Sábado, 6 de dezembro de 2025
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Na última semana de outubro, nos dias 26 e 27, tivemos no Brasil o maior evento das Américas sobre os 22 países que compõem a Liga dos Estados Árabes – LEA, o São Paulo Global Halal Brazil Business Forum – GHB 2025, organizado pela Câmara de Comércio Árabe-Brasileira e a FAMBRAS Halal Brasil. Nele apresentou-se um panorama de todo o ecossistema de comércio internacional em que estão inseridas estas nações, como igualmente envolveu a presença de seus emigrantes em regiões como Europa, Estados Unidos e sua marcante presença na América Latina, sobretudo aqui.

O encontro, que também teve como principais apoiadores a Saudi Authority for Industrial Cities and Technology Zones – MODON e a MBRF (proprietária da Sadia, maior exportadora de proteína animal para a LEA), apresentou o conceito de Halal Green, que permite uma interface entre os padrões alimentares e de comportamento islâmicos e os preceitos de sustentabilidade ambiental, social e econômica[1]. Aponta para uma transformação em curso na visão contemporânea do globo em relação ao mundo islâmico, coroada com a eleição do democrata Zohran Mamdani, primeiro prefeito muçulmano de Nova Iorque, cidade mais influente do mundo.

O Global Halal Brazil Business Forum 2025, ocorrido nos dias 26 e 27 em São Paulo. (Foto: GHB 2025 / Divulgação)

O Global Halal Brazil Business Forum 2025, ocorrido nos dias 26 e 27 em São Paulo. (Foto: GHB 2025 / Divulgação)

O ano de 2025 também marca os 20 anos da 1ª Cúpula América do Sul – Países Árabes, momento em que, sob a liderança de Lula, o maior salto nas relações econômicas entre as regiões ocorreu, parceria que vem sendo recuperada desde 2023. Fortalecer estas relações em nível internacional é a formalização de algo que já existe, pois a marca que a cultura e a culinária destes imigrantes gravou em nossa sociedade e sua capacidade de organização ao longo deste mais de um século de presença apontam para um vínculo natural (mais de 6% dos brasileiros têm ascendência árabe). Em todo o planeta, eles envolvem em torno de 2 bilhões de consumidores – 25% da população mundial –, juntos formam um PIB de 9 trilhões de dólares, e dentre os membros da LEA têm apresentado nas últimas décadas um crescimento econômico anual médio de 6,2% – maior do que o mundial, na casa dos 5%[2].

Já em 2023 o presidente Lula fez duas viagens oficiais ao Oriente Médio, sendo a primeira em abril, aos Emirados Árabes Unidos, e a segunda em novembro, nesta última com agendas em diversos países do Conselho de Cooperação do Golfo – GCC[3]. Os resultados já puderam ser sentidos em 2024, para as múltiplas partes, e se tornaram essenciais diante das restrições tarifárias norte-americanas. Tanto o esforço recente do governo federal quanto o inédito empenho de aproximação visto entre 2003 e 2010 foram reforçados na mesa de abertura do GHB 2025, sobretudo por Mohamed El Zoghbi (presidente da FAMBRAS), Mohamad Mourad (secretário-geral da CCAB) e Ibrahim Alzeben (embaixador da Palestina no Brasil e decano do Conselho dos Embaixadores Árabes do Brasil), cerimônia que contou com falas por vídeo do vice-presidente da República Geraldo Alckmin e do chanceler Mauro Vieira.

A tônica do evento foi reforçar o quanto os princípios Halal reforçam os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável nas várias cadeias globais de valor. Halal significa “permitido” no islamismo, padrões de comportamento aceitos dentro do islamismo, que envolvem hábitos alimentares, de vestuário, fundamentos éticos nos negócios, cuidados ambientais iminentes (fundamentais nas condições naturais onde estas sociedades se formaram), princípios como evitar desperdício, etc. É desta percepção que surge o conceito de Halal Green, discutido em diferentes momentos do evento por representantes de instituições de pesquisa prestigiadas, tanto dos países árabes, como Sultan Alhababi (Global Halal Academy) e İhsan Övüt (Instituto de Normas e Metrologia para Países Islâmicos), quanto do Brasil, como Guilherme Bastos (FGV Agro), Fernando Albuquerque (Embrapa) e Celso Moretti (vice-presidente do Integrated Partnership Board – CGIAR e também ex-presidente da Embrapa). Inclusive, em paralelo ao GHB ocorreu o Ctec Halal, organizado pela International Halal Academy, onde pesquisas acadêmicas sobre sustentabilidade e princípio Halal foram apresentadas e discutidas. Esta nova agenda foi bem recebida por empresários e representantes de governos árabes e brasileiros (níveis federal e estaduais, do Executivo e Legislativo) que estiveram presentes.

O objetivo neste artigo é sistematizar os principais vetores apresentados do GHB 2025 para orientar “parcerias estratégicas” dentro da Certificação Halal, obrigatória para transações comerciais com eles, envolvendo todo o processo de geração da mercadoria, do comportamento das pessoas no processo produtivo (inclusive das relações trabalhistas) até os sistemas de financiamento e escolha das prioridades. A comunidade liderada pela União das Câmaras Árabes, representada aqui pela Câmara de Comércio Árabe-Brasileira, e pela Federação das Associações Muçulmanas do Brasil – FAMBRAS (da qual a FAMBRAS Halal é um braço especializado na certificação) proporciona um universo de parcerias internacionais urgentes diante do cenário atual: são enfaticamente apoiadas pelo atual governo federal; o mundo árabe está fortemente enraizado em nossa sociedade para dar suporte à difusão de seus padrões; a forma como pensam o financiamento produtivo se alinha ao nosso projeto de neoindustrialização (que aqui será associado às “finanças industrializantes”) e existem potenciais complementares. Daí serão apontados elementos de uma estratégia para esta cooperação crucial no Sul Global.

Revitalização recente da estratégia para parcerias com a Liga dos Estados Árabes

A redução dos custos de transação é um fator decisivo no incentivo às relações comerciais internacionais, e envolve todos os fatores apontados no parágrafo anterior. Conforme muito bem exposto por Milan, Ferabolli e Gonçalves em estudo recente feito no Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos Internacionais da UFRGS[4], acordos de comércio exterior com países da Liga dos Estados Árabes (incluindo os do Conselho de Cooperação do Golfo) que envolvam tarifas aduaneiras só podem ser firmados em conjunto com o Mercosul e, dada a postura anti-islâmica do atual presidente da Argentina, avanços nesse sentido parecem improváveis por enquanto. Esta “parceria estratégica” precisa estar pautada nos demais fatores, sobretudo na assimilação de aspectos cognitivos (critérios como o certificado Halal e a indiscutível presença de traços culturais árabes na sociedade brasileira) e no financiamento prioritário em setores diversificados que se complementam com os deles, exatamente a tônica do GHB 2025.

Um dos principais programas para preparação e incentivo ao comércio inter-regional é o “Projeto Halal do Brasil”, parceria entre a CCAB e a Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos – ApexBrasil, que orientou as relações comerciais nos últimos 3 anos, pauta levantada na primeira fala de apresentação do evento[5], proferida por Mohamad Mourad (CCAB). Na sequência, Mohamed El Zoghbi (FAMBRAS Halal) introduziu uma visão holística dos princípios Halal e como eles levam a uma abordagem de governança corporativa alinhada às atuais tendências ESG, o Halal Green, compromissos atualíssimos também aprofundados por Yousif Alharbi (Saudi Halal Center), Khaled Hanafi (União das Câmaras Árabes) e por Sheikh Youssef Khalawi (Câmara Islâmica de Comércio e Desenvolvimento). Este último também destacou o acordo para o aprimoramento da concepção de governança Halal Green/ESG feito na Alemanha no começo de outubro, apontando para um norteador para a fundamental diversificação setorial, necessidade do aumento de produtos e serviços trocados entre Brasil e LEA, igualmente salientada por İhsan Övüt (Instituto de Normas e Metrologia para Países Islâmicos – SMIIC), destacando a emergência de oportunidades nos países árabes em produtos cosméticos, farmacêuticos e em turismo adequado para os costumes muçulmanos.

De fato, as exportações brasileiras estão muito concentradas em produtos de nossos complexos agroindustriais e as deles, em petróleo e derivados, gargalo também apontado no estudo de Milan, Ferabolli e Gonçalves. Eles lembram que o universo da LEA é o terceiro maior destino de nossas exportações, atrás apenas de China e Estados Unidos, e algo que pode, em muito, ser ampliado com o incentivo às micro e pequenas empresas, através da qualificação destas. Os pesquisadores destacam que a “Câmara de Comércio” e a FAMBRAS já são as maiores responsáveis por esta preparação e têm potencial para atingir mais empreendedores através da intensificação de programas conjuntos com governos, principalmente do Brasil. Apresentaram o quadro abaixo, com a evolução do balanço de nossas exportações e importações com a LEA entre 2000 e 2021:

Entre 2000 e 2010 as importações brasileiras mais que dobraram, triplicando em todo o período, e nossas exportações aumentando mais que 9 vezes, mas há um déficit na balança comercial que precisa ser mitigado para que haja maior interesse dos árabes; as exportações deles também aumentaram, mas em torno de 3,5 vezes, e no início do período tinham balança comercial positiva. Considerando que o principal interesse dos árabes continua relacionado à segurança alimentar, os pesquisadores da UFRGS destacam a importância de nosso agronegócio criar parcerias tecnológicas, comprar insumos produzidos e contratar seus serviços de exportação. Não sendo possível a criação de facilitação tarifária imediata, os esforços devem estar focados i) na integração cultural e de padrões, que incentivam chefes de Estado a encampar soluções e nossos empresários a se adequarem (sobretudo MPME) e diversificarem os negócios; ii) na compatibilidade dos sistemas de financiamento produtivo; e iii) em complementaridades que sustentem parcerias no longo prazo. A sequência deste texto irá abordar como estes 3 fatores já são empreendidos pelo sistema CCAB-FAMBRAS Halal, e podem orientar os já mencionados esforços recentes da diplomacia brasileira iniciados em 2023.

As iniciativas do início do atual Governo Lula em 2023 surtiram efeitos diplomáticos inegáveis. O presidente brasileiro participou da reunião de cúpula da Liga dos Estados Árabes, onde também havia discursado em 2003, e o Brasil tem status de observador desde 2006. De nossa parte, como presidente do G20, Lula convidou pela primeira vez a LEA a participar da reunião de cúpula da entidade, no final de 2024, e neste ano a ApexBrasil apresentou, em outubro último, um estudo que guiará a estruturação de uma parceria com países do Conselho de Cooperação do Golfo – CCG, que estava sendo estruturada desde meados do ano passado[6].

Conexão da CCAB e da FAMBRAS com integração árabe à sociedade brasileira

A intensificação das relações socioeconômicas entre Brasil e mundo árabe vista neste começo do Séc. XXI é, de fato, o mais forte dos principais períodos identificados por Isabelle Somma de Castro, pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais – Nupir (USP). No sexto capítulo[7] do volume publicado ano passado pelo Programa de Internacionalização da Universidade Federal Fluminense, integralmente sobre a presença árabe no Brasil, ela indica três momentos em que o governo brasileiro institucionalmente apostou na aproximação:

– virada dos anos 1950 e 60, iniciada por Jânio Quadros e continuada até o final do Governo João Goulart;

– no período que desencadeou na redemocratização, entre 1974 a 84;

– nos dois primeiros governos do presidente Lula, de 2003 a 2010, descrito na seção anterior.

Em relação ao primeiro período, a autora destaca o desejo de Jânio em se afastar da dependência em relação aos Estados Unidos, e chegou a se encontrar com o líder egípcio Gamal Abdel Nasser antes mesmo de ser eleito (tinha uma foto com ele no gabinete presidencial) e, por convicção política, João Goulart deu continuidade. É preciso ter em mente que, junto com o desejo pessoal dos governantes, esta etapa foi antecedida por uma mobilização da comunidade local do Oriente Médio, em torno do surgimento de várias instituições, que ganhou forma definitiva no início dos anos 1950. Este processo de organização local e difusão prévia dos valores árabes está muito bem descrito no primeiro capítulo do mesmo volume da UFF, escrito por Samira Osman (Laboratório de Estudos Orientais e Asiáticos – Unifesp) e Murilo Meihy (Laboratório de Estudos Orientais – UFRJ).

Osman e Meihy indicam que a organização dos imigrantes libaneses e sírios ganhou forma a partir da família Safady, principalmente o filho Jamil, que era aluno de Geografia e História na USP, e foi o maior entusiasta da criação do “Centro Brasileiro de Cultura Árabe”, também com o apoio da família Cury, e mais tarde da família Yazigi. Em 1949, Jamil Safady publicou a primeira gramática árabe-brasileira, volume que em sua maior parte trazia informações geográficas e culturais, e sua trajetória foi interrompida no ano seguinte, com a sua morte. Em homenagem ao irmão, Taufik e Jorge fundaram a “Organização Jamil Safady”, cuja editora foi pioneira na tradução e publicação das primeiras obras árabes e muçulmanas no Brasil. Inclusive, em 1957 esta editora publicou a primeira edição de “Os Prolegômenos ou Filosofia Social”, de Ibn Khaldun, pensador muçulmano norte-africano que pode ser considerado um dos precursores das ciências econômicas e da sociologia; este livro, traduzido por José e Angelina Khoury, foi relançado pela CCAB e pela FAMBRAS Halal no último São Paulo Global Halal Brazil Business Forum, em 2023.

Este contexto deu força aos propósitos de Jânio, e foi nele também que a Câmara de Comércio Árabe-Brasileira foi fundada, em 1952, que representa no Brasil a União das Câmaras Árabes (fundada 1 ano antes). Dado que o meio empresarial paulista esteve dentro desta mobilização e financiou boa parte das ações, não é coincidência sua fundação nesta época; teve motivadores internos e externos. Infelizmente, vivemos um período de instabilidade entre 1964 e 1974, com a ditadura militar, com forte tutela norte-americana em nossas relações internacionais e exigências de posicionamentos pró-sionistas.

No período iniciado pelo Governo Geisel, com as bases da reabertura política e busca de independência nas relações econômicas internacionais, Somma de Castro identificou um segundo período de aproximação com o universo islâmico, motivada pela crise do petróleo – e consequente busca de melhores preços – e de investimentos árabes aqui: ou seja, foi uma opção pragmática de Geisel. Foi neste contexto que a Federação das Associações Muçulmanas do Brasil – FAMBRAS foi fundada em 1979, sob liderança de Hajj Hussein Mohamed El Zoghbi, onde, a despeito da objetividade das ações governamentais, atuou junto à CCAB não apenas sob fundamentos comerciais, mas para cultivar e divulgar os princípios Halal, certificando empreendimentos que respeitassem os princípios culturais de origem religiosa em toda a amplitude de seus preceitos, principalmente para a exportação no setor alimentício.

Estas duas entidades estiveram perfeitamente alinhadas entre si e com os 2 primeiros governos de Lula, quando aconteceu o terceiro e mais intenso período de aproximação entre as economias. Quando um evento organizado por elas traz uma concepção de Certificado Halal atualizada aos padrões de Governança ESG, absolutamente atual, proporcionam exatamente o primeiro fator apontado pelos pesquisadores da UFRGS com alto potencial de sinergia para o fortalecimento da “parceria estratégica”: adequação ao amplo conjunto de critérios necessários para cooperação produtiva e comercial entre estes dois universos não tão distantes assim. Mais que isso, oferecem o cabedal didático necessário imerso na história da organização da comunidade árabe local. É crucial para o atual governo federal investir ainda mais na já existente sintonia com a CCAB e a FAMBRAS, para que nossa burocracia diplomática e nossos empresários estejam aptos para este mercado. Com este elemento aprimorado, restam alguns pontos sobre oferta e compatibilidade do financiamento produtivo e complementaridades comerciais, que envolvem o mapeamento do leque de opções para importações mútuas.

Necessidade de diversificação e o financiamento Halal para os setores estratégicos

Conforme também aponta Somma de Castro, uma das características do atual presidente brasileiro que despertou atenção na LEA desde o início é o seu perfil que chama de “caixeiro viajante”, sem muitas voltas para abrir o que tem para vender e interesse no que o outro tem para mostrar, adequando-se rapidamente às tendências dos interlocutores com quem pretende manter relações declaradamente preferenciais. Em um mundo de cadeias globais de valor, as trocas comerciais antecedem os produtos finais, incluindo vários fatores de produção e logística, cujo financiamento e execução de cada etapa para os muçulmanos também precisam estar de acordo com os preceitos Halal de ética, sustentabilidade ambiental e social, além de sustentados economicamente no longo prazo.

No painel “Finanças Islâmicas: Investimentos em Projetos Halal Green”[8], Mohammed Bechari (Conselho Mundial das Comunidades Muçulmanas) reforçou que restrições contra o desperdício, descuido com recursos hídricos e botânicos sempre estiveram no centro do pensamento árabe, por necessidade e por convicções religiosas, e que há uma tendência natural neles para a inspiração na Economia Circular. O dinheiro deve ser investido em produção de coisas úteis e de renda, e não se reproduzir num círculo financeiro fechado e vicioso. Esta ideia também deu o tom da fala de Rafi-uddin Shikoh (CEO DinarStandard), que mencionou a opção de securitização oferecida pelos “sukuks”[9], títulos que não rendem juros, mas sim remuneração para seus titulares conforme o emissor gere lucro, e garantidos minimamente pelo Estado. A preferência por este tipo de financiamento produtivo, focado na produção e resistente à especulação, foi mais detalhada por Sheikh Youssef Khalawi (Câmara Islâmica de Comércio e Desenvolvimento), que também participou da abertura do evento e lá já destacou esta opção de aplicação.

Khalawi também destacou o esforço de alguns países ocidentais para atrair agentes financeiros muçulmanos, em especial a Inglaterra, que ao longo de décadas alimentou a formação de um gigantesco hub de instituições financeiras árabes em seu território. Ou seja, é possível atrair recursos árabes para investimentos em setores estratégicos complementares tanto para o Brasil quanto para eles.

O painel seguinte, “Parcerias Estratégicas: Brasil e Países Islâmicos: casos de sucesso e oportunidades”, concentrou-se exatamente em 4 setores estratégicos onde os investimentos mútuos podem interligar ainda mais nossas exportações. Feitos nos moldes dos “sukuks”, em que, ao invés de empréstimos ou títulos de dívida transferíveis submetidos a juros, são substituídos por rentabilidade medida pelo lucro – indústria e mercado de capitais se complementam –, o modelo de financiamento por agentes não bancários proposto por eles possui afinidades com o que Luís Carlos Braga (IE-Unicamp) chama de “finanças industrializantes”[10], algo fundamental para nosso projeto de neoindustrialização da NIB que envolve, inclusive, o agronegócio. Os setores levantados para “parcerias estratégicas” nos quais seriam feitos estes financiamentos, além dos já estabelecidos agropecuário e petrolífero, foram:

– Infraestrutura portuária no Brasil (investimento em parceria entre governo brasileiro e setor privado) e aproveitamento de empresas de transporte marítimo preferenciais no mundo árabe, como da Malásia, apontada na Keynote de abertura do evento;

– Sistemas informatizados de rastreamento de transporte e controle aduaneiro, serviço bastante desenvolvido na Jordânia, por exemplo;

– Interesse árabe em financiar agroenergia no Brasil ou com tecnologia brasileira lá, como é o caso do combustível verde para aviões;

– Khaled Hanafi (União das Câmaras Árabes), moderador do painel, salientou também a demanda por construção de moradias e demais obras públicas na região do Levante, atualmente muito atingida por ataques israelenses; já fomos uma potência no setor, temos capital humano indiscutível que precisa voltar a ser explorado, e que eles precisam.

Como já foi mencionado, há uma variedade de outros setores a serem explorados nesta diversificação necessária, como turismo (primeiro painel da terça-feira), cosméticos e farmacêuticos (assunto debatido no último de segunda-feira, focado no protagonismo feminino no universo Halal), as já estabelecidas atividades rurais (tema do primeiro painel de segunda) e a importância da certificação Halal para a criação de uma reputação dentro da comunidade árabe (segunda mesa do primeiro dia e última do segundo). Todos eles dependem da vontade política para implementação, internalização local dos princípios Halal e viabilidade de financiamento, assim como os 4 tópicos apontados acima.

Próximos passos

Dentro das limitações atuais apontadas por Milan, Ferabolli e Gonçalves, acredita-se ter apresentado elementos do GHB 2025 que permitem os pontos fundamentais para uma “parceria estratégica” entre Brasil e Liga dos Estados Árabes, que passa necessariamente pela Câmara de Comércio Árabe-Brasileira e pela FAMBRAS: internalização dos padrões Halal, sobretudo com a atual ênfase Halal Green, com preocupações de sustentabilidade que sempre existiram no islamismo; empenho político do Poder Executivo; sistema de financiamento voltado para o fomento à produtividade e diversificação; e setores estratégicos complementares. O GHB 2025 mostrou a envergadura gigantesca que estas duas entidades possuem, a rede nacional e internacional de colaboradores e entidades representativas do universo muçulmano e sua sinergia com o atual governo. O Brasil é o maior exportador não muçulmano para esta comunidade, acima de US$ 16 bilhões anuais, temos mais de 350 empresas com certificação Halal, e poderia ser bem mais, e o desenvolvimento da concepção de Governança ESG Halal Green está em franca expansão, com fóruns no final de novembro em Londres e, em dezembro, em Bangkok.

Na mesma medida em que se dispuseram a desenvolver uma interface entre os princípios Halal e a Agenda 2030, traduzindo seus princípios dentro da atual agenda internacional, associar seus preceitos no mercado financeiro materializados nos “sukuks” ao conceito de “finanças industrializantes” de José Carlos Braga pode ser um empenho que aproxima muito nossos desenvolvimentistas destes parceiros fundamentais para nossa economia. Algo parecido já é feito em relação ao modelo de planejamento da China, associado por Elias Jabbour à “economia de projetamento” desenvolvida por Ignácio Rangel, e que hoje norteia nossa relação econômica com a potência do leste asiático. Se os muçulmanos nos oferecem esta interface, podemos oferecer uma para eles também.

Há, sim, a urgência em se rever os moldes da Cúpula LEA-América do Sul: para o Brasil, devido à nossa união aduaneira com Argentina, Uruguai e Paraguai, talvez seja mais interessante que, num primeiro momento, ela se torne um fórum de cooperação entre LEA e Mercosul, ao invés da ousada Unasul, que precisa ser resgatada. Pode ser uma agenda a se debater no Fórum Econômico Brasil-Países Árabes, anunciado no encerramento por Osmar Chohfi (CCAB) para o próximo ano.

Visto com uma lupa, o São Paulo Global Halal Brazil Business Forum mostra como a história da comunidade árabe no Brasil, cujos esforços iniciados entre os anos 1950 e 1970 organizaram uma poderosa rede de agentes econômicos, voltada para países que desejam uma parceria cada vez mais contundente com o Brasil; simplesmente aconteceu no WTC Events Center, que fica no Sheraton Hotel, o primeiro das Américas a receber o certificado Halal. Também os esforços sólidos do começo do século e resgatados nos últimos anos do governo brasileiro já estão abrindo espaços e recuperando a confiança, juntando forças em dilemas internacionais de problemas que afetam ambas as partes, nações emergentes. Quando tratamos do mundo árabe, falamos de 25% da população mundial, nosso terceiro destino de exportações, com um gigantesco potencial econômico, mas, principalmente, com uma marca fortíssima em nossa sociedade. Esta aproximação, mesmo quando não foi feita pelos agentes de Estado, há muito tempo existe no dia a dia; por isso, é tão fácil para nós entendermos e respeitarmos as diferenças.

(*) Marcos Rehder Batista, sociólogo, pesquisador no CEAPG (EAESP-FGV) e no CPTEn (FEEC-Unicamp), membro externo do Observatório Internacional da Fundação Maurício Grabois

Notas:
[1] Detalhes específicos sobre o evento podem ser conferidos em < https://globalhalalbrazil.com/ >, e introduzi o conceito de Halal Green em artigo disponível em < https://redejuntos.org.br/sao-paulo-global-halal-brazil-business-forum-2025-sustentabilidade-na-parceria-arabe-brasileira/ >. A programação completa GHB 2025 pode ser conferida em < https://globalhalalbrazil.com/programacao/ >.
[2]  – Estes e outros dados sobre o Mercado Halal e como o Brasil se insere nele podem ser conferidos e complementados no site da FAMBRAS Halal, no link < https://www.fambrashalal.com.br/mercado-halal >
[3]  – Sobre o que foi feito nos 8 anos de Governo Lula, na primeira década do Séc XXI, serão expostos os pontos principais mais adiante. A respeito da visita aos Emirados Árabes em 2023, mais informações em < https://www.gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/noticias/2023/04/presidente-lula-visita-os-emirados-arabes-unidos-neste-sabado-15-4 >, e sobre a viagem no final do mesmo ano, no llink < https://agenciagov.ebc.com.br/noticias/202311/presidente-lula-chega-a-arabia-saudita-para-reunioes-bilaterais-1 >.
[4]  – MILAN, Edmilson; FERABOLLI, Silvia Regina; GONÇALVES, Alexandre (2023). Relações econômicas entre o Brasil e o Mundo Árabe: sobre a ampliação do comércio, a garantia da segurança alimentar e a construção de parcerias estratégicas. Rev. Carta Inter., Belo Horizonte, v. 18, n. 2, e1305, 2023. Disponível em < https://cartainternacional.abri.org.br/Carta/article/download/1305/955 >.
[5]  – O que foi apresentado na abertura do GHB 2025 e nos demais painéis do primeiro dia podem ser conferidos no link < https://www.youtube.com/live/j6dWjB26Qpc?si=vzixgjI3C3w9p5SX >.
[6]  – Sobre a participação do presidente Lula na reunião de cúpula da LEA, ver detalhes em < https://www.gov.br/planaltoaPP/pt-br/acompanhe-o-planalto/noticias/2024/03/lula-201ca-retomada-das-negociacoes-de-paz-e-uma-causa-universal201d >, a respeito do papel do presidente brasileiro na participação da LEA em encontro do G20 no final de 2024 ver < https://anba.com.br/liga-dos-estados-arabes-participa-do-g20-no-brasil/ >, e sobre o estudo estratégico da para parcerias com o CCG da ApexBrasil ver < https://apexbrasil.com.br/content/apexbrasil/br/pt/conteudo/noticias/apexbrasil-lanca-estudo-sobre-comercio-e-investimentos-com-paises-do-conselho-de-cooperacao-do-golfo-ccg.html >.
[7]  – CASTRO, Isabelle Christine Somma de (2024). A Política Externa Brasileira e o Mundo Árabe (1947-2022): diplomacia presidencial, contextos externos e internos. In: O mundo árabe e o Brasil [livro eletrônico] / Organizador Waïl S. Hassan. – Rio de Janeiro, RJ: Edições Makunaima; Niterói, RJ: EdUFF, 2024. Disponível em< http://www.edicoesmakunaima.com.br/wp-content/uploads/2024/12/7-O-mundo-arabe-e-o-Brasil.pdf >.
[8]  – Segue o link para toda a seção do segundo dia do São Paulo Global Halal Brazil Business Forum 2025, quando os painéis “5 – “Finanças Islâmicas: Investimentos Em Projetos Halal Green” e “6 – Parcerias Estratégicas: Brasil e países islâmicos: casos de sucesso e oportunidades” aconteceram: https://www.youtube.com/live/EGFJippxt7k?si=ASBXfkJv9I7j9Jfg.
[9]  – Os “sukuks” já são conhecidos pelos estudos de economia financeira brasileiros, e para maiores esclarecimentos sobre eles é interessante conferir artigo de Antonio Gelis Filho e Leila Mohamad Abduni, publicado na Revista FGV Executivo em 2015, disponível em < https://periodicos.fgv.br/gvexecutivo/article/download/56837/55373 >.
[10]  – Para compreensão mais aprofundada do conceito de “finanças industrializantes” elaborado por Braga, interessante ver um de seus primeiros artigos a respeito, de 1992, republicado pelo IEDI em 2014, sendo o quinto capítulo do volume que pode ser acessado em < https://iedi.org.br/artigos/top/estudos_industria/livro_25anos.html >. Uma atualização deste conceito, inserida numa proposta mais recente de desenvolvimento para países emergentes, pode ser encontrada em trabalho de Giuliano Contento de Oliveira, nono capítulo publicado em 2021 em volume do Instituto de Economia da Unicamp, disponível no link < https://www.eco.unicamp.br/colecao-de-centros-e-nucleos/ceri-economia-politica-do-novo-anormal-do-capitalismo-pandemia-incertezas-e-novos-paradigmas >.