Visando buscar solução para a criminalidade, essa semana num discurso divulgado pela mídia, o presidente francês Nicolas Sarkozy defendeu a cassação da nacionalidade de delinquentes de “origem estrangeira”, em Grenoble no sudeste da França. A localidade foi palco de incidentes violentos há duas semanas, deflagrados pela morte de um homem de origem árabe que fugia da polícia.
Segundo Sarkozy, a cidadania francesa “deve ser retirada de toda pessoa de origem estrangeira que ameace uma autoridade pública”. O presidente considera que “a nacionalidade é adquirida e deve ser merecida”, completando que os franceses estão “sofrendo pelos 50 anos de regulação frouxa da imigração, que levaram a uma ausência da integração”.
No discurso ainda pediu ao ministro da imigração, Eric Besson, para elaborar um projeto de lei penal a ser apresentado ao Congresso no próximo mês. A sugestão presidencial inclui medidas, prevendo penas de até 30 anos para homicídio de policiais, o uso de etiquetas eletrônicas por criminosos condenados, a revisão da nacionalidade automática para agressores menores de origem estrangeira e até a condenação à prisão dos pais por crimes cometidos por filhos adolescentes.
Ao que parece o discurso não foi bem recebido, porque intelectuais e juristas, de direita e de esquerda, se disseram chocados e alertaram sobre a incompatibilidade do novo projeto de Código Penal com a Constituição.
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A Liga de Direitos Humanos assegurou, em comunicado, que o presidente está “ameaçando os próprios fundamentos da República”, enquanto o porta-voz do opositor Partido Socialista, Benoît Hamon, disse que o discurso de Sarkozy marcava o início de uma etapa “perigosa e indigna”. Os principais representantes da direita tradicional se recusaram a falar em defesa do presidente.
Com tantos problemas pátrios, principalmente na esfera da criminalidade, falar dessa questão francesa talvez não pareça adequado. Porém, a informação denota que há pessoas importantes, advindas e viventes em culturas de forte tradição democrática e humanista, que se sentem autorizadas a um discurso, cujo fundamento para buscar soluções contra o crime tem por base a exclusão do “outro”, no caso o “estrangeiro”, o “árabe”, mas poderia ser o “pobre”, o “favelado”, o “marginal”, o “criminoso”, o “inimigo”, alguns diriam, lembrando Jakobs (há que se destacar, contudo, a necessidade de certa cautela no uso dessa expressão ao se referir ao penalista alemão, pois, sua teoria parece não aplicar o termo a uma categoria no mesmo sentido e com o mesmo significado como o usamos aqui).
Enfim, o exemplo francês denota a compreensão de algumas pessoas, quanto ao problema da criminalidade, sobre a possibilidade de serem encontradas soluções pela simples categorização de seres humanos, de acordo com certos tipos de circunstâncias que vivenciam e que, deste modo, poderiam ser agregados em grupos rotulados como “de perigo”.
A idéia ficou bem documentada pelas lições de outro francês, este de reconhecida e elevada intelectualidade, o filósofo Michel Foucault, o qual em várias obras aponta para a distinção entre o “normal” e o “anormal”. Numa linguagem simples, bem inferior à usada pelo pensador francês, o normal é aquele que se sente dentro de um modelo de racionalidade e se vê como o “ser racional” das antigas noções iluministas de definição do humano. O anormal é o que não está dentro dos padrões preconizados de normalidade, por isto deve ser isolado do convívio, ou seja, deve estar preso.
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Todavia, a própria ciência – tão propalada por alguns, que se tornou maior e mais forte que qualquer religião – já demonstra, principalmente no campo dos estudos neurocientíficos e cognitivos, que a racionalidade não é o composto mais fundamental do ser humano. A complexidade da constituição humana é muito mais profunda do que o hoje pobre discurso iluminista previa.
Falar sobre criminalidade mantendo os mesmos padrões de dois séculos atrás não resolverá o problema. Não porque a teoria é antiga e modernamente há coisas mais novas e melhores. Não é essa a questão. O ponto importante é elaborar o adequado questionamento sobre a gênese do crime e tentar encontrar respostas pautadas numa realidade humana efetiva, a qual considere todo o universo amplo que o tema envolve.
Lembrando Camus, pergunta-se se é legítimo condenar um indivíduo por homicídio, porque ele fumou no enterro de sua mãe. Talvez, buscar compreender o real motivo, dado pela única resposta “foi o sol”, seja um começo.
*João Ibaixe Jr. é advogado criminalista, sócio do escritório Queiroz Prado Advogados. Especialista em direito penal, pós-graduado em filosofia e mestre em filosofia do direito, foi delegado de Polícia e coordenador da Assessoria Jurídica da Febem. Artigo originalmente publicado no Última Instância
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