O sucesso de Cecilia, a restauradora de Cristo
Ainda que involuntária, obra da octogenária espanhola promove uma quebra com uma visão conservadora de Jesus
Em dois dias, Cecilia ganhou uma página no Facebook que tem mais seguidores que a do Opera Mundi. E que anuncia: “Esta página foi criada em RESPEITO E ADMIRAÇÃO POR CECÍLIA!! Que isto fique bem claro, quem quiser sacaneá-la que vá a outras páginas. Para nós, o que Cecilia fez parece insuperável. Te amamos, Cecilia!”
Cecilia é a octogenária que tentou, sem sucesso, restaurar um Cristo, criado originalmente por Elías García Martínez, em uma igreja espanhola. O resultado tornou-se uma piada nas redes sociais, praticamente um dos memes do ano. Uma reportagem em vídeo mostra o constrangimento da pintora. Mas o que explica o fato de a tentativa fracassada de restauração ter resultado em uma mensagem tão engraçada e, ao mesmo tempo, poderosa?
Divulgação/Facebook

Imagem de capa da página em homenagem a Cecilia no Facebook: casos de releituras de obras clássicas.

Parece haver, neste caso, uma conjunção de fatores. O primeiro deles é, claro, o caráter involuntário da nova obra de arte: Cecilia não queria fazer um novo Cristo e, claramente, não estava tecnicamente preparada para a tarefa. Ao ousar fazer algo que estava além de suas forças, ela mostrou um descompasso grotesco entre seu alto grau de voluntarismo e sua insuficiente formação. O que é grotesco, neste caso, não é o resultado em si da pintura, mas essa distância entre o querer e o realizar. Um grotesco que não provoca repulsa, mas seu contrário, o riso.
O segundo motivo para o humor está na pintura em si: seu Cristo não se parece com as imagens tradicionais de Jesus. Cecilia criou um novo Cristo, que se assemelha, paradoxalmente, com os retratos supostamente realistas que arqueólogos e pesquisadores construíram e difundiram recentemente. Um Cristo mais palestino, mais escuro, de cabelo crespo. O Cristo de Cecilia tem essas características, e um rosto ainda mais redondo, que o aproxima, etnicamente, também, de traços indígenas latino-americanos.
BBC/Reprodução
Além disso, seu Cristo ficou com a boca torta, num sentido que lembra um quadro de Tarsila do Amaral. “A negra” tem olhos puxados, mas não é evidente se eles são de origem africana ou de miscigenação com grupos indígenas: afinal, é uma negra brasileira.
[À esquerda, uma hipótese para o verdadeiro rosto de Cristo divulgada recentemente por pesquisadores, com traços mais palestinos e escuros]
Tudo indica que o Ecce Homo de Cecilia nasceu contra a vontade da artista. A página em sua homenagem coloca bem a questão: há uma releitura de uma imagem referencial. No caso dela ainda mais significativa porque a versão original não está no topo dos cânones artísticos, mas sim no topo da popularidade ocidental entre os arquétipos que assombram e/ou maravilham os homens.
Cecilia, colocada ao lado de Picasso, não releu Rembrandt; não fez, como Hockney, uma reconstrução de Van Gogh. Alterou um arquétipo e, nesse sentido, é uma obra notável, que foi parar rapidamente numa versão (que infelizmente não vai para as bancas) da revista Bravo!
Quando a primeira notícia da restauração fracassada surgiu, coloquei-me uma questão: até que ponto era realmente necessário restaurar aquela pintura (mais uma), daquele Cristo europeu do século XIX? Quantos iguais ou semelhantes a ele se espalharam e continuam a ser produzidos em série para ornamentar paredes e paredes de igrejas?
Se, cinquenta anos atrás, um padre da paróquia de Borja (Zaragoza) decidisse pintar aquela parede a cal e deixá-la branca, provavelmente ninguém se oporia. Poderia, ainda, chamar um outro pintor, para que fizesse um novo Cristo, que, muito possivelmente, se pareceria com o anterior. Caso houvesse resistência, seria uma questão que dificilmente atravessaria fronteiras.
Divulgação/Facebook
Não se prega aqui, claro, a destruição dos patrimônios artísticos da humanidade. Mas é o caso de pensar o quanto eles são manipulados e distorcidos pela ideologia e, eventualmente, por interesses econômicos.
Por tudo isso, num certo sentido, como disse a pintora Juliana Scorza no Facebook, “a velha mandou bem. Afinal, quem disse que Jesus tinha olhos azuis?”
Sem querer, Cecilia difundiu uma nova imagem de Cristo, muito mais condizente com a ideia de uma humanidade sem hierarquias de raça, mais miscigenada e democrática. Essa pintura, que é, sobretudo, a expressão – voluntária ou não – de um desejo de igualdade, tem, de fato, de ser preservada.























