O discurso de José Múcio, a crise dos Gripen e o Brasil em xeque
Fala de Múcio foi manifesto de interesses imperiais no Brasil, que inclui uma ofensiva dos Estados Unidos contra nosso programa de reposição de jatos de combate
José Múcio Monteiro é um político com origem em uma das mais poderosas oligarquias pernambucanas. Agora, sua já controversa passagem pelo ministério da Defesa nos premia com um discurso de alinhamento ao Ocidente. Em paralelo a essa crise, os Estados Unidos resolveram interferir no programa de desenvolvimento dos Gripen, em parceria com os suecos, o que deveria servir para repor nossos velhos caças. Tudo isso está junto e misturado.
Parte do discurso de Múcio Monteiro, por sinal, passa pela crítica – e um desafio explícito – à decisão do Itamaraty de suspender as compras de blindados da empresa israelense Elbit – o que teria condão humanitário, em protesto ao genocídio palestino em curso, e se daria em um contexto em que o Brasil retirou seu embaixador de Tel Aviv. Não contente nisso, a menção de exigência de alinhamento à Ucrânia chama a atenção.
Já a convocação, pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos, da filial americana da sueca Saab serve para exigir dela esclarecimentos sobre o processo, no contexto do Programa FX, que a levou a ser vitoriosa na disputa para reequipar a Força Aérea do Brasil, vencendo uma concorrência também com empresas americanas – muito embora a versão do Gripen vitoriosa deva ter motor da americana General Eletric.
Não é ideologia, é geopolítica
O discurso de Múcio, que acusa o governo de “ideológico” é, ele mesmo, ideológico. Talvez não seja original, mas vocaliza a caserna e, possivelmente, o próprio Múcio Monteiro não concorde com o que disse – embora isso francamente não importe. Obviamente, o massacre de um povo por um Estado poderoso não é, ou não deveria ser, questão menor, mas não é assim que pensam as Forças Armadas.

O ministro da Defesa, José Múcio, durante reunião com o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas.
(Foto: Isadora de Leão Moreira/ Governo do Estado de SP)
São conhecidos os negócios das Forças Armadas com Israel, sendo que o mais militarizado governo da história brasileira – o de Jair Messias Bolsonaro – foi também o mais próximo de Israel. Nem sempre foi assim, os militares brasileiros tinham posições pró-árabe, chegando a ter relações carnais com o antigo líder iraquiano Saddam Hussein, a quem não só venderam armas como prestaram consultorias e abriram canais de comércio mais amplos.
Lula foi, ironicamente, o primeiro presidente brasileiro a visitar oficialmente Israel, e durante seu segundo mandato, em 2007, é que foi assinado o acordo de livre-comércio entre o Mercosul e o país do Oriente Médio – os dois países mantêm um grande intercâmbio comercial, o que passa bastante pela indústria bélica ou de segurança mais ampla, com o Brasil exportando munições e bombas para Israel, enquanto lhe compra tecnologia.
Anos antes, não custa lembrar que se a Operação Lava Jato levou à derrocada da Odebrecht, isso talvez ajude a explicar que o braço militar da corporação, a Mectron, foi adquirida pela mesma Elbit que mantém operações no próprio Brasil – e que muitas vezes a Odebrecht e outras empreiteiras brasileiras venciam empreiteiras israelenses em disputas na África. Ou seja, há mais mistérios entre o céu e a terra do que pode supor nossa vã filosofia.
É evidente que o ápice das relações comerciais e políticas entre Brasil e Israel foi o governo Bolsonaro, mas ambos os países permanecem próximos. Embora as exportações de soja e carne, um clássico do Brasil, estejam no cardápio para Israel, a exportação de petróleo brasileiro tem sido vital para o regime sionista, respondendo por cerca de 1 em cada 10 toneladas do petróleo importado por Israel.
Se o Itamaraty adota uma posição, inclusive, de duvidosa neutralidade, pelo visto não agrada a gregos nem a troianos, mas as Forças Armadas adotam uma postura de contradição com o mainstream da diplomacia – como no governo Bolsonaro. Difícil é Múcio Monteiro explicar como a posição do Itamaraty seria “ideológica”, no sentido que empregou, se o governo de extrema direita da Itália anunciou embargo de venda de armas contra Israel.
A caça aos caças sueco-brasileiros
Em outra tragicomédia, a tumultuada história da renovação dos jatos de combate brasileiros, em uma história que já se arrasta a tanto tempo que este país corre o risco de ficar sem caça algum para patrulhar os vastos céus do seu território. Há uma boa dose de críticas justificadas à opção pelo Gripen da Saab, inclusive porque o Brasil optou por um modelo em um estágio primário de desenvolvimento.
Anos atrás, A Operação Zelotes buscava implicar Lula e sua família em um escândalo de corrupção pela opção de compra dos caças suecos, o que não prosperou, mas assim como o historiador Luís Fernandes comprova na Operação Lava Jato, haviam pegadas claras do Departamento de Justiça dos Estados Unidos – que agora surge na “intimação” da Saab americana sobre a vitória na disputa pelo fornecimento ao Brasil.
A alegação da Zelotes certamente era forçosa, uma vez que era conhecida a preferência de Lula pelo fornecimento francês dos Rafale, da fabricante Dassault, e a escolha dos Gripen ocorreu sob a presidência de Dilma Rousseff. Em um jogo intrincado, nem a própria Dilma era favorável a Saab, mas o então comandante da Aeronáutica, Juniti Saito, foi decisivo na escolha, ainda mais em um cenário de revelação da espionagem americana contra o Brasil.
Tudo isso ganha uma nova camada de complexidade, inclusive porque a Suécia foi forçada a perder sua posição de neutralidade geopolítica com o conflito russo-ucraniano, o que a fogocitou definitivamente para a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) – antes, embora inserida no Ocidente, a Suécia gozava de uma autonomia que lhe favorecia, inclusive do ponto de vista da construção de uma indústria própria de defesa.
A festa sueca, como sabemos, terminou, muito embora nos últimos anos Suécia e Finlândia já eram membros de fato da OTAN – cuja importância não diminuiu com o fim da União Soviética, pois seu objetivo jamais foi “combater o comunismo” ou vencer os soviéticos, mas sim garantir a hegemonia militar americana sobre a Europa e controlar rotas internacionais de comércio, sobretudo de energia.
O convescote brasileiro com a Suécia nunca foi bem digerido, mas embora tratado com estocadas maliciosas, nunca chegou a um grau de tensão como o atual. Agora, no entanto, levando em consideração a quantidade de peças de fabricação americana no Gripen, além do processo de sujeição militar completo da Suécia por Washington, o fornecimento de uma arma tão importante ao Brasil se torna um tema de interesse do Pentágono.
No passado, o Brasil já foi cortejado a fazer parte de projetos mais ambiciosos, e talvez mais autônomos, como o Pak-Fa, de origem russa, mas que também poderia contar com a participação dos indianos. Dúvidas tecnológicas, mas certamente questões de alinhamento geopolítico, interferiram nisso e servem de sombra para decidir os rumos da Avibrás, onde a sombra do Ocidente paira.
O que fazer?
Assim como no discurso de Múcio Monteiro, onde aparece misteriosamente a Ucrânia, a questão surge nos caças suecos e não é pouca coisa, embora pouco se fale. Em particular no caso russo-ucraniano, militares brasileiros visitaram a Rússia junto com Bolsonaro, mas não se alinharam às posições da OTAN que, no entanto, menos do que aludir aos “interesses americanos”, parecem bastante particulares ao Partido Democrata.
Nesse aspecto, Múcio Monteiro ou acusa uma inflexão do Partido Fardado sobre o caso, ou simplesmente assume uma posição mais democrata do que republicana – mas nada tem a ver com os adjetivos, mas sim com os dois partidos americanos. Seu recado, contudo, é claro e alude a uma crise tremenda do Estado Brasileiro, aparentemente balcanizado em meio a tensões globais imensas.
Em outro sentido, Maquiavel mostrava dúvidas sobre as conquistas feitas com armas alheias – o que se dirá então de uma defesa, em situação assimétrica, que depende da indústria de outrem, e interesses por definição estranhos ao Brasil. Nem poderia ser diferente. Por outro lado, a crise da desindustrialização brasileira mostra sua faceta mais preocupante, justo agora quando o mundo flerta com um grande conflito.
A ilusão da neutralidade ativa, como forma de extrair benefícios “de todos os lados”, fracassou já nos anos 1940, embora a ideia de “repetir Getúlio” seja recorrente. Lembremos que a fortuna de Getúlio não resistiu à morte de Franklin Roosevelt – e seu retorno ao poder, com mais iniciativas nacionalistas, foi rapidamente conduzida à desgraça pela ação dos Estados Unidos e seus aliados.
Hoje, o Brasil estabeleceu e desenvolveu com os chineses, como ensaiou João Goulart em um processo que se realizou só muito depois. O mundo mudou e o velho Terceiro Mundo já não é mais débil. O Brasil, contudo, ainda que seja um dos protagonistas desse movimento, supõe que ficar em cima do muro pode ser o lugar mais seguro, muito embora só pareça o lugar mais fácil de ser atingido. Para o mal, Múcio Monteiro percebeu isso.























