Sábado, 6 de dezembro de 2025
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Nas últimas semanas, observou-se uma onda de ações do lobby israelense voltadas a coibir atividades, provocar a demissão de professores e perseguir estabelecimentos pró-Palestina. Os episódios mais notórios foram as tentativas – lideradas pela organização Stand With Us Brasil (SWU), entre outras entidades sionistas – de alterar ou cancelar eventos do historiador israelense Ilan Pappé no Brasil.

Em entrevista à Agência Pública, o presidente da SWU, André Lajst, afirmou ter oferecido à FLIP, responsável por uma mesa com Pappé, a organização de um debate paralelo com o historiador Benny Morris – proposta recusada pela organização. Morris, contemporâneo de Pappé, revelou nos anos 1970 e 1980 documentos que expunham planos de expulsão de palestinos durante a criação do Estado de Israel – fatos até então narrados pela história oficial como um “êxodo natural”.

No entanto, Morris rejeita a ideia de que a Nakba – nome dado pelos palestinos aos eventos de 1948, que resultaram na expulsão de 800 mil pessoas e na destruição de 500 vilarejos – tenha sido fruto de uma ordem direta da liderança política israelense, então chefiada por David Ben-Gurion. Para ele, o êxodo palestino foi decorrência natural da guerra entre Israel e a Legião Árabe (composta por Transjordânia, Egito, Líbano, Síria, Iraque e forças palestinas) e de ações violentas de milícias sionistas de extrema-direita. Morris chegou a declarar que Ben-Gurion errou ao não ordenar a expulsão de todos os palestinos do território israelense.

Paraty (RJ), 01/08/2025 - O Historiador israelense Ilan Pappé, alvo de campanha de pressão e lobby israelense, participa da mesa Breve história do longo conflito na 23ª Festa Literária Internacional de Paraty - Flip. <br> (Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil)

Paraty (RJ), 01/08/2025 – O Historiador israelense Ilan Pappé, alvo de campanha de pressão e lobby israelense, participa da mesa Breve história do longo conflito na 23ª Festa Literária Internacional de Paraty – Flip.
(Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil)

Pappé, por sua vez, interpretou os documentos de forma distinta, incorporando a história oral palestina. Sua análise aponta para uma intencionalidade de décadas por parte da liderança sionista de promover uma limpeza étnica da população nativa, executada pelas tropas israelenses segundo planos definidos por comandos militares e políticos. Para Pappé, Ben-Gurion e outros fundadores de Israel foram criminosos de guerra.

Essa divergência historiográfica também se projeta no presente. Em artigo publicado na Folha de S. Paulo, Morris afirmou que a guerra de Israel em Gaza não configura genocídio. Já Pappé sustenta que há um genocídio em curso contra o povo palestino – e não apenas em Gaza.

O contraste entre as interpretações de Morris e Pappé extrapola o campo acadêmico: serve de ilustração para a divergência de posições que influenciam a legitimidade internacional de Israel e que pode impactar decisões sobre o genocídio, como a imposição de sanções previstas no direito internacional e defendidas por palestinos. Assim, a disputa de narrativas assume papel central na permanência do genocídio e no futuro de Palestina/Israel, o que explica os esforços de organizações pró-Israel para silenciar as atividades de Pappé no Brasil.

O lobby israelense e a grande mídia

O ataque à visita de Pappe é característico do lobby israelense em todo o mundo: silenciar vozes que defendem a causa palestina – frequentemente acusando-as de antissemitismo – enquanto amplifica vozes pró-Israel, mesmo as que mantêm um viés crítico. O efeito na grande mídia é evidente. A visita de Pappé, considerado o mais importante historiador vivo sobre Palestina/Israel, foi completamente ignorada, enquanto porta-vozes pró-Israel mantiveram espaço privilegiado.

O historiador sionista brasileiro Michel Gherman, ex-assessor do Instituto Brasil-Israel (IBI) e alinhado à visão de Morris, teve entrevista de página inteira publicada na Folha durante a passagem de Pappé pelo país. André Lajst, ex-militar israelense e presidente da SWU, é presença constante nos veículos de comunicação, assim como Cláudio Lottenberg, presidente da Confederação Israelita Brasileira (Conib), principal órgão de lobby no Brasil.

O ápice dessa visibilidade ocorre com a entrevista do porta-voz das Forças de Defesa de Israel, Rafael Rozenszajn, para a TV Globo. Rozenszajn foi gravado ensinando prefeitos brasileiros de extrema-direita a defender Israel no debate público e eleitoral. A sua atuação faz parte do esforço de “guerra informacional”, segundo o próprio, para sustentar a continuação do genocídio. A isso se soma o assassinato sistemático de jornalistas palestinos em Gaza – já são pelo menos 180 mortos desde outubro de 2023 – e da proibição da entrada de jornalistas estrangeiros.

IBI, SWU, Conib e representações oficiais israelenses, apesar de divergências pontuais, compõem os principais braços do lobby israelense no Brasil, com forte penetração nos meios de comunicação, inclusive por meio do patrocínio de viagens de jornalistas a Israel. O resultado é a construção de uma narrativa única na grande mídia sobre os eventos na Palestina, moldando tanto a opinião pública quanto as posições de governantes. Esse fenômeno não é exclusivo do Brasil. No Reino Unido, por exemplo, jornalistas da BBC denunciaram o canal de fazer cobertura enviesada pró-Israel do genocídio.  

O lobby israelense e a manipulação do antissemitismo

Alguns leitores podem desconfiar de um viés antissemita nesta crítica, já que discursos sobre manipulação da mídia fazem parte de tropos antissemitas. De fato, o debate em torno do lobby israelense pode resvalar em preconceitos históricos que retratam judeus como controladores de governos nos bastidores.

É inegável que a crítica a essas organizações pode reforçar percepções antissemitas. No entanto, questionar a atuação do lobby israelense não é, em si, antissemitismo. Trata-se de um tipo de pressão política comum no mundo todo. Segundo o Cambridge Dictionary, lobby significa “tentar persuadir um político, governo ou grupo oficial de que algo deve ou não acontecer, ou que uma lei deve ser alterada”. Toda corporação, nação ou setor organizado da sociedade civil faz lobby em defesa de seus interesses.

Israel, porém, domina essa prática como poucos. O peso do lobby israelense é tão grande que dois renomados estudiosos das Relações Internacionais dos EUA, John Mearsheimer e Stephen Walt, publicaram em 2007 o livro The Israel Lobby and U.S. Foreign Policy, no qual analisam a profunda influência de organizações pró-Israel sobre a política externa norte-americana. 

O lobby, vale destacar, não se restringe a grupos judeus ou israelenses: cristãos evangélicos também exercem papel central. Nos EUA, a maior organização é a Christians United for Israel, com mais de dez milhões de membros. No Brasil, setores evangélicos igualmente protagonizam a articulação pró-Israel, sobretudo no Congresso Nacional.

O problema é que, cada vez mais, acusações de antissemitismo vêm sendo instrumentalizadas para censurar críticos de Israel, desviando o foco do combate real ao racismo contra judeus. Um dos principais instrumentos dessa estratégia é a definição de antissemitismo adotada pela Aliança Internacional para a Memória do Holocausto (IHRA), que considera, por exemplo, a comparação entre Israel e o regime nazista como antissemita. Essa definição tem sido usada para blindar Israel e criminalizar manifestações pró-Palestina. 

No Brasil, Conib e SWU têm pressionado governos municipais e estaduais a adotá-la, sobretudo em contextos educacionais.O deputado de extrema-direita Eduardo Pazuello, com apoio da Conib e da Embaixada de Israel, apresentou projeto de lei para incluir essa definição no ordenamento jurídico brasileiro. Eu próprio fui alvo de uma acusação infundada de antissemitismo que resultou em processo administrativo movido pela Fundação São Paulo, mantenedora da PUC-SP – influenciada pela Federação Israelita do Estado de São Paulo e a SWU, que defenderam a adoção da definição da IHRA. 

A manipulação do antissemitismo tornou-se, assim, ferramenta não apenas do lobby israelense, mas também das extremas-direitas, como evidenciado pela decisão do governo Donald Trump de negar visto a solicitantes que manifestaram apoio à Palestina em redes sociais. Portanto, conter o lobby israelense é também proteger a liberdade de expressão, frear o avanço da extrema-direita e defender a democracia e a soberania no Brasil. 

Nesse sentido, foi acertada a decisão do governo Lula de retirar o Brasil da IHRA. Embora pudesse ter tido uma missão nobre em sua fundação para preservar a memória do Holocausto entre os europeus, a IHRA foi tomada por Israel e se tornou instrumento de “guerra informacional”.

(*) Bruno Huberman é Professor de Relações Internacionais da PUC-SP. Pesquisador do Grupo de Estudos de Conflitos Internacionais (GECI) e do Instituto Nacional Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT/INEU). É autor de ‘Colonialismo Neoliberal em Jerusalém’ (Educ, 2023).