. 30