Sábado, 6 de dezembro de 2025
APOIE
Menu

O comitê do prêmio Nobel da Paz parece querer evoluir da premiação por feitos já realizados para o imperialismo para a legitimação de atos imperialistas que estão por vir. 

Nos últimos anos (2021 pra cá) esse comitê escolheu sistematicamente opositores aos governos que os EUA consideram inimigos: Rússia, Bielorrússia, Irã e Venezuela. Não dá mais pra fingir ser uma coincidência, então vamos ver que prêmio é esse, quem indica, quem escolhe, e a que ele serve. 

Que prêmio é esse?

Alfred Nobel, formulador do Prêmio Nobel, foi ninguém menos que o criador da dinamite. Seu pai notabilizou-se por criar outro artefato de paz: o torpedo. Quando nos Estados Unidos, Nobel trabalhou com John Ericsson, que projetou o Couraçado da Guerra Civil Americana, o USS Monitor. Sua primeira patente sueca, em 1863, foi sobre “maneiras de preparar pólvora”. Boa parte da sua riqueza veio da fábrica da família, que produziu armamentos para a Guerra da Crimeia (1853-1856). 

Durante os experimentos com nitroglicerina para criar a dinamite, cinco pessoas morreram, inclusive seu irmão, Emil. Três anos após a morte do irmão, Alfred Nobel patenteou o explosivo nos EUA. Com o sucesso, abriram a Nobel Brothers Oil Production Company, segunda maior petrolífera do mundo, atrás apenas da de Rockefeller. O ocaso dessa companhia só veio com a Revolução Russa. Antes de morrer, Nobel foi acusado de alta traição contra a França por vender Ballistite (explosivo) para a Itália, e precisou sair do país. 

Em 1888 confundiu-se a morte de mais um irmão seu com a sua. O obituário dizia: “Le marchand de la mort est mort” (“O mercador da morte está morto”), e continuou dizendo, “Dr. Alfred Nobel, que ficou rico encontrando maneiras de matar mais pessoas mais rápido do que nunca, morreu ontem“. Isso de tal forma abalou Alfred Nobel que ele deixou sua fortuna, hoje avaliada em meio bilhão de dólares, para os cinco prêmios: física, química, medicina, literatura e paz. 

Há duas descrições dos requisitos que ele teria deixado para esse último prêmio: 

“Aqueles que fizeram o melhor trabalho pela fraternidade entre as nações, pela abolição ou redução de exércitos permanentes e pela realização e promoção de congressos de paz” 

“Aqueles com contribuição significativa para a reconciliação dos povos, a destruição da escravidão, a redução do número de exércitos existentes e a promoção de um acordo de paz.” 

Quem indicou María Corina Machado? 

Quem indicou a “pacifista” do ano foi o atual chefe da diplomacia dos EUA, Marco Rubio, o senador Rick Scott e os deputados norte-americanos Mario Díaz-Balart, María Elvira Salazar, Michael Waltz, Neal Dunn, Byron Donalds e Carlos Gimenez. Todos Republicanos, é claro. Corina foi uma agente infiltrada dos EUA na Venezula por mais de 20 anos, muito próxima do ex-presidente republicano George W. Bush e ativa colaboradora de Donald Trump no seu primeiro mandato. Abordaremos mais sobre ela adiante. 

Quem escolhe o vencedor? 

O comitê selecionador é um grupo de políticos noruegueses aposentados escolhidos pelos políticos com mandatos no parlamento norueguês: 

– Olav Njølstad, que secretaria o Comitê, se notabilizou por um livro de ficção baseado em fatos reais sobre a cooperação norueguesa com Israel em armas nucleares e a guerra fria. Após dez anos, será substituído esse ano por Kristian Berg Harpviken 

– O presidente, Jørgen Watne Frydnes, é conhecido por seu trabalho em “liberdade de expressão e cultura democrática” e em ONGs ocidentais. 

– Asle Toje, vice-presidente, é um “defensor da economia de mercado” e do “conservadorismo”, crítico das esquerdas e colunista de um jornal de finanças da Noruega. 

– Anne Enger é uma política que se destacou como eurocética e em campanhas contra o aborto. Foi ministra da cultura e primeira ministra interina da Noruega. Seu partido, por décadas chamado de “Dos Fazendeiros”, foi rebatizado de “Do Centro” e se notabilizou por não fazer alianças com os trabalhistas. 

– Kristin Clemet por sua vez é uma política do partido Conservador, editora-chefe do “Sinal dos Tempos”, periódico do partido, vice-diretora-geral da Confederação dos Empresários Norueguesas e líder da Civita , um think tank liberal 

– A última é Gry Larsen, uma ex-política do Partido Trabalhista, sem muito expressão, CEO de uma empresa familiar bilionária e diretora de uma ONG internacional. 

Ou seja, um conjunto de conservadores e liberais, ligados a ONGs e a políticas anti-esquerda e pró “livre mercado”, dedicados à formulação acadêmica geopolítica pró-Ocidente. Sem nenhuma exceção ou voz dissonante. 

Não é de se estranhar, portanto, que esse comitê escolha, entre as centenas de indicações, em pleno genocídio em curso em Gaza e com flotilhas da liberdade sendo atacadas, a indicação de um grupo ultrarreacionário no comando do país promotor da maior quantidade de guerras no mundo, na administração Trump, a mais violadora dos direitos humanos.

Mas tanto a sequência recente de escolhas de políticos pró-imperialistas quanto a agraciada da vez deixam evidente que a discrição ficou de lado, o recado deve ser evidente: o prêmio pertence ao ocidente político e a seu projeto geopolítico. 

A que serve esse prêmio? 

É certo que ao escolher quatro presidentes dos EUA, o mais recente deles Obama, que comandava duas guerras no ano que foi escolhido, o tal comitê já deixava evidente que ele nada tinha a ver com a paz, mas com a guerra do hegemon do sistema interestatal. 

Aliás, vamos analisar o agraciado Barack Obama. Esse “Nobel da Paz” também foi o primeiro presidente da máquina de guerra a estar cada dia de seu mandato em alguma guerra. Nem Roosevelt, em plena Segunda Guerra Mundial, passou tanto tempo comandando ataques armados. 

Só no seu último ano de governo, Obama ordenou 26.171 bombardeios em sete países. E esse é o número de ataques reconhecidos pelo governo. Muitos dos que ocorreram jamais saberemos, então o número é ainda maior. Cada bombardeio desses utilizaram múltiplas bombas, então o número de mísseis e bombas é de centenas de milhares em um único ano. De fato, uma homenagem ao inventor da dinamite. 

Também segundo os números oficiais, sempre subdimensionados, 2.581 pessoas foram mortas, durante o governo Obama, pela CIA e por outras forças armadas dos EUA, em países que não estavam em guerra. Mais de mil foram mortas pelo mundo com ataques secretos por drones sob sua direção. E nas guerras oficialmente assumidas pelos EUA, do Iraque e Afeganistão, mataram meio milhão de pessoas, a maioria civis inocentes, e as demais forças de defesa dos países atacados. 

Não menos importante, Obama ordenou a expulsão de 2 milhões e meio de pessoas dos EUA pela ICE, agora tão conhecida pela sua utilização por Trump. 

Esse é o tipo ideal do Prêmio do Imperialismo, digo, “Prêmio Nobel da Paz”. 

Os demais agraciados são variações, mais próximas ou mais distantes, daqueles que melhor contribuem para os objetivos geopolíticos de Washington e seus países vassalos. Como toda regra, possui suas exceções, que ajudam a afiançar a regra. 

Por isso a escolha dos agentes de desestabilização nos países que representam óbices ao pleno exercício de poder dos Estados Unidos. E não é sequer uma condição exclusivamente recente. Tenzin Gyatso, o atual Dalai Lama, conhecido pela escravização de 95% da população tibetana e exploração sexual de crianças, serve bem aos propósitos de longa data dos EUA de se opor-se ao governo da China, e, claro, esse monstro ganhou um “Nobel da Paz”.

É nesse contexto que María Corina Machado é escolhida como a representante de 2025 do prêmio do imperialismo estadunidense. Mas o que Corina já fez para merecê-lo? 

Bem, ela há mais de vinte anos tenta um golpe de Estado na Venezuela. Em 2002, quase conseguiu. O Súmate, ONG de Corina, financiada pelos EUA, impulsionou a derrubada por 48 horas do presidente Hugo Chávez. Na ocasião, um rico empresário (Carmone) foi proclamado presidente, suprimindo os direitos civis, dissolvendo a Suprema Corte, o Congresso e revogando a Constituição. O governo dos EUA reconheceu prontamente seu marionete. Corina apertou a mão de George W. Bush. Dois dias depois, repudiado pelo povo, Carmone foi destituído, e Chávez voltou.

Em 2013 ela esteve à frente das guarimbas, atos terroristas que incendiaram prédios públicos, atacaram sedes de partidos de esquerda e agrediram quaisquer pessoas identificadas com o candidato vitorioso da eleição (Maduro). Ela mais uma vez traiu seu país neste ano: à semelhança de Eduardo Bolsonaro, Corina Machado largou o mandato de parlamentar que exercia e foi para Washington representar outro país, o Panamá, afrontando o art. 149 da Constituição. 

Essa atuação lhe rendeu uma condenação por inelegibilidade após anos de processo. Não satisfeita, ela retomou às guarimbas em 2017, durante as quais seis pessoas morreram pelas ações terroristas. E em 2019 apoiou o reconhecimento de Guaidó, pelos EUA, como suposto “presidente interino” da Venezuela. Assim como Bolsonaro, ela pediu publicamente por um ataque militar dos EUA contra seu próprio país. Questionada se realmente desejava um ataque militar, respondeu: “se a ameaça não for real, o regime não vai ceder”. 

Mesmo inelegível, pelas ações concretas que tomou contra o Estado e em afronta à Constituição, Corina insistiu em se dizer candidata em 2024. Boa parte da imprensa ocidental fingiu não lembrar da sua inelegibilidade, e das causas dela, e tratou sua óbvia impossibilidade de concorrer como uma prova de ditadura que justificaria não reconhecer o governo Maduro. 

Esse é o papel histórico dessa herdeira milionária ultra-conservadora. Recentemente pediu ao genocida Benjamin Netanyahu, condenado por Tribunal Internacional, com mandado de prisão em aberto, que também atacasse seu país para pô-la no poder. 

Não resta dúvidas, portanto, a esse leitor da história e da política, que o tal comitê do Prêmio Nobel da Paz deseja escalar as funções da comenda, de simples premiação dos que já prestaram serviços ao imperialismo, para torná-lo um elemento de justificação de ações futuras deste imperialismo.

(*) Samuel Braun é professor de políticas públicas na UERJ, doutorando em Economia Política Internacional (UFRJ), mestre em ciência política (UFRRJ) e cientista social (UERJ).