Sábado, 6 de dezembro de 2025
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“No grau de cultura em que ainda se encontra o gênero humano, a guerra é um meio inevitável para estender a civilização, e só depois que a cultura tenha se desenvolvido (Deus sabe quando), será saudável e possível uma paz perpétua”

Immanuel Kant, “Começo verossímil da história humana”, 1796
 

A confusão já era grande, e ficou ainda maior, depois do discurso do presidente norte-americano, Barack Obama, em defesa da guerra, ao receber o Prêmio Nobel da Paz de 2009. Como liberal, Obama poderia ter utilizado os argumentos do filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804), que também defendeu, na sua época, a legitimidade das guerras, como meio de difusão da civilização europeia, até que chegasse a hora da “paz perpétua”. Mas Obama preferiu voltar à Idade Média e recorrer às ideias de Santo Agostinho (354-430) e de São Tomás de Aquino (1225-1274), sobre a legitimidade moral das “guerras justas”.

A opção do presidente Obama não foi casual: através dos santos católicos, em vez dos filósofos iluministas, ele tentou retomar a tese medieval de que existiria uma única moral internacional, situada acima de todas as culturas e civilizações, capaz de embasar juízos objetivos e imparciais, sobre a conduta de todos os povos e todos os Estados. E não deve ter passado despercebido do presidente que o argumento da “guerra justa” – sobretudo no caso de São Tomás de Aquino – estava associado ao projeto de construção de uma monarquia universal, da Igreja Católica, dos séculos XII e XIII.

O que talvez ele tenha esquecido ou desconsiderado é que este projeto “cosmopolita” de Roma foi derrotado e desapareceu depois do nascimento dos Estados nacionais europeus. Da mesma forma que a tese da “guerra justa” foi engavetada, depois da crítica demolidora de Hugo Grotius (1583-1645), o jurista holandês e liberal que demonstrou que no novo sistema interestatal que havia se formado na Europa, era possível que frente a uma única “justiça objetiva”, coexistissem várias “inocências subjetivas”.

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Em outras palavras: mesmo que se acreditasse na existência de uma única moral internacional, dentro de um sistema de Estados eqüipotentes, não haveria jamais como arbitrar “objetivamente” sobre a legitimidade de uma guerra entre dois Estados. Por isso, na prática, esta arbitragem coube sempre, através dos tempos, aos Estados que tiveram capacidade de impor seus interesses e valores, como se fossem interesses e valores universais.

Nos séculos seguintes, este “paradoxo de Grotius” se transformou na principal contradição e limite da utopia liberal inventada pelos europeus. Thomas Hobbes (1588-1679) e Immanuel Kant (1724-1804) perceberam desde o primeiro momento do novo sistema que a garantia da ordem dos Estados e da liberdade dos indivíduos exigia a presença de um poder soberano absoluto, acima de todos os demais poderes, e da própria liberdade dos indivíduos. Por outro lado, François Quesnais (1694-1774) e a escola liberal dos fisiocratas franceses também concluíram que o bom funcionamento de uma economia de mercado requereria sempre um “tirano esclarecido” que eliminasse pela força os obstáculos políticos ao próprio mercado. E, finalmente, Immanuel Kant concluiu que as guerras eram um meio inevitável de difusão da civilização europeia.

Em todos os casos, pode-se identificar o mesmo paradoxo, no reconhecimento liberal da necessidade do poder e da guerra para difundir e sustentar a própria moral em que se funda a liberdade, e o reconhecimento de que no campo das relações internacionais, o que se chama de “moral internacional”  será sempre a “moral” dos povos e dos Estados mais poderosos. Edward Carr (1892-1982), o pai da teoria política internacional inglesa, referiu-se a estes países como sendo membros de um “círculo dos criadores da moral internacional” ,  formado nos dois últimos séculos pela Grã Bretanha, EUA e França.

Irã: manipulação publicitária

Para entender na prática como se dão estas relações, basta olhar hoje para a posição dos anglo-saxões e dos franceses, frente ao programa nuclear do Irã. Os Estados Unidos patrocinaram o golpe que derrubou o presidente eleito do Irã, em 1953, e sustentaram o regime autoritário do Xá Reza Pahlevi, junto com seu programa nuclear, até sua deposição em 1979. Mas antes disto, já tinham permitido que Israel tivesse acesso a tecnologia nuclear, com o auxílio da França e da Grã-Bretanha, por volta de 1965.   Quando entrou em vigor o Tratado de Não Proliferação Nuclear, em 1970, EUA, Grã-Bretanha e França conheciam e esconderam o arsenal atômico do Israel, e nunca protestaram contra o país por não ter assinado o tratado, nem ter aceitado as inspeções da agência de energia atômica da ONU (AIEA), além de ter rejeitado a Resolução 487, de 1981, do Conselho de Segurança, que propunha colocar as “facilidades atômicas” de Israel sob a salvaguarda da AIEA.

Como resultado, existe hoje uma assimetria gigantesca de poder militar dentro do Oriente Médio: são 15 países, com 260 milhões de habitantes, e só Israel, com apenas 7,5 milhões de habitantes e 20 mil km2, detém um arsenal de cerca de 250 cabeças atômicas, com um sistema balístico extremamente sofisticado e com o apoio permanente da capacidade atômica e de ataque dos EUA, dentro do próprio Oriente Médio.

EFE



Foto divulgada pelo governo de Israel nesta quinta (7) mostra teste do novo sistema antimísseis chamado de

Cúpula de Ferro, em local não identificado do país

Neste contexto, o esquecimento do “poder” no tratamento da “questão nuclear iraniana”, e sua substituição por um juízo moral e de política interna, é uma hipocrisia e uma manipulação publicitária. Por isso, quando se lê hoje a imprensa americana – em particular os jornais liberais de New York – fica-se com a impressão de que as bombas de Hiroshima e Nagasaki caíram do céu, sem que tivesse havido interferência dos aviões norte-americanos no único ataque atômico jamais feito a populações civis na história da humanidade. Fica-se com a impressão de que o arsenal atômico de Israel também caiu do céu sem a interferência da França e da Grã-Bretanha, e sem aquiescência dos EUA, os grandes “criadores de moral internacional”. E, o que é pior, fica-se com a impressão de que o Holocausto aconteceu no Irã, ou no mundo islâmico, e não na Alemanha do filósofo Immanuel Kant, situada no coração da Europa cristã.

José Luís Fiori é professor titular do Instituto de Economia da UFRJ. Este artigo foi publicado no Valor Econômico.

O debate da política externa: a moral internacional e o poder

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