Sábado, 6 de dezembro de 2025
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De tédio não morreremos. Talvez de susto. Mas não morramos de véspera. Há duas semanas, o Senado dos Estados Unidos, por margem estreita, autorizou a ilegal operação da Marinha do seu país no mar do Caribe, em clara ameaça à Venezuela – o que pode ser uma senha para uma ação armada, em um contexto de derrotas eleitorais de Trump em novembro, problemas econômicos e, agora, mais implicações do presidente com o mega-escândalo Jeffrey Epstein.

Se a ação americana na Venezuela será uma invasão, uma ação decapitadora – ataque brutal e pontual para eliminar lideranças – ou um blefe,  ainda não se sabe. Trump sempre vendeu à sua base a proposta de isolacionismo e o final das guerras eternas, mas agora se dobra aos neoconservadores. Isso mudou quando ele precisou ter algo com o quê ameaçar os russos, que avançam sobre a Ucrânia, e se seguiram múltiplas outras crises.

A Venezuela parece o alvo mais fácil, coisa que o Irã não foi, nem seria. Nada disso ocorreu sem polêmicas: para a nossa surpresa, tivemos o posicionamento crítico da belicista Hillary Clinton – e a aposentadoria do almirante que chefia as forças navais americanas para a América Latina, o que mais soou como uma demissão. O objetivo parece ser apelar belicamente onde é mais fácil, isto é, no nosso continente.

O presidente Donald Trump mostra a membros da imprensa o projeto de lei assinado pelo Congresso que reabre o governo, na quarta-feira, 12 de novembro de 2025, no Salão Oval. <br>(Foto: Casa Branca / Daniel Torok)

O presidente Donald Trump mostra a membros da imprensa o projeto de lei assinado pelo Congresso que reabre o governo, na quarta-feira, 12 de novembro de 2025, no Salão Oval.
(Foto: Casa Branca / Daniel Torok)

A derrota em Nova Iorque para o socialista e muçulmano Zohan Mamdani sintetizou o ciclo de derrotas de Trump em eleições locais e estaduais de novembro, mas o mal-estar que causou isso parece só estar começando. As recentes diatribes entre Trump e a mega-fabricante de chips Nvidia prenunciam uma crise na estratégia protecionista do atual presidente – mas uma guerra será suficiente para mudar isso? 

O ocaso do falso desenvolvimentismo trumpista

Trump sempre cativou a ideia falsa de que seu plano é sobre “reindustrialização”. Como cansamos de expor nesta coluna, os Estados Unidos jamais foram desindustrializados, apenas deslocaram suas fábricas para o que antigamente se chamava Terceiro Mundo – tudo para diminuir custos, mas manteve centrais de projetos e, o mais importante, o mercado consumidor no seu território.

Relativamente, os Estados Unidos cresceram mais do que europeus, japoneses e canadenses durante a globalização, mas ao mesmo tempo concentraram mais renda, tornando saúde, educação e habitação – quase sempre privados ou diretamente pagos – cada vez mais inacessíveis para sua população. Daí, o mal-estar crescente nos últimos trinta anos – e protestos justos, embora manipulados contra o que se passou nos últimos anos.

Nesse jogo de cortina de fumaça, Donald Trump é o homem das Big Techs, vendendo reindustrialização, quando seu alvo é efetivar a liderança dos Estados Unidos na corrida da Inteligência Artificial (IA): em parte, isso é movido pelo temor da China chegar primeiro, com sérias implicações econômicas e militares, mas também existe o fato de que é a expectativa sobre a IA que cria altas constantes nas bolsas de valores americanas.

Nada disso tem a ver com mais empregos, salários ou algo do tipo. Apenas a manutenção de uma alta maníaca – e aparentemente insustentável – nos ganhos da bolsa e, supondo que tudo isso dê certo, teríamos um salto tecnológico gerando mais precarização, desemprego e concentração de riqueza – e não soluções futuristas. É o cancelamento do futuro, que talvez só se sustente por alguma forma de autoritarismo distópico.

Pouco ou nada disso tem a ver com o saudosismo industrialista. Quem se interessa, e pode ganhar, com o que Trump toca adiante é o oligopólio de Big Techs, que quer sacrificar a indústria de chips de alta tecnologia americana para driblar o adversário chinês – e sua capacidade de fabricar mais com menos, exatamente como no caso do DeepSeek, um golpe que Trump acusou no início do seu novo mandato. Chegamos à Nvidia, pois.

O duelo dos titãs de tecnologia, o fracasso do tarifaço

Jensen Huang, o poderoso CEO da Nvidia, a fabricante de chips de primeira linha, criou um desconforto gigantesco ao afirmar a liderança chinesa na IA. A declaração de Huang, de origem taiwanesa, não era ingênua: mostrava o interesse da sua mega-corporação em exportar para China, uma vez que a estratégia de Trump é de restringi-la a fazer isso para criar uma vantagem para as empresas americanas de IA.

As razões do governo Trump são bem claras, a China tem as empresas de IA, mas é a indústria americana de chips que está na frente. Os motivos de Huang são igualmente cristalinos: ele precisa vender seu produto para quem que seja, e não pode atrelar o futuro da sua corporação ao capitalismo de compadrio americano, com Big Techs ineficientes que se escondem na barra da saia do governo enquanto juram amor ao anarcocapitalismo.

No médio e longo prazo, o medo de Huang é que o protecionismo de Trump apenas estimule o governo chinês a incentivar suas próprias empresas de chips – e que em um dado momento, elas ameacem a Nvidia. Evidentemente, a reação dos mercados e do próprio governo americano foi na direção de dobrar Huang, que teve de voltar atrás no que disse, mas as marcas nas bolsas permaneceram, porque muita gente entendeu o recado.

Mas se essa é a vanguarda da encruzilhada de Trump, suas políticas protecionistas mais gerais, com os múltiplos tarifaços, parecem estar fazendo água, gerando inflação e impopularidade: os índices oficiais mostram uma aceleração mensal dos preços, mas a percepção popular é muito pior, e é isso que importa. Eleito por uma expectativa de melhor desempenho econômico que os democratas, Trump se vê diante de uma ameaça.

Os maus resultados no curto prazo ajudam a explicar derrotas eleitorais de simbolismo profundo, logo de efeitos práticos – como na poderosa prefeitura de Nova Iorque, mas também no redesenho dos distritos californianos, que vai favorecer o Partido Democrata, mas teve o apoio do eleitorado e ressuscita o governo Gavin Newsom para a disputa presidencial de 2028.

A Venezuela como bode expiatório

Nesse contexto de mudanças rápidas e abruptas, a Venezuela entrou na ordem do dia. No início de Trump 2, tudo parecia culminar com uma negociação apaziguadora em relação a Caracas, ressoando o que foi Trump 1: um governo de cerco, sanções, mas que se recusou a ouvir falcões como John Bolton sobre um ataque ao país sulamericano. Assim, Trump mantinha a promessa de evitar guerras eternas.

Em meados de agosto, Putin e Trump foram se reunir no Alasca, com o presidente americano pretendendo pôr fim ao conflito na Ucrânia sem pretender, ou ter autorização, para oferecer nada ao seu homólogo russo. Não por coincidência, neste momento, a frota naval americana se posicionou ameaçadoramente no mar do Caribe, apontando armas para a Venezuela, aliada russa na América Latina e dona das maiores reservas de petróleo do mundo.

A ação, bem ao gosto do secretário de Estado americano, Marco Rubio, tomou o lugar da tática de distensão conduzida por Richard Grenell. Como temos insistido, Rubio tem planos próprios e ambiciosos, e embora parte deles passe por aposentar o próprio Trump, a atual liderança americana tem tratado isso como um risco calculado. Rubio é o pitbull e pode latir no quintal latino-americano, onde é relativamente seguro.

Como se não bastasse tudo, o eterno retorno do caso Epstein – que pode ter implicações gigantescas na política americana – aparece como um outro fator de tensão para Trump, que pode ser implicado no escândalo – que além de tudo envolve pedofilia. A partir daí, a Venezuela deixa de ser uma contra-pressão à Rússia e pode se tornar uma panaceia, embora implique em riscos imponderáveis. 

Depois de ter refugado em invadir por terra o Irã, Trump pode considerar o bombardeio a um alvo considerado mais frágil como algo a oferecer ao público interno. Há boas dúvidas sobre o que pode acontecer na prática, porque todos sabem como as guerras começam, mas ninguém sabe como terminam – ainda mais com os possíveis efeitos políticos disso, que a quase sempre incauta Hillary Clinton ponderou bem.

(*) Hugo Albuquerque é jurista e editor da Autonomia Literária.