Sábado, 6 de dezembro de 2025
APOIE
Menu

Desde que os Estados Unidos anunciaram uma recompensa de US$ 50 milhões pela captura de um presidente, Nicolás Maduro, da Venezuela e, em seguida, sob a falsa e repisada alegação de que é necessário “combater o narcotráfico”, enviaram embarcações militares ao mar do Caribe, nas imediações venezuelanas, incluindo um submarino, em uma clara demonstração de disposição de iniciar um ataque, a América Latina voltou a enfrentar o fantasma da intervenção armada dos Estados Unidos da América.

Conforme notícia do G1, “pelo menos sete navios dos EUA foram enviados para o sul do Caribe, incluindo um esquadrão anfíbio, além de 4.500 militares e um submarino nuclear. Aviões espiões P-8 também sobrevoaram a região, em águas internacionais”. Trata-se de um efetivo de guerra e não de uma força policial para atuação contra supostas embarcações de narcotraficantes.

A retórica de Trump contra a Venezuela já era conhecida desde seu primeiro mandato, em que declarava que os EUA tomariam o petróleo do país sul-americano. Em sua campanha, Trump voltou a tratar desse tema e agora organiza uma agressão sob a direção de Marco Rubio, o latino renegado, gusano de origem cubana que ocupa a cadeira de capitão do mato – digo, de secretário de Estado dos EUA – e tem uma agenda própria de agressão aos países latino-americanos que desafiam a hegemonia da grande potência. As operações de mudança de regime nunca saíram do menu do Departamento de Estado, e especialmente no que se refere à Venezuela e sob Marco Rubio elas estão tomando a forma de intervenção direta e armada.

Trump agora organiza uma agressão à Venezuela sob a direção de Marco Rubio, o latino renegado

Trump agora organiza uma agressão à Venezuela sob a direção de Marco Rubio, o latino renegado
(Foto: Joe Catron/Flickr)

O perigo é real. Não se sabe quais são os planos, mas a hipótese de uma invasão à Venezuela, ou a tomada, pela força, de campos de exploração de petróleo, se confirmada, poderá desencadear uma guerra de longa duração, na qual atores locais, como paramilitares vinculados (estes sim) ao narcotráfico e aos Estados Unidos (o maior comprador de entorpecentes do mundo, que também lucra com a venda de armamentos para os cartéis e para o combate às drogas, uma dupla lucratividade), grupos desejosos de tomar o poder político na Venezuela, cartéis de atuação regional “sediados” na Colômbia, Brasil e Equador, forças paramilitares da Colômbia (adormecidas, mas nunca completamente desmanteladas), dentre outros, poderão envolver-se, fazendo da Venezuela um terreno de guerra ininterrupta como o que se vê, desde 2006, na Síria.

Frente a essa ameaça, a Celac pronunciou-se, condenando a escalada e trazendo à memória os tratados em vigor que declaram a América Latina uma “zona de paz”. Mas declarações não são suficientes. Em caso de uma escalada real, quais seriam as medidas tomadas pelos governos da região?

Nesta hora não se pode deixar de recordar um dos efeitos mais deletérios do golpe de Estado de 2016 que derrubou Dilma Roussef e abriu o caminho para a extrema direita brasileira, aliada de todos os momentos dos Estados Unidos. Sim, pois os efeitos do golpe não se resumiram a temas nacionais. Uma das primeiras atitudes relativas ao entorno do Brasil do governo Bolsonaro, em 2019, foi retirar o país da Unasul e, com isso, implodir uma das iniciativas mais promissoras em termos de segurança regional: o Conselho de Defesa Sul-Americano (CDS).

O CDS surgiu da necessidade de se criar um espaço de debate e concertação na área de defesa após os incidentes envolvendo a Colômbia e o Equador, quando forças colombianas violaram o espaço soberano do Equador a fim de eliminar militantes das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc-EP). O Brasil, sob o governo Lula, teve papel central na criação desse espaço, que se tornou um espaço de consultas que visava ser permanente e veio a integrar a estrutura da recém-criada Unasul, em 2008. O Conselho de Defesa ganhou institucionalidade a fim de que se constituísse como um espaço capaz de criar os laços, a confiança e os mecanismos de cooperação militar necessários para o enfrentamento das ameaças comuns, além de promover soluções estratégicas. Não era um organismo militar transnacional, mas atuava como instância de consulta, cooperação e coordenação na área de defesa.

Durante seus anos de existência, o CDS trabalhou em medidas para avançar na construção de relações de confiança mútua e no desenvolvimento de indústria e tecnologia de defesa. Por certo que havia ainda uma série de dificuldades operacionais a serem enfrentadas, especialmente porque tanto as forças armadas do Brasil quanto as da Colômbia (essas em ainda maior medida) nunca deixaram de possuir laços profundos com os Estados Unidos, destino preferencial de seus oficiais para cursos de formação e para temas de cooperação militar.

Como mostra o estudo de Pedro Silva Barros, Paula Macedo Barros e Raphael Camargo Lima, publicado pel Ipea, “os Estados Unidos são o principal destino dos postos e missões militares brasileiras no exterior. Quanto maior as patentes, maior é a fatia dos Estados Unidos como destino dos cursos de militares brasileiros”.

Conforme o estudo “O Setor de Defesa Brasileiro no Exterior: Desafios, Oportunidades e Subsídios para a Revisão dos Documentos de Defesa“, “entre os anos de 2020 e 2023, 134 militares brasileiros fizeram cursos nos Estados Unidos. Dentre esses, 97 eram oficiais superiores. O segundo país que mais recebeu militares brasileiros nesse período foi a Suécia, com 63 militares (somente um oficial superior)”. Ainda conforme Pedro Barros, “houve quase dez vezes mais oficiais superiores em cursos nos Estados Unidos do que em qualquer outro país. Isso é claramente uma dissonância entre o objetivo da política externa brasileira, de autonomia e equidistância entre as principais potências, e a concentração exacerbada em único parceiro”.

Esse cenário mostra que a concertação militar na região, que iniciava-se em 2008 com o CDS, carecia ainda de um longo percurso a fim de que se pudesse, de fato, construir uma “identidade sul-americana em defesa” capaz de fortalecer a autonomia regional frente a potências externas, promover integração militar e cooperação tecnológica e estimular a formação de um posicionamento unificado nas nações sul-americanas em temas de segurança. Particularmente dentro do Brasil, o tema da ligação ideológica entre nossas forças armadas e os Estados Unidos é um motivo de preocupação real quando se pensa na possibilidade de uma conflagração no país vizinho.

A construção mecanismos de cooperação regional duradouros – como era a proposta do CDS – poderia desempenhar, no médio prazo, o papel de trazer um novo olhar para nossas próprias forças armadas acerca dos verdadeiros riscos à soberania brasileira, que não estão dentro do país, como ensina a embolorada doutrina do “inimigo interno” construída nos anos da Guerra Fria, e sim muito mais ao norte, com armas de destruição em massa e uma disposição de retomar o controle da região a fim de fazer frente ao declínio relativo de seu poder global.

Sem um conselho de defesa sul-americano e sem relações políticas com a Venezuela, graças ao erro crasso do governo Lula diante das eleições venezuelanas recentes, estamos órfãos de mecanismos efetivos de articulação regional para fazer frente a esta que é uma das mais graves ameaças à soberania de um país sul-americano desde as sabotagens conduzidas para separar o Panamá da Colômbia, em 1904. Mais uma herança do golpe de 2016. É urgente retomar a normalidade das relações com a Venezuela e, ao mesmo tempo, reconstruir o CDS.

(*) Rita Coitinho é socióloga e doutora em Geografia, autora do livro “Entre Duas Américas – EUA ou América Latina?”, especialista em assuntos da integração latino-americana.