Quarta-feira, 24 de dezembro de 2025
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Primavera Árabe: modo de usar

O termo “Primavera Árabe” foi cunhado para tentar reunir um conjunto de manifestações populares em países diferentes a partir do que elas tinham em comum: demandas por maior representação e participação cidadã nos governos, deposição de regimes notoriamente corruptos e autoritários e, principalmente, uma consistência social encontrada nos atores políticos envolvidos nos protestos. Quem protestava na Tunísia, Argélia e Egito eram em sua maioria jovens pobres e sem perspectivas de trabalho e uma vida digna, tão descrentes em relação ao capitalismo de estado pregado por seus governos quanto em relação ao modelo ocidental de liberalização de mercados, no exato momento em que o exemplo mais próximo deste desgastado modelo (a Europa) se encontra em frangalhos.

Em seu grito universal por mudança e em sua origem social, os jovens que colocaram a roda da mudança para girar nestes países se assemelhavam a muitos outros que, na Europa, Estados Unidos e América Latina, acordaram para enfrentar uma crise econômica e social da qual não foram responsáveis. Esta sua origem social entre os excluídos é fundamental para percebermos o risco de militarizar os movimentos insurgentes: os interesses políticos dos oficiais de carreira que estão desertando na Síria são muito diferentes dos interesses dos movimentos populares. Esta relação de poder se complica ainda mais a com a internacionalização geopolítica do conflito e quando a presença de interesses de potências estrangeiras surge na política do conflito; um fenômeno que começou na Líbia se acelera na Síria.

Efe

Observador da ONU conversa com rebelde sírio; Plano de paz de Kofi Annan fracassou com apoio ocidental à insurgência

Isto significa de fato um distanciamento fundamental da guerra civil em curso neste país com os primeiros movimentos na Tunísia e Egito. Ao rejeitarem o sectarismo com o mesmo vigor que rejeitavam o neoliberalismo e o fundamentalismo islâmico, os manifestantes egípcios surpreenderam as potências ocidentais com um discurso de mudança nas relações econômicas e sociais, e não apenas no regime do poder. Acostumados a enxergar regimes corruptos como o de Mubarak uma solução aceitável em uma região que já teve líderes carismáticos como Nasser, as potências se viram pressionadas a tomar uma posição política, o que levou o presidente dos EUA, Barack Obama a comparar os egípcios com os manifestantes por direitos civis norte-americanos nos anos 50.

Porque a interferência estrangeira e a escalada da violência podem significar a morte prematura do primeiro grande movimento revolucionário internacional do século XXI

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O próprio movimento foi capaz de impor por esta estratégia. Quando enfrentados por forte repressão, estes se utilizaram de uma mistura de táticas não-agressivas baseadas no uso do protesto de massa, de novas ferramentas de comunicação que extrapolaram a internet para criar verdadeiros espaços públicos de debate (exemplificados na Praça da Libertação, ou Praça Tahrir, no Cairo), e de poderosos símbolos públicos de resistência e paz (como a auto-imolação do comerciante Mohamed Bouazizi na Tunísia e a postura de defesa que cristãos tomaram em torno de muçulmanos que rezavam na Praça Tahrir). No Egito, quando os protestos se tornaram mais violentos, o principal alvo dos manifestantes foi exatamente o aparato de coerção do Estado – sobretudo as delegacias de polícia que escondiam presos políticos. As armas utilizadas eram (à maneira palestina) pedras e coquetéis molotov, sendo que armas de fogo praticamente não foram disparadas por manifestantes. A persistência e o sucesso político desta iniciativa se reflete na fala do chanceler israelense conservador, Avigdor Lieberman, para quem o Egito revolucionário representa para o estado sionista um risco de segurança maior do que o Irã dos aiatolás.

O Verão Árabe na Líbia

A situação evoluiu de forma diferente na Líbia. Embora o quadro econômico do país fosse mais favorável a estes mesmos jovens devido a políticas sociais do governo Kadafi, os protestos ganharam apoio conforme a repressão do regime significou um número cada vez maior de presos políticos. O leste do país, relativamente mais pobre que a capital, tentou criar suas próprias “Praças Tahrir” como zonas de autonomia e debate sobre o regime, sendo duramente reprimidas. A tensão escalonava conforme segmentos do exército líbio começam a desertar e se evidencia um grande fluxo de armas nas mãos dos manifestantes.

Acostumado a lidar com intrigas internacionais envolvendo grandes potências e grupos terroristas, Kadafi rejeitou o diálogo com o movimento e prometia vasculhar casa por casa na Líbia atrás do que chamava de “ratos” agindo sob a influência de “drogas alucinógenas”. Acabou centralizando ainda mais a simbologia do Estado em sua própria pessoa, fazendo com que “derrubar Kadafi” se tornasse a principal demanda de um movimento mais heterogêneo que o egípcio. É importante assinalar que foi Kadafi quem iniciou a internacionalização do conflito, se utilizando habilmente da abundância de milícias armadas no Norte da África. Com seu exército desertando, mas ainda de posse de considerável capital, o líder adotou uma estratégia de aniquilação completa da insurgência e para tanto recrutou mercenários do Mali (principalmente tuaregues), Chade, Níger e até europeus (principalmente dos Bálcãs), efetivamente escalonando o conflito. A vantagem militar do regime de Kadafi levou a derrotas consecutivas dos rebeldes e à possibilidade real de massacres – exatamente o ponto onde está a Síria neste momento.

Efe

Homens comem em campo de refugiados na Líbia; vácuo de poder com a queda de Kadafi ainda não foi preenchido no país

No contexto líbio, a intervenção internacional a favor dos rebeldes acabou sendo um consenso tão grande entre as potências que nem Rússia ou China se atrevem a vetar a resolução. Países africanos que a princípio eram favoráveis a soluções diplomáticas (como África do Sul e Nigéria) votaram pela intervenção, cujo alvo é principalmente o aparato militar pesado líbio – artilharia, blindados e força aérea. Embora a presença da OTAN tenha certamente significado um grau maior de ingerência estrangeira na rebelião (inclusive com a presença de tropas de elite britânicas e francesas) o grosso das operações militares foi realizado por um exército líbio constituído de jovens armados, pouco treinados e que se amontoavam às dezenas nas esquinas de Sidra para assassinar seu antigo líder.

A Guerra Civil na Síria

A tendência à militarização e à internacionalização dos conflitos iniciada na Líbia se acentua muito na Síria. Os protestos se iniciaram modestos em janeiro e lentamente se espalharam pelas cidades sírias, levando o governo de Bashar al-Assad a acenar com reformas (como a renúncia de todo seu gabinete) já em março. Em abril, o número de manifestantes mortos aumentou, e em maio houve o hediondo massacre de Houla, com a morte de 108 pessoas, quase a metade delas mulheres e crianças. O que aconteceu?

Parte da resposta se encontra na própria estrutura de poder do Estado sírio. A presença de tribos com poder político levou à formação de um regime baseado em uma figura centralizadora apoiada sobre forte burocracia e com fortes elementos clientelistas. O investimento em educação e saúde elevou a popularidade de Hafez al-Assad, que havia tomado o poder contra a ala de esquerda de seu próprio partido – o Ba’ath – em 1970. Seu regime continuou a política de distribuição de recursos do petróleo mas diversificou a economia, utilizando o Estado para construir uma indústria nacional composta por uma tecnocracia a serviço do regime. Favoreceu sobretudo sua própria tribo alauíta, sem deixar de oferecer concessões a outras tribos poderosas. A Síria, portanto, não é a Líbia.

Outra parte da resposta está na figura que ocupa o posto máximo na Síria atualmente. Bashar não é Hafez. Nunca teve interesse em política e tudo indicava que seguiria uma carreira de médico quando morreu seu irmão mais velho em 1994 e seu pai o introduziu às pressas no complexo de poder sírio. Imediatamente após a morte do pai, Bashar foi confrontado por pressões por reformas vindas da esquerda e por setores conservadores que não viam nele a figura forte que fora seu pai, o “Leão de Damasco”. Reprimiu os manifestantes porém fez concessões e foi geralmente menos violento nas sentenças, ao mesmo tempo em que cresciam grupos conservadores violentos a serviço do regime.

Agora, com a volta dos protestos contra o regime, são estas milícias conservadoras (as chamadas shabihas) que representam a linha-dura do assadismo e as principais responsáveis pela repressão. A relação das shabihas com o governo podem ser observadas no caso do cartunista sírio Ali Farzat, que, apesar de ter sido um amigo próximo do presidente Bashar (um admirador declarado do cartunista) foi atacado e quase morto por esta gangue após fazer críticas ao governo. Esta independência aparente das shabihas em relação ao regime torna difícil ligar Assad diretamente aos massacres.

A parte final da resposta está nos próprios rebeldes sírios. Conforme os protestos eram reprimidos com mais violência, o movimento sírio passou a contar com seus próprios desertores do Exército, muitos deles oficiais que haviam servido lealmente a Hafez mas que estavam descontentes com o novato Bashar. Logo estes passaram à dianteira do movimento, tomando posição de liderança e negociando em nome dos rebeldes com outros países. Ao contrário da Líbia, onde o exército popular buscava tomar e organizar os territórios liberados como um Estado paralelo, o modelo sírio tomou a forma de guerrilha e praticamente prescindiu da mobilização popular civil.

Esta diferença é fundamental. O que havia começado na praça Tahrir como um movimento de massa desarmado chegou a Síria como uma guerrilha de sabotagem com pouco alcance social. A estratégia de guerrilha leva o chamado Exército Livre Sírio a tomar posições em vilarejos para em seguida abandoná-los, o que aumenta a eficiência de suas ações armadas mas deixa a população à mercê da vingança sangrenta das shabihas. Os massacres, por sua vez, aumentam a pressão internacional sobre Assad e incentivam a militarização internacional dos rebeldes.

Neste momento, nem governo e nem oposição tem a ganhar com um cessar-fogo, e quem mais sofre é o povo sírio. Trata-se de um círculo vicioso que acaba sendo exacerbado pela incompetência da ONU em cumprir eficientemente seu mandato de observador. Enquanto os Estados Unidos e a Europa querem simplesmente que Assad se vá (ignorando a ameaça da linha-dura) e a Rússia continua faturando com a venda de armamento para o regime de Damasco, os organismos internacionais demoram em reconhecer o estado de guerra civil que vive o país e fornecem poucos recursos para os observadores fazerem seu trabalho de coibir a violência. Em uma região com o histórico de violência sectária que tem o Líbano e onde Israel segue fazendo o que bem entende nos territórios ocupados, isto pode ser fatal.

Kurosawa em Houla

Recentemente, um colunista da Al Jazeera invocou o filme “Rashomon” de Akira Kurosawa (1950) para mostrar a tragédia da guerra civil na Síria, especialmente no terrível massacre de Houla. No filme, um assassinato é explicado diversamente por cada parte envolvida (pelo assassino, pela mulher do morto, por uma testemunha, etc.), que por sua vez adiciona seus próprios interesses à narrativa. Segundo Hamid Dabashi, é exatamente isto o que está acontecendo no país: ambos os lados guerreando pelo controle da narrativa, o que não muda em nada o fato de, no final, ainda existir uma pilha de corpos a serem enterrados.

Os rebeldes sírios poderiam “voltar às raízes” egípcias e retomar uma estratégia que envolva a população e organize uma alternativa realmente popular ao governo Assad. O Exército Livre Sírio não pode continuar sendo a principal voz da oposição – é preciso que as ruas falem. Afinal, contar com os militares para derrubarem um regime foi exatamente o que levou tantos ditadores (como o próprio Hafez) ao poder. Ao mesmo tempo, quanto mais o movimento ocupar as ruas e praças para protestar, mais difícil será a ação sanguinária das shabihas, e mais o regime terá que se distanciar desta ferramenta de terrorismo – principalmente com os olhares internacionais voltados para a Síria.

Por outro lado as reformas políticas devem ser levadas adiante ou os protestos irão voltar, o que pode transformar a Síria em um novo Líbano. Após tanto sangue derramado, a solução provavelmente deve envolver a renúncia de Assad e a construção de um novo sistema político que não seja tão dependente da burocracia tribal. Ao mesmo tempo, desmontar o Estado de bem-estar construído na Síria seria desastroso para os que hoje se revoltam contra o regime. Na Líbia, elencar como demanda única a queda de Kadafi deixou um vácuo de possíveis alternativas que complicará o futuro próximo do país. Mesmo no Egito, onde os manifestantes foram mais vitoriosos, a falta de uma alternativa popular entre os candidatos ao governo ameaça o processo revolucionário. A oposição síria deve olhar para além da derrubada de Assad e voltar a ser uma força propositiva na política nacional, sob o risco de ser a primeira grande derrota da Primavera Árabe.