O Cinturão e a Rota Chanchay-Trem-Biocêanico
Acontecimentos no Sul Global como o megaporto de Chancay e o Trem Bioceânico são contribuições significativas para a reordenação mundial
Se as manchetes da primeira página e o brilho das notícias no YouTube levaram a pensar que o Mega Porto de Chancay (MPCh) na costa do Peru era um “presente dos céus”, na realidade não estavam compreendendo os processos econômicos e políticos globais subjacentes à decisão de construir tal porto.
O mesmo se aplica ao impactante anúncio do futuro Trem Bioceânico (TB) que unirá o porto de Ilhéus (Brasil) ao MPCh. Nenhuma das duas formidáveis obras são fatos fortuitos ou decisões de “última hora” em resposta à recente guerra comercial ou à disputa pela hegemonia mundial.

Após um processo acelerado de construção, em novembro de 2024, o MPCh entrou em operação, colocando o Peru em posição vantajosa na dinâmica do comércio da América do Sul com o resto do mundo.
(Foto: Presidencia Perú / Flickr)
Trata-se, antes, da crescente presença da China no planeta após séculos de perseverança e paciência em projetos de longa maturação, como a “Iniciativa Cinturão e Rota” (BRI), que não é outra coisa senão a forma atual da antiga Rota da Seda, cujos primórdios remontam a dois séculos antes da era cristã (Dinastia Han, 206 a.C. 24 d.C.). Seus momentos de maior expansão ocorreram durante as dinastias Han (202 a.C.-220 d.C.), Tung (618-907 d.C.) e Yuan (1271-1368 d.C.).
Segundo Peter Frankopan (2019), essas rotas eram tão importantes que funcionavam como “o sistema nervoso central do mundo” e como um poderoso fator de integração de povos e culturas. Após a queda da dinastia Yuan, o tráfego terrestre diminuiu drasticamente devido ao avanço da navegação, que oferecia melhores tempos e custos para o comércio, que até então utilizava cavalos e camelos.
A China desenvolveu seu sistema de navegação com uma poderosa frota marítima e o uso da recém-inventada bússola. Seu maior apogeu foi alcançado com as dinastias Yuan (1271-1368 d.C.) e Ming (1368-1644 d.C.). Foi com esta última dinastia que se promoveram numerosas viagens para o Ocidente, estabelecendo contacto e relações com mais de 30 países da Ásia e África.
Estas viagens precederam as que foram financiadas pelo reino de Espanha. Em 1492, Cristóvão Colombo “descobriu” a América navegando pelo oceano Atlântico. Ele desembarcou no que hoje são as Ilhas Bahamas, pensando que havia chegado às “Índias Orientais”. Em 1519, Hernán Cortés “descobriu” o México e, assim como Pizarro fez no Peru, destruiu sua economia e organização social, saqueou seus recursos naturais em nome da “conquista”.
Os chineses não eram estranhos a esses acontecimentos. Em 1575, eles fariam eles mesmos o caminho com Zheng He, navegando pelo Oceano Pacífico e “descobrindo” a América Latina, passando por Macau e pelas Filipinas até chegar às costas do México. Essa rota, na história recente da China, foi denominada “Rota Guangzhou-América Latina”.
O auge das viagens marítimas permitiu que a seda, juntamente com inúmeras invenções da China, como a pólvora, a tecnologia para fabricar papel, a imprensa, entre outras, fossem distribuídas e comercializadas usando a complexa trama da Rota da Seda. Simultaneamente, a cultura e a arte chinesas acompanharam essa explosão de “conquistas” e “descobertas”.
Assim, tanto o Mega Porto de Chancay quanto o Trem Bioceânico não são fatos isolados, muito menos “presentes do céu”. Ambas as obras fazem parte do desenvolvimento e da expansão da Iniciativa Cinturão e Rota, que incluía uma malha de vias diferenciadas pelas mercadorias que fluíam por elas, pela geografia ou pelos espaços que atravessavam ou pelos meios de transporte utilizados para esse fim. Daí vem a Rota do Jade (matéria-prima para joias), a Rota do Chá (especiarias), a Rota da Porcelana, a Rota do Deserto, a Rota Marítima, etc., pelas quais circulavam, além dos produtos mencionados, a seda que, por seu alto valor, simbolizava estrato social e poder.
A Iniciativa Cinturão e Rota é o resultado da harmonização de dois projetos colossais: um, a “Construção Conjunta do Cinturão Econômico da Rota da Seda” e, dois, a “Rota Marítima da Seda do século XXI”.
Os eixos de cooperação sobre os quais opera a iniciativa são os seguintes:
1 – Rede de infraestrutura rodoviária multimodal.
2 – Facilitação do comércio.
3 – Integração financeira que garanta um sistema monetário estável e cooperativo.
4 – Coordenação de políticas governamentais.
5 – Cooperação em ciência e tecnologia, cultura, turismo, esportes, entre outros.
Com essa abordagem, desde 2013, a iniciativa adquiriu dimensões globais refletidas em acordos e memorandos assinados com mais de 150 países e organismos multilaterais, entre eles o Peru. Não é o caso do Brasil, que considera suficientes seus acordos bilaterais com a China, inscritos nos diferentes eixos de cooperação acima mencionados. Consequentemente, fica claro que o MPCh e o TB têm sua origem nos alcances e objetivos da Iniciativa Cinturão e Rota.
Mega Porto de Chancay (MPCh)
Após um processo acelerado de construção, em novembro de 2024, o MPCh entrou em operação, colocando o Peru em posição vantajosa na dinâmica do comércio da América do Sul com o resto do mundo. Seu financiamento, que gira em torno de 3.5 bilhões de dólares, tanto para a primeira fase (1.3 bilhões) quanto para a segunda (2.5 bilhões), está garantido com recursos da Iniciativa Cinturão e Rota.
De acordo com diversos analistas internacionais, o avanço da iniciativa, além de seus objetivos de desenvolvimento e cooperação na lógica do “benefício compartilhado”, é um sinal claro de que a China está interessada em gerar situações geopolíticas favoráveis a si na região, assim como os Estados Unidos pretendem ao insistir em ações derivadas da Doutrina Monroe.
A Cosco Shipping, empresa estatal chinesa que administra o MPCh, informou que o porto já opera em conexão com o porto de Guanzhoung, na China, cuja importância no comércio mundial é de primeira ordem. Cobrir a distância entre esses dois portos reduz os custos operacionais em até 20% e em 12 dias o tempo necessário pelas rotas tradicionais que utilizam o Canal do Panamá e o Estreito de Gibraltar.
Por outro lado, o MPCh está gerando interesse de empresas transnacionais desejosas de investir no Peru para aproveitar as vantagens logísticas e tributárias que acompanham o desenvolvimento do porto. As empresas chinesas Huawei (tecnologia da informação) e Yutong (ônibus), por exemplo, já manifestaram sua vontade de investir no Peru o mais rápido possível. Espera-se que empresas transnacionais dos EUA e da Europa façam o mesmo.
Dessa forma, o Peru está se tornando uma referência obrigatória no comércio intra-regional e com o resto do mundo. O MPCh, com capacidade atual para movimentar um milhão de contêineres por ano e receber navios cargueiros de grande porte, graças aos quase 18 metros de calado do porto, é um fator determinante no comércio regional e mundial, mas especialmente entre o Brasil e a China.
Para o Peru, o MPCh se torna um catalisador de processos produtivos nos corredores econômicos que o país identificou em seu território (CEPLAN, 2025). Estes são:
1 – A costa norte, que inclui regiões agroexportadoras como La Libertad.
2 – A selva, que inclui o eixo Chancay-Pucallpa e a via San Martín-Tingo María
3 – Corredor industrial Callao-Lima Norte-Chanca
4 – Corredores interoceânicos do norte e do sul via cabotagem
5 – Corredor Cajamarca-Yurimaguas
6 – Cusco-Puerto Maldonado
Com diferenças em grau, todos os corredores necessitam de trens e rodovias, bem como hidrovias, para que o potencial produtivo das áreas de influência possa fazer parte do desenvolvimento vinculado ao porto desde sua primeira etapa. Sua segunda etapa, de acordo com a Cosco Shipping, será concluída no final de 2025, posicionando o Peru como o principal eixo logístico do Pacífico Sul.
Trem Bioceânico (TB)
O TB, assim como o MPCh, é um projeto planejado dentro da perspectiva da Iniciativa Cinturão e Rota e fortalece a influência chinesa na América do Sul, apesar da oposição ativa dos Estados Unidos a qualquer iniciativa financiada pela China. Após várias tentativas frustradas, somente durante o governo de Dilma Rousseff (2014) ocorreram as primeiras conversas formais sobre o tema entre Brasil, Peru, Bolívia e China.
Infelizmente, os desafios políticos que Rousseff teve de enfrentar não permitiram dar continuidade às conversas iniciadas. Após 11 anos, superando o boicote do regime de Bolsonaro, o presidente Lula da Silva e seu homólogo Xi Jinping voltaram a abordar o tema e não demoraram a assinar um Memorando de Entendimento para iniciar os estudos de viabilidade do Projeto TB. O acordo foi assinado no âmbito da XVI Cúpula do BRICS (6 e 7 de julho de 2025), conferindo-lhe uma conotação geopolítica que deu visibilidade ao projeto. A mensagem era clara: não se tratava apenas de benefícios econômicos, que certamente haverá, mas de um passo transcendental na ampliação e fortalecimento da influência chinesa na América Latina.
Em representação dos seus respectivos governos, a empresa estatal brasileira Infra S.A., do Ministério dos Transportes, e a empresa estatal China Railway Economics and Planning Research Institute (Instituto de Planejamento e Pesquisa Ferroviária da China) assinaram o Memorando de Entendimento em 7 de julho de 2025, para iniciar os estudos de viabilidade (técnica, econômica e ambiental) do TB que conectará os portos do litoral brasileiro no Atlântico com o MPCh na costa peruana sobre o Pacífico.
O TB terá como ponto de partida o Porto de Ilhéus, no Brasil, e o ponto de chegada o MPCh, no Peru. A ferrovia bioceânica, antes de cruzar a fronteira com o Peru, compreende o território fronteiriço de Mato Grosso, toda a extensão de Rondônia e o sul de Acre, fronteiriço com o Peru.
De acordo com o MPO (Ministério do Planejamento e Orçamento do Brasil), o Memorando de Entendimento é o resultado de um trabalho bilateral iniciado em 2023. Em novembro de 2024, os presidentes Xi Jinping e Lula da Silva assinaram o Acordo para impulsionar o Projeto ROTAS (Rotas de Integração Sul-Americana) formulado pelo MPO, que compreende quatro eixos estratégicos, um dos quais sendo a ferrovia bioceânica.























