O Livro Vermelho do Hip-hop
Longe das alegações dos “anti-identitários” que tratam o rap como uma “cultura importada”, livro de Spensy Pimentel mostra que o hip-hop é de todos os povos oprimidos
Estudo rap e hip-hop há pelo menos 10 anos. Desde os 13 anos, a partir do Espaço Rap e seus famosos CD’s, descobri o rap brasileiro. Mas há muito o que se aprender, e é isso que “O Livro Vermelho do Hip-Hop” demonstra pela sua própria existência.
Quando tive contato com a obra, meses atrás, navegando pela internet, o nome me chamou atenção. Não acredito em coincidências; e lá estava eu, tentando procurar um paralelo entre a obra do jornalista e antropólogo Spensy Pimentel, e um outro livro vermelho, popularizado em todo o mundo entre os anos 1960 e 1970: uma coletânea de citações do presidente Mao Tsé-Tung, compilada Lín Biao – Marechal da República Popular da China e um dos heróis da Guerra Civil que abriu caminho para a Revolução Socialista –, com o intuito de difundir o seu pensamento. O livro varreu o mundo, se tornando um manual de bolso dos povos em libertação, como as guerrilhas no Congo, Gaza, e de forma mais abrangente, em toda a África e Ásia, chegando ao Brasil e ao Peru, dois grandes focos do pensamento de Mao Tsé-Tung, posteriormente conhecido por Maoísmo.

Logo a minha dúvida foi sanada: Spensy se inspirou no grande líder chinês, após tomar conhecimento, com o filme Panther (1995), de que o Partido dos Panteras Negras vendiam cópias do livro vermelho para arrecadar fundos para o partido e a causa da revolução. Esse episódio não é um mero detalhe na obra de Spensy. Ele faz um paralelo interessante e inspirador sobre as raízes do hip-hop, passando pela militância de Martin Luther King, Malcolm X e seus sucessores, como o já citado Partido dos Panteras Negras, o movimento Black Power e organizações nacionalistas negras, e localiza nesse processo a gênese do hip-hop. Se grande parte dos precursores do movimento hip-hop eram filhos, netos e sobrinhos de militantes históricos do movimento negro, latino/hispânico e revolucionário dos Estados Unidos, também é certo que o hip-hip contém dezenas de nações e etnias dentro de si. Por isso, não é estranho imaginar o porquê dele ter ganhado tanto peso no Brasil, quando, nos anos 1970 e 1980, chega ao país a partir dos bailes black que rolavam em São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e outros estados com grandes populações negras. Mas o esforço de Spensy está em demonstrar esse processo de forma dialética, ligando ele diretamente às lutas e dificuldades enfrentadas pelos negros e pobres nas duas pontas da América.
Se nos Estados Unidos a chegada de jamaicanos, porto-riquenhos e pessoas de outros países da América ajudou a criar um caldo cultural nas comunidades pobres e isoladas pelo capitalismo, no Brasil três fatores foram determinantes para aceitação do rap pela juventude: o orgulho racial trazido pelo Black Power, o recente fim da Ditadura Civil-Militar e seus reflexos numa sociedade recém-democrática, e o surgimento do Movimento Negro Unificado. Todos esses elementos se misturam, dando origem a importantes acontecimentos, como o Projeto Rappers, do Geledés, e a fundação das Posses, grupos de rap, coletivos de grafiteiros, dançarinos e DJ’s. Um episódio marcante no desenvolvimento do hip-hop brasileiro, o assassinato de um B-Boy dentro de um vagão de metrô em São Paulo, a fome que assolava as favelas brasileira e uma falsa redemocratização – que manteve o mesmo nível de violência da ditadura nas periferias –, foram elementos que fortalecerem ainda mais o hip-hop, tornando-o cada vez mais político, principalmente pelas influências do MNU, de Milton Sales, Sueli Carneiro, do Geledés e tantos outros militantes históricos. Tudo isso em diálogo direto com a juventude que cresceu durante os anos de chumbo, e se tornou adulta enquanto o Brasil privatizava tudo que via pela frente.
Organizado de uma forma diferente do livro vermelho do Presidente Mao, o livro vermelho de Spensy foi um acontecimento de extrema importância para a politização do rap. Lançado originalmente como um trabalho de conclusão de curso em jornalismo, em 1997, foi mimeografado e espalhado por centenas de mãos Brasil afora. Na Revista Caros Amigos, em 1998, ajudou na criação do Especial Hip-Hop, por convite de Sérgio de Souza, então diretor da revista. Em 1999, foi publicado, de forma gratuita e digital, no Bocada Forte, primeiro site brasileiro especializado em hip-hop. Eram tempos de poucas publicações positivas sobre o hip-hop no Brasil. O jornalismo tradicional, como bem demonstra Roberto Camargos em Rap e Política: Percepções da Vida Social Brasileira, tratava o hip-hop e seus integrantes de forma animalesca, violenta e desleal, em um nível muito pior do que ainda hoje acontece.
Depois de muitas andanças, desvelando o rap indigena no México e Brasil, outras formações acadêmicas e atuações políticas do autor, o “Livro Vermelho do Hip-Hop” foi remasterizado pela Editora Glac Edições, ganhando atualizações, modificações e importantes acréscimos sobre o tema. Afinal, estamos falando de um trabalho de quase 30 anos, e que necessitava de uma edição atual, que dialogasse com o capitalismo e as lutas de nosso tempo. Muito longe das alegações frequentes da esquerda “anti-identitária”, que trata o rap como uma “cultura imperialista-importada”, o feito de Spensy demonstra um internacionalismo de classe e uma solidariedade de raça – não apenas dos negros, mas de todos aqueles que foram criados como o Outro da branquitude –, com o hip-hop sendo acolhido e se tornando um dos gêneros mais piopulares do Brasil por, justamente, vivermos dilemas parecidos com os povos oprimidos dos Estados Unidos.
O recente crescimento do hip-hop em Gaza demonstra que o gênero é de todos os povos oprimidos do mundo, se inserindo no seio desses povos, sendo modificado pelas condições culturais e materiais desses povos, mas, principalmente, sendo a música que ainda pode abalar o capital e revitalizar as mentes e os corpos dos condenados da terra.
Todos esses fatores, aliados à encruzilhada em que o rap brasileiro se encontra, ajudam a tornar a publicação do “Livro Vermelho do Hip-Hop” num grande acontecimento literário, que pode auxiliar no reencontro do gênero com seu elemento revolucionário.
O livro vermelho do Hip-Hop — 1995 remasterizado 2025
Lançamento: 2025
Autor: Spensy Pimentel
Editora: Autonomia Literária & GLAC edições























