Sábado, 6 de dezembro de 2025
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Uma característica curiosa do contemporâneo é a crescente aversão a negatividades próprias da existência: vemos cada vez mais recusas ao envelhecimento, uma ode à eterna juventude; o crescimento do imperativo de bem-estar (ou wellness) físico, individual, mobilizando um imaginário de saúde como performance diária, ditada por tendências que mudam semanalmente; as experiências de desconforto promovidas por obras de arte e entretenimento são continuamente combatidas, por vezes com desculpas suspeitas — como ocorreu com o livro Maus, de Art Spiegelman, que retrata o holocausto em quadrinhos, sendo censurado em uma escola nos EUA teoricamente por conter palavrões e nudez; assim como ocorre uma crescente repulsa e recusa à cenas de violência (e até mesmo de sexo) no cinema e em séries de televisão/streaming. 

Como já notava a filósofa Alenka Zupancic ao menos desde 2008, o clima ideológico contemporâneo tornou necessário que percebamos as coisas terríveis que podem acontecer conosco, em última análise, como algo positivo — uma experiência que irá render frutos, ensinamentos, quiçá até mesmo algum lucro na vida futura. “Negatividade, falta, insatisfação, infelicidade”, ela escreve, “são percebidos cada vez mais como falhas morais — pior, como uma corrupção no nível do próprio ser ou da própria vida”, e é isso o que irá nomear como Biomoralidade. Essa aversão à negatividade e, ainda, esse imperativo da positividade (onde sentir-se bem e ser feliz seriam o mesmo que ser uma boa pessoa, e não se sentir bem ou não ser feliz revelariam justamente o contrário), encontram-se fortemente nos efeitos culturais da digitalização na atualidade.

Dentre muitos aspectos dessa espécie de mitigação e ojeriza à negatividade, gostaria de elencar um que considero central e por vezes negligenciado: a arquitetura do digital organizou um verdadeiro arsenal em torno de uma experiência fundamental da humanidade, o tédio. Nossa cultura atual, permeada pela digitalização, é fundamentalmente hostil à amplitude dessa experiência — mais do que hostil, ela visa minar todas as possibilidades para que sequer ocorra fora de suas margens e mediações, criando pessoas inaptas a desenvolverem um senso próprio de agência frente ao encontro com o tédio. 

Qual foi a última vez que você, leitor, permitiu-se de fato sentir o tédio sem ter essa sensação minada ou condicionada em segundos por um simples par de cliques e rolar de dedos na tela do seu smarphone? Sentir-se entediado é também uma experiência fundamental e subestimada: ela oferece uma estética específica da densidade do tempo, algo totalmente sobredeterminado hoje.

As mídias digitais tornam as pessoas ainda mais entediadas — rolar a tela do celular é menos custoso do que ir ao cinema
(Foto: Susan Jane Golding/Flickr)

Em um interessante estudo publicado na revista Nature no ano passado, sugere-se uma hipótese um tanto quanto contra-intuitiva: poderíamos pensar que hoje, com a abundância de telas para todos os lados, com aplicativos para todas as coisas e conteúdos sobre todos os temas, o tédio foi praticamente superado — certo?! Mas, e se for justamente o contrário? Baseando-se em pesquisas realizadas nos EUA e na China, para os autores a experiência social e individual do tédio aumentou nos últimos anos. A mediação conceitual que fazem é, entretanto, crucial aqui: sua definição está relacionada a uma compreensão de psicopatologia e saúde mental específica, orientada pelo excesso — e até mesmo pela condição crônica — do tédio. 

Definindo o tédio como um “estado de aversão entre querer, mas ser incapaz de se engajar em atividades satisfatórias”, afirmam que está intrinsecamente ligado à atenção. Há assim uma lacuna entre o quanto se quer estar engajado (engaged) e o quanto efetivamente se está, além de uma multifatorialidade causal que engloba tanto a ausência de sentido (formal, narrativo, existencial…), ausência de autonomia, ausência da sensação de agência e de desafios. Todas essas faltas são instigadores do sentimento de tédio. Apesar da abordagem na pesquisa ser centrada no “bem estar mental”, colidindo com a característica desprazerosa do tédio, os autores não deixam de reconhecer que esse sentimento “serve a uma importante função auto-regulatória: informa às pessoas que falta, à situação corrente, sentido e realização (meaning and fulfillment)”, podendo levar a “intenções pro-sociais, resgate de memórias nostálgicas, auto-reflexão e busca por engajamento significativo”.

Assim, o foco do estudo passa a ser não simplesmente o tédio, mas o tédio crônico, que pode debilitar não só o “bem estar”, mas também o aprendizado e o comportamento, estando “associado a problemas mentais como sintomas depressivos, ansiedade, efeitos de aprendizado não desejados tipo pior performance acadêmica e também a comportamentos problemáticos como agressões sádicas”. A sugestão central do artigo é de que as mídias digitais tornam as pessoas ainda mais entediadas ao dividir a atenção, elevar os níveis de desejo por engajamento, reduzir o senso de sentido e aumentar a variação relativa entre custos de atividades — rolar a tela do celular é efetivamente menos custoso do que ir ao cinema. Paradoxalmente, como estratégia para mitigar o tédio, as mídias digitais revelam-se também promotoras das condições para seu estabelecimento crônico.

Reforçamos então a distinção entre o tédio enquanto experiência e a sua administração crônica: mitigando o encontro com essa experiência, produz-se um tipo de distração, de prestidigitação — “técnica de iludir o espectador com truques que dependem especialmente da rapidez e agilidade das mãos; ilusionismo, mágica” — pelas próprias mãos do usuário. Essa produção, entretanto, não encerra o tédio, menos ainda torna-o potencialmente reflexivo: com uma espécie de “morte do ócio”, a colonização do tempo livre através de uma arquitetura da desatenção perpetua mesmo assim um tédio crônico onde a possibilidade de encontro com a negatividade, a não-coincidência consigo, o espaço da ausência do sentido que convoca sua produção, é gradativamente minado, restando “apenas” a “produção de dados”. 

A arquitetura da desatenção desdobra-se em uma efetividade (anti)política de fragmentação social, onde a digitalização da experiência social é voltada para a modulação da cultura e, assim, da sociedade. O tédio — como experiência a ser atravessada — é um inimigo fundamental dessa modulação: sentir-se entediado é também experimentar uma desambiguação na própria experiência do tempo e implica uma possibilidade de suspensão da temporalidade automatizada que nos sequestra cotidianamente. Entretanto, revela-se hoje também um pretexto para recorrermos às plataformas — rolar por horas e horas uma timeline praticamente infinda consumindo conteúdos semi-instantâneos revela, enquanto “atividade”, a própria imediatez a que somos condenados pelas telas, Sísifos digitais, somos impedidos de atravessar o tédio, perpetuando-o cronicamente — a tela rola tal qual a pedra. 

Adestrados por entidades abstratas que concretizam-se constantemente em nossos bolsos, entidades produzidas e legitimadas, vale dizer, por oligopólios estrangeiros — que cada vez mais afetam a existência política de diversas nações, a existência cultural de diversas sociedades e a realidade psíquica dos sujeitos —, somos lançados aos efeitos de uma nova infraestrutura que muda as próprias condições de relação com o mundo, a realidade social, o desejo, a linguagem; estamos atravessando um processo de mudança radical da mediação tecnológica na história, distraídos. Talvez (re)encarar o tédio seja fundamental para retomarmos a própria atenção. 

(*) Cian Barbosa é flamenguista e morador do Rio de Janeiro. Bacharel em sociologia (UFF), doutorando em filosofia (UNIFESP) e psicologia (UFRJ), pesquisa teoria do sujeito, crítica da cultura, violência, tecnologia, ideologia e digitalização; também é integrante da revista Zero à Esquerda, tradutor e ensaísta, além de professor e coordenador do Centro de Formação.